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26 de Abril de 2024
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    Os 30 anos da Constituição e o mito da Fênix

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Arte: André Zanardo

    Às vésperas da Semana da Pátria e do aniversário do constitucionalismo de 1988, 200 anos de Museu Nacional foram destruídos pelo fogo e pela mesma falta de espírito público que ameaça incendiar a cidadania em construção durante 30 anos de Constituição democrática e humanista. Metáfora de uma tragédia anunciada para o próprio Brasil.

    Lembra a passagem em Ferdinand Lassalle, de 1862, na obra “O que é uma Constituição?”, em que ele propõe imaginarmos o colapso em que sejam queimadas todas as bibliotecas e todas as leis impressas da Prússia. “Vamos supor, por um momento, que um grande incêndio irrompeu e que nele se queimaram todos os arquivos do Estado, todas as bibliotecas públicas; que o sinistro destruísse também a tipografia concessionária onde se imprimia a Coleção legislativa e que ainda, por uma triste coincidência – estamos no terreno das suposições –, igual desastre se desse em todas as cidades do país, desaparecendo inclusive todas as bibliotecas particulares onde existissem coleções, de tal maneira que em toda a Prússia não fosse possível achar um único exemplar das leis do país. Suponhamos isso”.

    Em vista de que, em tal hipótese, a Constituição escrita terá desaparecido, qual será então a verdadeira Constituição daquele Estado? Lassalle responderia que serão os “fatores reais de poder” existentes naquela dada realidade social não nas antigas “folhas de papel” consumidas pelo fogo. Fatores reais de poder, que “são essa força ativa e eficaz que informa todas as leis e instituições jurídicas da sociedade em apreço, determinando que não possam ser, em substância, a não ser tal como são”[1].

    Londres queimou em 1666, coincidentemente no mês de setembro, dias 3 a 5. Foram destruídas 13.200 casas, 87 igrejas, 44 prédios públicos, a Catedral de “Saint Paul”, depois reconstruída. Principalmente, estima-se que tenham morrido milhares de pessoas, sobretudo porque a população pobre não era mantida em registros.

    O século XVII inglês também assistiu ao incêndio de suas instituições. Uma guerra civil, inspiradora da teoria de Thomas Hobbes, “guerra de todos contra todos”, em que “o homem era o lobo do homem” [2], marcou pela força de Oliver Cromwell e pelo sangue de Carlos I, a superioridade da milícia parlamentar sobre o exército do rei. Primeiro sinal físico de que o rei deveria se submeter à Constituição. Já em 1688, sem mais sangue, a Revolução Gloriosa restaura a monarquia, mas a submete ao Parlamento. Agora não pela força mas pela política. E segue 1689, quando o Parlamento obriga os reis ingleses a concederem o Bill of Rights, o documento que consolida a supremacia parlamentar e o Rule of Law, o Estado de Direito inglês; a substituir soluções violentas pelas soluções jurídicas.

    Atualmente, a sociedade inglesa possui alto nível de desenvolvimento humano, menores índices de desigualdade social, mas sequer possui Constituição escrita e codificada. A sociedade brasileira, por nossa vez, ao contrário da inglesa, possui sim uma Constituição escrita, sobretudo extensa, analítica. Entretanto, nossos índices de desigualdade social são menos favoráveis, assim como é menos favorável nosso desenvolvimento humano, em comparação ao Reino Unido.

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    Como explicar essa disparidade? Será que menos Constituição significa sociedade mais desenvolvida? A resposta é negativa. O desenvolvimento social inglês, num Estado que sequer possui Constituição escrita, deve-se justamente à existência da forte consciência constitucional. Uma consciência gravada não no papel, sim na cultura do povo e nas instituições existentes, capaz de gerar consequências jurídicas, na medida em que repercute sobre o comportamento das pessoas, exercendo muito mais influência do que muitas leis escritas exerceriam, a força que reside na natureza das coisas.

    A sociedade brasileira, diferente da britânica, não é a tal ponto consciente que possa dar-se ao luxo de abrir mão de seu constitucionalismo garantista; e adotar, por exemplo, uma Constituição mínima e absenteísta. Aqui, a falta de Constituição causaria o retrocesso institucional, a perda de direitos e de garantias já conquistados; tudo necessário para que tenhamos uma convivência pacífica e harmônica. O efeito da ausência será a injustiça.

