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25 de Abril de 2024
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    A Constituição não é sua por direito – Pelo fim da Ingenuidade Constitucional

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Por José Carlos Garcia

    Ingressei no curso de Direito da UFRGS em março de 1985, e formei-me em dezembro de 1989. Período riquíssimo da nossa história, começa imediatamente após a campanha das Diretas-Já e finaliza pouco depois da promulgação da Constituição de 1988 e das primeiras eleições presidenciais diretas após o Golpe de 1964. Fazíamos, então, uma crítica ferrenha ao positivismo jurídico e à sua incapacidade de lidar com o que nos parecia além do direito posto: anseios e lutas por reconhecimento a uma existência digna. Direito Achado na Rua, Direito Alternativo e Nova Escola Jurídica eram fontes inesgotáveis de inspiração e crítica, e seus ecos ainda nos seguem até hoje – inclusive no nome desta coluna, Direito e Avesso, que batizava o boletim da Nova Escola Jurídica, cujo grande expoente era o saudoso Roberto Lyra Filho, e inúmeras gestões em Centros Acadêmicos de Faculdades de Direito em todo o país.

    Não havia o espaço acadêmico que hoje há para discussões sobre concepções dialógicas de direito e democracia, ação comunicativa, políticas identitárias, problematizações sobre os limites da lei, os fundamentos de sua moralidade e de sua legitimidade, a crítica ao paradigma colonial e as questões de decolonialidade, ao reconhecimento da luta por direitos epistêmicos, na feliz expressão de Walter Mignolo [1]. Estas leituras (ou, mais realisticamente, as que as antecederam) eram rigorosamente paralelas, extraclasse, e mais ou menos restritas a quem atuava no movimento estudantil ou gravitava em torno dele.

    Quando denunciávamos o juspositivismo, denunciávamos suas limitações epistêmicas, sua falsa pretensão de neutralidade, sua subordinação a uma técnica que não considerava seus efeitos sociais – portanto, desconectada de sua própria historicidade. Denunciávamos, também, sua versão tupiniquim, a jaboticaba kelseniana em que nem os postulados mais elementares do pensamento de Kelsen se preservavam: um positivismo que interpretava a Constituição à luz da lei, a lei à luz do decreto, o decreto a partir da portaria, a portaria a partir do guarda da esquina. Em suma: um juspositivismo sem teoria kelseniana das normas e sem norma hipotética fundamental.

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    Experimentávamos um clima de ampla expansão de direitos, com o fortalecimento dos movimentos sociais e populares que haviam sido perseguidos ou proibidos pelo regime militar. Mesmo após 21 anos de ditadura, jamais nos ocorreu, à época, que precisássemos retroceder para defender a Constituição e a lei como paradigmas de civilização contra a barbárie – denunciávamos a barbárie que se produzia à sombra das lacunas fáticas da lei. O texto da nova Constituição e das leis era-nos um patamar assegurado, conquistado, mesmo quando se falava, em tom ameaçador, em risco de retrocesso. Este tempo, de retroceder um passo para defender a trincheira da civilização, não era ontem, há 30 anos. É hoje.

    Hoje é o tempo em que, no mundo e no Brasil, vemos abalados os fundamentos do constitucionalismo moderno, construído por uma história de lutas sangrentas, desde que as tropas dos barões ingleses cercaram Londres e impuseram ao Rei João a Magna Carta e os rudimentos do que viriam a ser o devido processo legal e as limitações ao poder de tributar, por exemplo. E de 1215 para cá foram pouco mais de 800 anos de transformações do constitucionalismo e dos sistemas jurídicos – não de uma evolução abstrata, metafísica, como às vezes nos ensinam em alguns bancos de faculdade de Direito: 800 anos de guerras, rebeliões, greves, massacres, guerras civis, revoluções, golpes de Estado, genocídios, assassinatos, guerras mundiais, que forjaram duramente aqueles princípios e regras que nós hoje consideramos naturais, expressões que repetimos ingênua e despreocupadamente: devido processo legal; presunção de inocência; contraditório e ampla defesa; liberdade de expressão; liberdade de manifestação; direito de greve; julgamento por juiz imparcial; limitação do poder do juiz pela definição legal de sua competência; punição apenas para ilícitos previamente previstos em lei.

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    Por vezes estas expressões nos parecem uma paisagem familiar que nos acompanha desde a infância. São como um avô ou avó muito queridos que sempre povoaram nossas vidas e lembranças, mas a quem, hoje velhos, já não damos tanta atenção, imaginando, também ingenuamente, que sempre estarão ali para nós. Um dia, acordamos e recebemos a notícia de que estão gravemente doentes, internados, ou que se foram. Este dia é hoje.

    Hoje é o dia de entendermos que aqueles direitos podem não existir amanhã. Para muitos, já não existiam – estavam impressos nos textos, mas não impressos nas vidas. Quantas pessoas têm seus direitos mais elementares desrespeitados todos os dias nas favelas deste país? Quantas mulheres são caçadas por seus companheiros até a morte, sem que ninguém os perturbe? Quantos neste momento vivem nas ruas, sem teto e pão, ante a indiferença dos demais? Quantos gays, lésbicas e trans são agredidos e assassinados, sem que aqueles direitos escritos no papel lhes protejam da mão discriminatória?

