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26 de Abril de 2024
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    O uso dos celulares na prisão – Da Série “como fomentar aquilo que se quer coibir”

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Era um lado da conversa. Nessa ponta do telefone, um rapaz com calça, camiseta, chinelos de dedo e meias, roupa suficiente para proteger-se do friozinho do outono. Os cabelos molhados e os trajes limpos, acusavam o preparo para aquele momento. Mesmo sem poder ser visto, queria estar bem para entrar em contato com o pedacinho do mundo que lhe dava sentido. Atrás dele, com uns três metros de distância, mais alguns homens aguardavam sua vez. E era assim todos os dias ao anoitecer.

    O horário das ligações era a minha deixa para terminar os trabalhos na parte interna. Os presos tinham coisas mais interessantes para fazer do que falar com a psicóloga.

    Naquela época, celular na cadeia era coisa rara. Para dar vazão à necessidade de saber da família, fazer um mimo e ligar no aniversário de alguém, resolver um problema de documentação, pedir um remédio para trazer no dia da visita ou falar com o advogado, havia o telefone público.

    Isso pode soar estranho agora, mas era cena corriqueira em muitas prisões brasileiras. O orelhão, que também caiu em desuso nas cidades, era peça típica de pátios e corredores nas cadeias. Onde eu trabalhava, lembro daquele que ficava no corredor da Cadeia Velha, do lado da carceragem, lado oposto da nossa sala. Antes de “passar a tranca”, horário que os presos eram recolhidos nas celas, um grupo deles em esquema de rodízio podia usar o telefone. Ligavam a cobrar ou com cartão. Era perceptível um bom senso no uso do tempo, porém, para os mais faladores ou por uma situação que exigisse, vigia o código de ética local de não interromper evento tão sagrado.

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    Não era incomum uma lista de recados. Aqueles que não podiam ir no dia ao maquinário encurtador de espaços, avisavam da chegada de uma progressão de regime, da mudança de ala que implicava na troca do dia da visita, ou outras coisas assim urgentes que seriam repassadas aos familiares conhecidos.

    Também acontecia de alguém sair nocauteado, uma notícia boa às vezes é mais desestruturante do que as dificuldades de sempre. Quando uma pessoa se acostuma a conviver com o isolamento, a frustração e a espera, a felicidade pode atingi-la de forma fulminante.

    Haviam temas interditos. Além do controle natural pelo espaço compartilhado com outros presos e pela proximidade da carceragem, o tipo de assunto que se conversa com as pessoas de fora passa por uma filtragem cultural. Das quinze entrevistas em profundidade que fiz com pessoas presas na pesquisa de mestrado, treze foram respostas como essa: “Não converso os assuntos da cadeia, já tem problemas que chega lá fora, no dia a dia. Não adianta falar daqui, vão ficar preocupados, mas não podem me ajudar”. As questões de convívio na prisão não são exploradas, “pesa a caminhada” da família o que faz “pesar a própria cadeia do preso”.

    Pois bem, essa necessidade de comunicação não desapareceu. Inclusive ela é um direito daqueles que a pessoa mantém mesmo presa porque, como parece óbvio, mas não é, a privação é da liberdade – direito de ir e vir -, não do direito à saúde, à educação, à dignidade e, também, à comunicação, só para dar alguns exemplos. Para os legalistas (que saudades de vocês, voltem!), aí vai:

    As Regras da ONU para Tratamento dos Prisionais definem que eles “devem ter permissão, sob a supervisão necessária, de comunicarem-se com seus familiares e amigos, periodicamente: (a) por correspondência e utilizando, onde houver, de telecomunicações, meios digitais, eletrônicos e outros; e (b) por meio de visitas” (Regra 58);

    A liberdade de comunicação para todos é prevista no inciso IX do art. da Constituição Federal;

    E a Lei de Execução Penal define como direito do preso: “XV – contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes” (Art. 41).

    Não se ignora a existência dos grupos criminais nas prisões e o seu relacionamento com delitos nas ruas, mas vamos examinar com mais atenção a solução que encontramos para “evitar” a ação deles.