    Nossa consciência constitucional é ainda fraca, e seu fortalecimento é projeto do constitucionalismo brasileiro. A presença da consciência constitucional fortalecida entre os ingleses justifica o alto desenvolvimento social deles, mesmo ausente a “folha de papel”. Já a ausência da consciência constitucional, ora enfraquecida entre nós brasileiros, explica como nosso país ainda não atingiu pleno desenvolvimento social, mesmo possuindo um ótimo projeto de Brasil, consubstanciado na Constituição Federal.

    Qualificada como “a melhor das Constituições brasileiras de todas as nossas épocas constitucionais”[3]. A Constituição de 1988 consagrou um modelo de constitucionalismo cidadão, como projeto de uma sociedade livre, justa e solidária, que ainda se encontra em edificação. Os avanços sociais alcançados pela sociedade brasileira após 1988 revelam que o Brasil melhorou muito nas décadas recentes em que está sob a vigência da Constituição Cidadã, assim chamada por ser a mais democrática e humanista de todas as nossas Constituições. Humanista, por eleger primazia aos direitos fundamentais que foram previstos já em seu Título II, antes mesmo dos dispositivos de organização, no que deixou claro que o Estado e os Poderes organizam-se sempre em prol dos direitos humanos, com a finalidade de promover o bem comum, consubstanciado em direitos, em Cidadania, especialmente na promoção de iguais oportunidades a todas as pessoas. Democrática por sua forma de elaboração, tributária da participação popular mais ampla, desde o início, já no seu Processo Constituinte.

    Entre 1980 e 2013, o IDH brasileiro acumulou crescimento de 36,4%, melhor desempenho entre os países da América Latina e Caribe. Em 2013, nosso Índice atingiu 0,744, e subimos para a 79ª. posição entre 187 países, conforme Relatório do Desenvolvimento Humano, lançado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e publicado em 2014. Em 3 décadas, ganhamos 11,2 anos de esperança de vida, aumentamos nossa renda em 55,9%. Também a expectativa de anos de estudo para criança ingressante em idade escolar cresceu 5,3 anos (53,5%), bem como a média de anos de estudo dos adultos com 25 anos de idade subiu 4,6 anos (176,9%)[4]. Dados do IPEA permitem que o Brasil seja elogiado pela melhora na distribuição de riqueza, pois nosso Índice Gini de desigualdade reduziu-se de 0,616, em 1988, para 0,526, em 2012. Estamos, porém, aquém de sociedades como a inglesa, a francesa e a norte-americana, cujos índices aproximam-se de 0,4 ou 0,3[5].

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    Apesar da melhora nos indicadores sociais, o Brasil ainda necessita de preservação da Democracia e de promoção da Justiça social. Entre nós, a tragédia do incêndio não é figurativa como em Lassalle. O fogo é real como na Londres do século XVII. Queimam-se aqui Museus e Constituições, com fogo e com atos/omissões inconstitucionais, cuja comprovação, para citar poucos exemplos, é feita pelo grande número de Ações Diretas de Inconstitucionalidade propostas, de Recursos Extraordinários interpostos e de Mandados de Injunção impetrados desde 1988, indicadores sim da desejável existência do controle de constitucionalidade, mas também das muitas indesejáveis violações que lhes são subjacentes.

    Também pelo fato de que, desde 1824, tivemos oito Constituições, mais de uma delas vitimadas por golpes de Estado e três delas reconhecidamente outorgadas sem participação popular. Nossas oito Constituições, variáveis como as dezesseis Constituições francesas, sempre foram entendidas, predominantemente, como “bandeiras políticas”, meras “recomendações”, a serem cumpridas facultativamente, e alteradas ou suprimidas circunstancialmente.

    Sim, a política e a representatividade conferem legitimidade à Constituição nos momentos de sua elaboração, reforma, regulamentação ou garantia. Não significa, porém, que a Constituição deva sucumbir às instabilidades políticas circunstanciais. Ao talante dos mandatos políticos, com o risco de, alterado o cenário partidário, alterar-se também a ordem constitucional. Da mesma maneira como, não sem momentos de graves prejuízos, foi alterada a ordem constitucional da França a partir de 1791 até 1958. Também da Alemanha na década de 1930, cujo resultado foi a construção de um Estado totalitário. Tanto que a reação jurídica, em 1949, veio somente após a Guerra, com a Lei Fundamental de Bonn, viva até os dias de hoje e que inspirou em muito a Constituição de 1988, pois ambas foram reativas à política antijurídica que as antecedeu.

