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26 de Abril de 2024
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    O modo de produção e a criminalidade do aborto

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    A audiência pública convocada pelo STF para debater a criminalização do aborto reacendeu o debate jurídico sobre essa questão. A decisão da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 442, que ainda não está em pauta, irá discutir se os artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro – que criminalizam tanto a gestante quanto a pessoa que provoca o aborto com o consentimento da mulher (em geral profissionais da saúde) – foram, ou não, recepcionados pela Constituição Federal de 1988. Caso a decisão seja pela não recepção desses artigos pela constituição, será descriminalizado o aborto de gestantes que estejam até na 12ª semana de gravidez.

    Ocorre que, mesmo se a decisão do STF for desfavorável à recepção de tais artigos do Código Penal pela constituição, o Congresso Nacional pode decidir por elaborar outra lei para criminalizar o aborto como uma forma de reação conservadora. Nesse contexto, importante se discutir o fato de que os avanços feitos pelas mulheres, assim como os das minorias políticas em geral, estão sempre em “perigo” de retrocesso. Historicamente, os avanços conquistados pela classe trabalhadora não se tornam garantias “eternas” e acabam por ser “engolidas” quando necessário para aumentar a exploração da classe.

    Explico: nas discussões feministas sobre o aborto é muito comum a indicação de que as mulheres ricas abortam de maneira segura e as mulheres pobres, em sua maioria negras, morrem por fazer o procedimento de maneira precária e clandestina. Nessa toada, é evidente o caráter de classe e raça que precisa permear a discussão desse tema. Por esse motivo, proponho nesse texto uma análise histórica, com centralidade no trabalho, sobre o controle dos corpos das mulheres e da maternidade.

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    Para se fazer uma análise histórica sobre esse tema é essencial retomar a discussão sobre modo de produção. A passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista nos oferece várias chaves para entender o uso dos corpos das mulheres, como se fossem mercadorias, e a desvalorização delas até hoje.

    O livro Calibã e a Bruxa, com tradução em português lançada no ano passado pelo coletivo Sycorax, mostra-nos como a intensificação da desvalorização do trabalho reprodutivo da mulher e a “caça às bruxas” na idade média contribuiu para o aprofundamento das desigualdades entre homens e mulheres. Na alta idade média, segundo a historiadora Silvia Federici, não havia essa intensa separação entre espaço reprodutivo e espaço produtivo, como hoje: a produção de alimentos (espaço produtivo) se dava em um espaço comum da família, no mesmo local em que homens e mulheres desempenhavam seus trabalhos para sobrevivência de todos (espaço reprodutivo).

    Na baixa idade média, então, começa um processo de separação desses espaços, o que será importantíssimo para o desenvolvimento do capitalismo. Nesse momento já se inicia a passagem de modo de produção com o início da acumulação primitiva de capital – concentração de grande quantidade de recursos em poucas famílias – que apenas foi possível com a política de cercamentos – expulsão dos camponeses das terras comunais para que fossem obrigados a vender a sua força de trabalho nas cidades. Nesse contexto de pauperização das classes exploradas houve, ainda, intensa crise populacional causada, entre outros motivos, pela peste negra. Essa crise de reposição populacional trouxe escassez de trabalhadores, o que “valorizou” a força de trabalho camponesa.

    A partir daí começam a surgir ações deliberadas para que as mulheres fossem desvalorizadas socialmente, com a finalidade de garantir a reprodução da força de trabalho que estava sendo “liberada” do campo para as cidades. Dentre as medidas temos o tratamento do aborto como bruxaria para evitar que as mulheres tivessem controle sobre o próprio corpo e, assim, fossem “incentivadas” a contribuir com a reposição populacional. Para a autora, ainda, a caça às bruxas é um elemento essencial para que fosse possível a acumulação primitiva de capital, por diferenciar as mulheres dentro da classe explorada e desvalorizar o trabalho delas. Veja-se o trecho:

    “(…) a questão do trabalho se tornou especialmente urgente no século XVII, quando a população na Europa começou a entrar em declínio novamente, fazendo surgir o espectro de um colapso demográfico similar ao que se deu nas colônias americanas nas décadas que se seguiram à Conquista. Com este pano de fundo, parece plausível que a caça às bruxas tenha sido, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino – o útero – a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho.”[1]