    Mas hoje, e esta é a triste novidade que se anuncia, estes direitos se vão apagando também dos textos. E se saem até mesmo dos textos, perdem sua força simbólica de coesão, sua força normativa, sua pretensão de validade e de efetividade [2].

    Veja-se a reforma trabalhista, a enorme precarização do trabalho que ela engendrou, o enfraquecimento da possibilidade de demandar em juízo, com menores riscos, as verbas que os trabalhadores entendem lhes serem devidas numa relação jurídica e social que é por definição desigual, hierarquizada.

    Veja-se o debate no Supremo sobre limites da presunção de inocência: estamos mesmo mexendo por interpretação judicial em um dos alicerces do art. 5.º da Constituição, que não pode sequer ser objeto de emenda constitucional?

    Veja-se o uso abusivo de delações premiadas, utilizadas sem respaldo em outras provas que lhes deem suporte, como fundamento de condenações criminais.

    Veja-se o uso criativo, em boa hora inibido pelo Supremo, da condução coercitiva dos acusados no contexto de uma sociedade de espetáculo na qual a exposição à expiação pública funciona já como uma forma de punição indireta, ilegal, de constrangimento social, de amaciamento dos acusados – expediente há muito usado pelos programas de televisão do chamado “mundo cão” com acusados pobres, muitas vezes negros.

    Veja-se o uso massivo da grande mídia e das redes sociais, inclusive a partir de incitações indevidas de militares de alta patente, para ameaçar e constranger juízes e tribunais a decidir de certa maneira – fato que se deu recentemente tanto em julgamento de habeas corpus pelo Supremo Tribunal Federal, quanto em episódio envolvendo desembargador plantonista que, certa ou errada sua decisão, pouco importa, era o único juiz com jurisdição sobre os processos que lhe foram apresentados em plantão.

    Veja-se a facilidade com que o princípio da soberania popular, pilar dos estados democráticos, foi achincalhado, retorcido, para apear ilegalmente do poder uma presidente eleita por 54 milhões de votos sem qualquer comprovação categórica de crime de responsabilidade, segundo, inclusive, parecer da área técnica do Senado [3].

    Todos estes elementos são, ou deveriam ser, estruturantes de uma Constituição democrática. Não são palavras-paisagem que nos acompanharão sempre. Elas podem ser agredidas, roubadas, destruídas. Ou, o que é mais comum, esvaziadas de sentido, transmutadas, convertidas em coisas que elas não são e que não se comunicam com sua história, com sua arqueologia, com sua pulsação de vida:

    Milhares de trabalhadores e trabalhadoras foram reprimidos, presos, e assassinados para que existissem leis protetivas do trabalho, compensatórias das disparidades sociais e econômicas entre empresas cada vez mais concentradas e oligopolizadas e empregados seguidamente empobrecidos diante do capital;

    Milhares de pessoas foram mortas ou supliciadas pelo simples desejo de reis e imperadores sem qualquer acusação formal, sem lei prévia que definisse seus crimes, e depois em revoluções que derrubaram despotismos os mais variados, para que houvesse devido processo legal, exigência de lei prévia para punição, respeito aos direitos do preso e do acusado;

    Quantos morreram para se estabelecer a subordinação hierárquica dos militares ao poder civil democrático eleito pelo povo, assegurando-se que quem tem as armas não pode exercer o poder político?

    Quantos morreram para definir que o povo deve ser soberano para eleger seus governantes, sem influências antidemocráticas derivadas do poder econômico ou de interesses inconfessáveis que se apresentam como neutros, e que apenas em condições excepcionalíssimas estes governantes eleitos poderiam ser depostos, em casos acima de qualquer dúvida razoável?

    Superar a ingenuidade constitucional é entender que estas premissas não estiveram sempre aí e poderão deixar de estar novamente. Elas são conquistas históricas que não decorrem de nenhuma evolução metafísica do pensamento, mas de lutas populares e de revoluções – as duas mais marcantes, sem dúvida, as grandes revoluções burguesas do século XVII, a Revolução Americana e a Revolução Francesa – e, de um modo totalmente diferente, da Revolução Russa de 1917 e das duas Guerras Mundiais, com seus milhões de mortos.

    Superar a ingenuidade constitucional é compreender que essas premissas apenas permanecerão se também nós lutarmos por elas. Uma Constituição não é algo que os povos têm por direito natural. Os povos conquistam suas Constituições, e devem merecê-las.

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    Em sociedades democráticas, o fundamento de obrigatoriedade e de eticidade da lei, do direito e da jurisdição não repousa em nenhum a priori formal – ele deriva diretamente da fonte democrática do poder e do caráter democrático do seu exercício. Ele deriva do caráter dialógico da sua elaboração e do caráter dialógico da sua interpretação e aplicação em processos deliberativos abertos [4].