    A trajetória constitucional brasileira é, portanto, de resistências. Especialmente após 1988. De um lado, resistência daqueles que prezam pela constitucionalidade, acreditando na Constituição como instrumento de Democracia e Justiça social. E, de outro lado, resistência daqueles que desejam manter privilégios arcaicos na sociedade brasileira, que só prejudicam os avanços sociais e institucionais. Resquícios de autoritarismo que ainda povoam algumas consciências. Vícios históricos brasileiros, transpostos para a Nova República, e que, muito embora não sejam culpa da Constituição de 1988, sim da sua violação, ainda hoje subsistem como grave resistência à modernização e à plena democratização do país.

    Ilustra-se com o exemplo da negação de força normativa à Constituição, cuja aplicação foi tantas vezes afastada sob a justificativa de que faltava legislação ordinária para regulamentar direito fundamental. Era Constituição à espera de lei ou de ato. Inexistência de leis regulamentadoras de direitos sociais. Ausência de ações governamentais para implementação desses mesmos direitos na vida dos cidadãos.
    De um cenário de instabilidade constitucional podem restar as cinzas de nossas folhas de papel, ou seja, nossos fatores reais de poder, representados por uma sociedade tradicionalmente autoritária e estamental, plena de desigualdades, patrimonialista e crente nos salvacionismos.

    Primeiro: a abolição tardia da escravidão, consubstanciada numa legislação omissa “para inglês ver”. Ainda, opção pela concentração da terra (e do poder político) nas mãos de poucos proprietários, por consagração da Lei de Terras de 1850 e pelo privatismo do Código Civil de 1916. Abolição tardia e propriedade concentrada colaboraram para que a “obra da escravidão”, acusada por Joaquim Nabuco em 1883, confirmasse os “efeitos da escravidão”, previstos por José Bonifácio em 1825. Os resultados foram: sociedade fragmentada, economia ineficiente e política instável; e, sobretudo, desigualdade social, que é nossa característica mais marcante em pleno século XXI.

    Segundo: uma tradição portuguesa, patrimonialista, atenuou os limites entre o público e o privado, muito devido à inexistência de um prévio feudalismo português e à rápida consolidação de Portugal como Estado absolutista. Reproduzido no Brasil, o prejuízo moral de gerir o público como se privado fosse e de sobrepor o interesse privado ao público, confundindo-os, caracterizou nossas práticas.

    Terceiro: a prevalência da autocracia sobre a Democracia marcou a sociedade brasileira. A formação da nossa vontade de Estado historicamente desconsiderou a vontade popular, dado que a “costura pelo alto” e a “conciliação” são marcas da política brasileira. No princípio, a Coroa transmigrada distribuía títulos nobiliárquicos à elite local como forma de conquistar apoio no Brasil. Logo após, a Independência se fez pela composição, especialmente pela habilidade de José Bonifácio; o que se ilustra pelo famoso quadro de Pedro Américo, pintado em 1888, assim hoje preservado no Museu do Ipiranga. Suas tintas retratam a passividade do condutor do carro de boi, que, como multidão, como povo só figurante, assistiu ao ato. A seguir, em 1824, a Constituição veio outorgada, dissolvida a Assembleia e elaborada como texto “digno do Imperador”, “Defensor Perpétuo do Brasil”, nos moldes de uma Restauração “à brasileira”, inspirada na Carta francesa de 1814, de Luís XVIII.

    Quarto: a crença em que as soluções aos problemas brasileiros provêm de “salvadores da Pátria”, de atos instantâneos, praticados por pessoas, grupos ou forças. Pouca convicção em processos participativos de construção social, portanto prolongados, porém efetivos[6].

    Em 1787, os norte-americanos, rompendo com os ingleses, ao formularem seu Estado, optaram pela adoção de uma Constituição escrita, não como receptáculo de tradições, sim como projeto de Estado a ser realizado a partir de então. Com base nessa norma jurídica, superior a todas as outras e cuja obrigatoriedade vincula a tudo e a todos, ditaram seu padrão objetivo de justo.