    Considerando, então, a passagem entre modos de produção na visão dessa historiadora, a preparação das forças sociais para o início do capitalismo ocorreu de maneira a subjugar os corpos das mulheres, principalmente das pobres, a fim de que houvesse diferenciação dentro da própria classe trabalhadora para manter as condições de vida e principalmente os salários mais baixos para todos e todas. Ou seja, o trabalho reprodutivo das mulheres, que inclui a gestação e os cuidados com as crianças (a reposição da força de trabalho), é desvalorizado socialmente apesar de ser essencial para o funcionamento do capitalismo. Esse trabalho, inclusive, não é pago diretamente à mulher que o executa, ficando invisibilizado dentro das casas dos trabalhadores – apesar de ser condição para que a classe trabalhadora se recupere da jornada de trabalho, tenha alimento e roupas limpas etc. Dessa maneira, existe uma clara ligação entre a possibilidade da mulher escolher abortar e o peso do trabalho reprodutivo, que recai sobre ela[2].

    Trazendo a discussão para a atualidade, entendemos ser possível formular a hipótese de que a proteção à maternidade no direito do trabalho[3] e a criminalização do aborto são duas faces da mesma questão, qual seja: a contradição entre (1) a essencialidade do trabalho – não só, mas principalmente – reprodutivo das mulheres para o funcionamento do capitalismo e conjuntamente (2) a desvalorização destas para manter os salários de toda a classe trabalhadora baixos.

    seria a maternidade compulsória das mulheres de países pobres o que possibilita a legalização do aborto nos países ricos?

    Outra questão sobre a criminalização do aborto é o fato de que a maior parte dos países de capitalismo central, países europeus e vários dos estados dos EUA, já o descriminalizaram. O exemplo mais recente é a legalização do aborto na Irlanda. Enquanto que nos países de capitalismo periférico as mulheres ainda sofrem intensas restrições para terem esse direito (e mesmo em casos de aborto legal também sofrem muitas dificuldades), como a criminalização em muitos desses países, e ainda acumulam derrotas (como no caso recente da Argentina). Para avançar nessa discussão, então, também trazemos o seguinte questionamento: seria a maternidade compulsória das mulheres de países pobres o que possibilita a legalização do aborto nos países ricos?

    Esse questionamento é feito com base nos retrocessos que as políticas neoliberais tem feito nos países centrais do capitalismo, onde existiu, de fato, estado de bem estar social. Ou seja, inicialmente a classe trabalhadora desses países é iludida com a possibilidade de ter boas condições de vida mesmo não sendo proprietária dos meios de produção, entretanto, com a crise populacional e o encarecimento do preço dos salários dos trabalhadores europeus, as atividades produtivas são transferidas para países periféricos, os quais ainda mantém políticas de criminalização do aborto, que possibilita, ao menos em tese, uma maior taxa de reposição populacional.

    Assim, o aborto continua sendo usado como política de maternidade compulsória para tentar resolver o problema de reposição populacional nos países periféricos, pressionando os trabalhadores dos países centrais a também aceitar piores condições de trabalho em razão do exército industrial de reserva que está sendo formado em países pobres. Nessa toada, assistimos o esfacelamento do estado de bem estar social, que nunca existiu de maneira plena na periferia, e o crescimento do número de pessoas migrantes (também essenciais para a reposição de força de trabalho). Sobre essa questão, importante referência, novamente, é a historiadora Silvia Federici:

    “No decorrer das décadas de oitenta e noventa, outros fenômenos se desenvolveram e demonstraram a tentativa de redistribuir a reprodução da força de trabalho metropolitana sobre os ombros das mulheres dentro e fora do ‘terceiro mundo’. Entre as mais significativas, houve o desenvolvimento de um vasto mercado internacional de bebês, organizado através do sistema de adoções, que agora evoluiu para um negócio multibilionário. (…) Também vimos o desenvolvimento de fazendas de bebês, em que as crianças são produzidas especificamente para exportação, e o crescente emprego de “mulheres do terceiro mundo” como mães substitutas. A sub-rogação, assim como a adoção, permite que as mulheres dos países capitalistas “avançados” evitem interromper sua carreira ou comprometer sua saúde para ter um filho. (…) a venda de crianças serve para corrigir ‘excessos demográficos’ (…).”[4]

    Esse texto foi escrito em 1999, período em que a “transferência” de bebês entre países ricos e pobres ocorria de maneira mais desregulada e muitas vezes de maneira clandestina. Ainda assim, é possível fazer um paralelo entre essa ideia da transferência populacional como “política demográfica” de importação/exportação de trabalho reprodutivo e a criminalização do aborto nos países periféricos até hoje.