    Por isso, nada, nenhum objetivo, por mais relevante que seja, deve romper esse fluxo vivo que conduz da participação, ao menos potencial, direta e indireta dos cidadãos à exigência de sua submissão à lei e à decisão judicial. Se este fluxo é rompido – seja porque se pretenda combater a corrupção, iluminar os ignaros para civilizá-los ou assegurar a efetividade da lei penal, pouco importa, se este fluxo é interrompido, o fundamento ético de validade do direito, que é correlato ao seu fundamento político de validade, se esvai, porque a conduta que reconhece o outro como sujeito de direitos capaz de exercitá-los autonomamente é o fundamento dúplice de validade, ético e político, da própria possibilidade de Constituição democrática e de Estado democrático.

    Por isso não somos mais ditos súditos, como no absolutismo, e sim cidadãos: porque já não somos subordinados ao soberano – nós somos, em conjunto, potência e ação, o soberano – como sinteticamente expresso no parágrafo único do art. 1.º da nossa Constituição. Quando este fluxo de legitimação se rompe, o espaço se abre ao autoritarismo, à ditadura e ao fascismo social, que se fundam no não reconhecimento do outro e em sua transformação em inimigo a ser eliminado [5]. Contra ele, somente se pode lutar sem ingenuidade constitucional, engajando-nos na defesa ativa e militante da Constituição, de seus fundamentos ético-políticos, na concretização de sua força simbólica (política) e na rejeição do discurso fácil de abrir mão de direitos para assegurar direitos.

    José Carlos Garcia é Doutor e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio; membro do Grupo de Pesquisa Democracia, Cidadania e Estado de Direito da UFF; foi Vice-Presidente da 2ª Região da Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE (2004-2006) e Presidente do Centro Acadêmico André da Rocha – CAAR, Gestão Direito & Avesso; é filiado à Associação dos Juízes para a Democracia – AJD; é Juiz Federal desde 1996.

    [1] MIGNOLO, Walter D. La idea de América Latina: La herida colonial y la opción decolonial. Barcelona: Gedisa, 2007.

    [2] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1991. Nessa conhecida obra, repisa o célebre constitucionalista alemão: “Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade” (Op. cit., p. 25).

    [3] https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/27/política/1467040634_118457.html; http://g1.globo. com/jornal-nacional/noticia/2016/06/pericia-conclui-que-dilma-nao-participou-de-pedaladas-fiscais.html; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1786059-dilma-agiu-para-liberar-credito-mas-nao-em-pedaladas-diz-pericia-do-senado.shtml; todos os acessos em 15/08/2018.

    [4] Kant situa a autonomia, tida como o uso público da razão, como fundamento dos sistemas jurídicos modernos, para concluir que “uma pessoa pode ser submetida tão somente às leis que ela mesma se dá (seja a ela sozinha, seja a ela ao mesmo tempo que a outros)” (KANT, Emmanuel. Doutrina do direito. 3. ed. São Paulo: Ícone, 2005, p. 37). Sob o aspecto da legislação, as pessoas desempenham um duplo papel, de legislador e de destinatário da norma, de cidadão e de sujeito de direito. Habermas, retomando esta noção (Direito e democracia entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, 2 v.), salienta que a vinculatividade dos sistemas jurídicos modernos não decorre da simples positividade de suas normas, mas do fato de que seus destinatários poderiam, ao menos em tese, participar do processo público de debates que redunda na aprovação de suas normas. Klaus Günther, articulando ambas concepções, desenvolve a noção de pessoa deliberativa, que conecta as dimensões de cidadão e sujeito de direito (GÜNTHER, Klaus. “Qual o conceito de pessoa de que necessita a teoria do discurso do direito? Reflexões sobre a conexão interna entre pessoa deliberativa, cidadão e pessoa de direito”. Revista Direito GV, n. 3, pp. 223-239, jan.-jun. 2006). Para mais detalhes, e a vinculação destas elaborações com uma releitura do conceito de intérpretes não profissionais do direito em Häberle, ver minha tese de doutoramento (GARCIA, José Carlos. Nas fronteiras da Constituição: O MST entre reivindicação, protesto e cidadania. Orientadora: Gisele Cittadino. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (mimeo.), 2013. Disponível em http://www.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/ 0921360_2013_completo.pdf, acesso em 15/08/2018, pp. 169 a 180).

    [5] Fascismo social é expressão que envolve ao menos duas acepções: numa, implica a permanência ou utilização tópica de elementos constitutivos do fascismo como técnicas regulares de governo em regimes formalmente democráticos, suspendendo localizadamente no tempo ou no espaço, ou para certas pessoas, as garantias próprias de um regime constitucional liberal, como a presunção de inocência, o direito de defesa, o direito à intimidade etc. (AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13); noutra, se trata mais de um regime social e civilizacional, uma forma inédita de “fascismo pluralista” que se articula pela segregação dos excluídos, pela usurpação de prerrogativas estatais por agentes privados, e pela manipulação da insegurança de pessoas ou grupos sociais vulnerabilizados através da precariedade do trabalho ou outras medidas (SANTOS, Boaventura de Souza. “Os fascismos sociais”. 07/11/2010. Disponível em https:// norbertobobbio.wordpress.com/2010/11/07/os-fascismos-sociais/. Acessado em 16/08/2018).

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