    Nesse ponto, Brasil e EUA assemelham-se. Os norte-americanos formalizaram seu projeto de Estado já naquele momento, nós, brasileiros, embora tardiamente, 200 anos depois, também consubstanciamos nosso projeto na Constituição de 1988, que, com igual prestígio de obrigatoriedade, estabelece nossa objetividade jurídica e afasta legalismos formalistas. À semelhança do artigo VI deles, o nosso artigo ., parágrafo único, estabelece nossa cláusula de supremacia da Constituição. Todo e qualquer poder político ou social, que se pretenda jurídico, submete-se à Constituição, e será sempre exercido “nos termos desta Constituição”, sob pena de desvirtuar-se em poder de fato, de força antijurídica.

    Não subsiste a crítica de que a Constituição de 1988 seja prolixa. Nem é todo verdade que a Constituição norte-americana seja tão reduzida. Aos poucos 7 artigos originais somaram-se sim, de 1791 a 1992, só 27 Emendas. Porém, somou-se também toda a jurisprudência da Suprema Corte, durante dois séculos de jurisdição constitucional, cuja atividade criativa é um dos pilares deles, sendo, portanto, a Constituição norte-americana fisicamente até mais extensa que a própria Constituição de 1988.

    Aqui, nossa extensão textual justificou-se em razão do momento histórico e da falta de tradição constitucional. Para evitar que o garantismo constitucional dependa de maiorias circunstanciais, sagrado num documento solene cuja força normativa supere a força da lei e cuja mutabilidade não fique à mercê da instabilidade política. A extensão constitucional é, porém, apontada como uma das causas da mutabilidade do texto, 99 Emendas até 17/12/2017. Boa parte das Emendas baseou-se nessa crítica, mas, paradoxalmente, contribuiu para acentuar o mesmo caráter analítico, estendendo ainda mais o texto original. Predominantemente, a reforma atingiu assuntos tão-só formalmente constitucionais. O aspecto positivo é que a parte material do texto original permanece, em grande medida, intacta e estável, em especial a enunciação e garantia de direitos.

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    Portanto, dos norte-americanos, não a sinteticidade, sim a durabilidade da Constituição é que nos deve inspirar, única desde 1787. Revela o prestígio de sua juridicidade. Para igualmente prestigiarmos, cumprirmos e mantermos nossa Constituição de 1988, como norma jurídica superlativa, obrigatória e superior, que é.

    Também, critica-se o garantismo de 1988 como causa da explosão de litigiosidade, fenômeno de maior acesso à Justiça, maior procura ao Poder Judiciário. Sim, litigiosidade reduzida pode significar que dada sociedade seja pacífica e madura, ausentes os conflitos e, caso existentes, pode significar que as pessoas conseguem compor-se sem necessidade do Estado-juiz. Por outro lado, o baixo número de processos pode significar não a ausência de conflitos sim o desamparo, a falta de acesso à Justiça, de enunciação e garantia aos direitos. Portanto, 1988 não criou litígios, apenas deu proteção às pessoas contra violações que já ocorriam antes mesmo da Assembleia Constituinte. A Constituição é o remédio não a doença. Muito da litigiosidade pode ser resolvida pela atuação dos Poderes em conformidade com suas funcionalidades próprias, previstas na Constituição. Também pela devida utilização do processo pela sociedade. Não é solução restringir direitos fundamentais como forma de ora reduzir litigiosidade. São as violações não os direitos que devem ser combatidas.

    Respeitar a Constituição, mais que um princípio, é uma necessidade. Fortalece no povo a consciência de Cidadania e do respeito ao direito e ao dever de cada um, trazendo a vantagem de que todas as pessoas estejam participantes contra qualquer violação, que receberá assim a imediata repulsa pela sociedade. Por certo, conflitos são inerentes à convivência humana, porém a prática da Constituição permite que esses mesmos conflitos sejam resolvidos de forma racional e pacífica. Somente é possível ter certeza e segurança de direitos numa sociedade que respeite e pratique sua Constituição, que, sendo legítima e autêntica, oferecerá sempre o padrão objetivo de justo. A prática desse padrão, consagrado pela Constituição, permite estabilidade social, política e jurídica, bem como, nos momentos de maior turbulência, representa a forte garantia para o pleno respeito ao Estado Democrático de Direito. São lições de Dalmo de Abreu Dallari, na obra Constituição e Constituinte, editada originalmente em 1982 e sempre atual.