    Admitindo como premissas que é possível restringir direitos (e, portanto, violar leis) e que é mais eficaz proibir do que gestionar, a burocracia administrativa prisional retira as formas de comunicação como telefones públicos e passa a ler as correspondências dos presos. E progressivamente, com o apoio da mídia, induz o Estado a criminalizar condutas e reprimir tais condutas com procedimentos invasivos.

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    Normas e julgados pipocaram nos últimos anos sobre o uso do celular, o uso da internet e o ingresso de aparelhos celulares nos estabelecimentos prisionais. Também se observou um movimento alvissareiro da potente indústria de equipamentos e tecnologias, cara e programavelmente obsoleta por natureza, para dar vazão ao urgente desembolso financeiro de dinheiro público com bloqueadores de celular e body scanner.

    Mas o humano continua lá. Não havendo mais orelhão ou outras formas regulares de comunicação, instalou-se a ilegalidade como alternativa: chegamos a era dos celulares nas prisões. Com estratégias de ingresso/contrabando que envolvem corrupção de agentes públicos, vulnerabilização de visitantes como mulas, artimanhas arremessadoras que vão de pombos correios a drones, temos o seguinte efeito: nunca se falou tanto e de forma tão descontrolada dentro das prisões.

    Como o processo de entrada e uso de celulares demanda planejamento, diferentes pessoas, poder e dinheiro, fomentou-se a organização. Aquilo que era um ato individual, passou a ser sofisticado trabalho de equipe envolvendo distintos stakeholders.

    Não bastasse esse upgrade criminológico organizacional advindo da nova possibilidade de negócio e da imposição da dependência por esse serviço dentro das prisões, fora delas também não houve o resultado esperado com a negação do direito à comunicação. Considerando que o crime tem suficiente contingente de pessoas e dinâmicas de disputas próprias na rua, a violência e a criminalidade é ascendente.

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    Há quem diga que não proibimos o suficiente, insistindo na mesma estratégia que está gerando mais problemas que benefícios. Avaliem, não seria mais justo, proporcional, barato e eficaz controlar apenas o grupo de presos que faz uso impróprio da comunicação com toda a sofisticada tecnologia que temos à disposição do que submeter toda a massa carcerária às mesmas restrições que esse grupo mereceria, obrigando a administração dos presídios a dar conta de milhares de infrações, reforçando assim a resistência à regra? Ou, em outras palavras, não seria melhor tratar o comportamento banal como banal e a exceção como exceção, ou seja, permitir a comunicação banal dos presos com seus familiares e punir apenas as comunicações impróprias (aquela que organiza crimes fora da cadeia, por exemplo)?

    Estamos diante do típico exemplo de como o proibicionismo promove a criminalidade. Ao impedir aquilo que é necessidade básica do ser humano, o sistema penal estimula o comportamento infrator, o subterfugio, a negação da regra, pois ela é injusta e impossível de ser cumprida. Quanto mais repressão, mais resistência; quanto mais supressão de direitos, mais violência; quanto mais distanciamento, mais desconhecimento.

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    Avaliar o tema da comunicação nas prisões dispensando as chaves cognitivas que estão condicionadas por um discurso simplista e fatalista é fundamental para termos uma política que não trate as exceções como regra ou use casos muito tristes para justificar decisões e normas de longo alcance que não dão conta do problema a que se propõe. Inclusive, as mesmas preocupações inspiram experiências distintas em países como Estados Unidos, Argentina e França. O que nos faz tão rapidamente ignorar o contexto complexo da prisão e perseverar em falsas soluções?

    Por fim, um convite: temas como esse fazem parte das concepções e práticas das políticas penais e serão discutidos no I Seminário Internacional de Gestão de Políticas Penais, nos dias 19 e 20 de setembro, em Brasília. Mais informações no site www.labgepen.org.

    Valdirene Daufemback é psicóloga, doutora em Direito e integrante do Laboratório de Gestão de Políticas Penais da UnB. Foi Ouvidora e Diretora do Departamento Penitenciário Nacional. Acredita na promoção de políticas públicas e numa visão interdisciplinar e comunitária para termos um mundo melhor para todxs.

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