    Considerando essas informações, entendemos ser essencial a luta pela legalização do aborto, que precisa se expandir por todo o capitalismo periférico. Ainda assim, não podemos olvidar que as conquistas das trabalhadoras e dos trabalhadores nunca estão seguras no capitalismo. Conforme discutido acima, os pequenos avanços conquistados pela classe trabalhadora de países centrais do capitalismo retrocederam com o avanço neoliberal e a descriminalização do aborto, se ocorrer “via STF” poderá ser revertida pelo Congresso Nacional brasileiro, que apresenta viés conservador. Nesse modo de produção não será possível a emancipação das mulheres.

    Thamíris Evaristo Molitor é Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo. Membra do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC) e do Grupo Direitos Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo (DHCTEM), ambos vinculados com a Faculdade de Direito da USP. Advogada em São Paulo

    Leia também:

    [1] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, p. 326.

    [2] Nesse ponto, pode-se citar como exemplo de movimento pelo reconhecimento do trabalho reprodutivo o “wages for housework” (que pode ser livremente traduzido como “renda para o trabalho de casa”) que ocorreu nos Estados Unidos na década de setenta e que é narrada por Silvia Federici em seu livro Revolution at point zero, ainda sem tradução para o português. Destaco o seguinte trecho, traduzido livremente: “exigir renda para o trabalho doméstico não significa dizer que, se formos pagas, continuaremos a fazer esse trabalho. Significa precisamente o oposto. Dizer que queremos renda para o trabalho doméstico é o primeiro passo para se recusar a fazê-lo, porque a demanda por um salário torna visível o nosso trabalho, que é a condição mais indispensável para começar a lutar contra ele (…)”. No original: “(…) to demand wages for housework does not mean to say that if we are paid we will continue to do this work. It means precisely the opposite. To say that we want wages for housework is the first step towards refusing to do it, because the demand for a wage makes our work visible, which is the most indispensable condition to begin to struggle against it (…)”.FEDERICI, Silvia. Wages against housework. Revolution at point zero: housework, reproduction, and feminist struggle. New York: PM Press, pp. 15-22, 2012, p. 19.

    [3] Em nossa dissertação de mestrado trabalhamos a relação entre a proteção da maternidade pelo direito do trabalho no Brasil, a necessária reposição populacional no início da industrialização do país e a consequente “conquista” das mulheres ao status de sujeito de direito. Entretanto, conforme indicado acima, a criminalização do aborto também assume papel importante nessa discussão. Referência: MOLITOR, Thamíris Evaristo. O sujeito de direito a partir da proteção da maternidade pelo direito do trabalho brasileiro: Uma análise materialista histórico-dialética na perspectiva de gênero. 2018. 132 f. Dissertação (mestrado em direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

    [4] Tradução livre. No original: “In the course of the ’80s and ’90s, other phenomena have developed that demonstrate the attempt to redistribute the reproduction of the metropolitan workforce on the shoulders of women in and from the ‘Third World’. Among the most significant, there has been the development of a vast international baby-market, organized through the system of adoptions, now evolved into a multibillion dollars business. (…) We have also seen the development of baby farms, in which children are produced specifically for export, and the increasing employment of ‘third world women’ as surrogate mothers. Surrogacy, like adoption, allows women from the ‘advanced’ capitalist countries to avoid interrupting their career or jeopardizing their health to have a child. (…) the sale of children serves to correct ‘demographic excesses’ (…).” FEDERICI, Silvia. Reproduction and Feminist Struggle in the New International Division of Labor. Revolution at point zero: housework, reproduction, and feminist struggle. New York: PM Press, pp. 65-75, 2012, p. 72.

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