    Por outro lado, uma sociedade que não respeita sua Constituição estará fadada a sofrer o arbítrio político e econômico sem limitações, verdadeiro absolutismo em que o homem será o lobo do homem; e mesmo os mais ricos e mais fortes estarão sujeitos à angústia eterna de uma guerra permanente de todos contra todos. A sociedade sem Constituição padece pela incerteza de direitos e deveres, porque perde o padrão objetivo de justo. Ali toda ordem será o fruto da circunstância, desordem social na verdade. As mudanças sociais tornam-se desordenadas, aleatoriamente dissociadas do bem comum. Nem mesmo avanços porventura conquistados terão consolidação, porque faltará Constituição[7]. Em tal hipótese, as soluções jurídicas serão substituídas pelas soluções violentas; caminho inverso, entre nós, 330 anos depois, à evolução daqueles ingleses do século XVII.

    A propósito da leitura de Ferdinand Lassalle, é preciso dizer que reproduz injustiças admitir que a força ativa, determinante das leis em dada sociedade, não possa ser, em substância, senão aquilo que a tal sociedade já é. Reproduz injustiças, especialmente se essa dada realidade social estiver assim já maculada por essas mesmas injustiças.

    A Constituição costumeira britânica traduz sim a Justiça já tradicionalmente construída naquela sociedade, pelo que é efetiva. Diferentemente, porém, de sociedades como a brasileira, em que o “ser” da realidade social está ainda muito distante do “dever ser” da Constituição Federal. Nesse caso, não se pode admitir que poderes de fato suplantem o projeto de Estado estabelecido pela Constituição, sob pena de “constitucionalização” de injustiças.

    É por essa razão que Konrad Hesse, na obra A força normativa da Constituição, responde a Ferdinand Lassalle que a “Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade”, ela “logra despertar ‘a força que reside na natureza das coisas’, tornando-a ativa”. A própria Constituição “converte-se em força ativa que influi e determina a realidade política e social”. E essa força “impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição”[8]. É, portanto, necessário que, celebrados 30 anos, tenhamos convicção na inviolabilidade da Constituição de 1988, praticando-a, como condição para que o “dever ser” constitucional torne-se o “ser” de nossa realidade social.

    Com otimismo, aqui resta a esperança de uma Fênix que possa renascer em meio à injustiça social, à instabilidade política e ao legalismo formalista, transformando-os em igualdade de oportunidades para todos, legitimidade política e prática do padrão objetivo de justo expresso na Constituição, como objetivo fundamental do artigo ., inciso I: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”. Ou seja, transmudar a tradição brasileira de séculos em consciência constitucional e em sua prática. Construção de uma sociedade imune a incêndios, na qual a Constituição, real e efetiva, esteja de tal modo incorporada à tradição, que nem o fogo das inconstitucionalidades seja capaz de destruí-la. Isso porque estará escrita não em folha de papel sim naqueles livros que nunca foram impressos. Livros imateriais compostos pelos próprios cidadãos e cidadãs, conscientes, ativos e participantes, ou seja, uma Constituição cuja essência seja o próprio povo brasileiro.

    Rodrigo Pires da Cunha Boldrini é Mestre e Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), onde integra o programa de Pós-Doutorado em Teoria do Estado Brasileiro. Bacharel pela Unesp/Franca. Professor Doutor, de Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional, do Centro Universitário Max Planck, Indaiatuba/SP, onde coordena a área de estudo e pesquisa em Ciências Sociais Aplicadas.

    [1] LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição? Trad. Ricardo Rodrigues Gama. 2.ed. Campinas: Russell Editores, 2007, p. 23 e 22.
    [2] HOBBES, Thomas. Do cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 37.
    [3] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. In: Estudos Avançados, São Paulo: IEA, v. 14, n. 40, a. 16, set./dez. 2000, p. 174.
    [4] PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano. Edição em Língua Portuguesa. Nova Iorque: PNUD, 2014, p. 105.
    [5] BRASIL. Comunicado n. 159: duas décadas de desigualdade e pobreza no Brasil medidas pela Pnad/IBGE. Brasília: IPEA, 2013, p. 26.
    [6] BOLDRINI, Rodrigo Pires da Cunha. Capítulo 5 – A experiência na disciplina Teoria do Estado Brasileiro I: um estudo a respeito da formação das instituições políticas brasileiras no século XIX. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.); GASPARDO, Murilo (org.). Teoria do Estado: sentidos contemporâneos. São Paulo: Editora Saraiva, p. 167-195, 2018.
    [7] DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 65-83.
    [8] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1991, p. 24.

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