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25 de Abril de 2024
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    “O senhor pegou tudo o que a gente tinha, o senhor vai quebrar o meu braço”

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Códigos antigos.

    Foram as palavras que ouvi do homem de farda enquanto ele torcia violentamente o braço negro de um menino de olhos molhados, cujo topo da cabeça não alcançava sequer os seus ombros.

    Na sequência, gritos, acusações, ameaças dirigidas a mim, pelo simples fato de aproximar-me com ar de reprovação daquela cena.

    Eram três da tarde. Praça dos bombeiros, centro de Santa Maria. Inverno gaúcho.

    O sol que despontara em meio a tantos dias cinzas, frios e úmidos convidara a vizinhança a sair de suas tocas com as crianças e os cachorros. Para além do movimento que a condição climática proporcionava, era evidente que algo mais acontecia.

    Percebi com curiosidade um homem alto, branco, fardado que fitava concentradamente com seus olhos azuis uma esfarrapada bola de futebol em uma das mãos, enquanto a girava para um lado e para o outro. Quantos lados tem uma bola? Lembrei em pensamento do joguete infantil. Dois: o de dentro e o de fora.

    Ri internamente, e logo desviei o olhar, que encontrou outro homem, mesma farda, abrindo tampas de bueiros e outros objetos pelo chão. Sim, procuram alguma coisa, pensei. Foi um instante até que eu percebesse dois camburões, duas motos e outros dois homens fardados. Três meninos em pé tinham as mãos atrás da cabeça. Um quarto era submetido ao tratamento antes descrito. Os gritos do homem de farda poderiam ser ouvidos de qualquer dos cantos da praça:

    A resposta trêmula, apenas quem chegasse muito perto poderia ouvir:

    Peguei minha cusca no colo e me aproximei. Não precisei abrir a boca. Com todos os meus privilégios de mulher branca letrada residente no centro da cidade, a mim coube outro tipo de violência, de acusação e, à sua maneira, de explicação:

    O livro Punir os jovens? havia sido enviado à editora em janeiro do mesmo ano. O Mídias e discursos do poder, que sai agora, havia sido a tese defendida em 2013. Nada de seu conteúdo poderia ser minimamente instrumentalizado para defender os meninos naquele momento. Não havia palavra ali. As aulas de processo penal que dera durante todo o semestre, as disciplinas de direito infracional que lecionei no passado, toda a carga de leituras e experiências nesse campo eram nada. Nada. Pensei na pressão que cada um daqueles policiais sofre cada dia nas ruas, o risco que correm, o pouco que ganham – em dinheiro e em reconhecimento. Mas também pensei na desproporção daquilo: a busca pela maconha nos lados da bola e no interior dos bueiros tinha claramente o objetivo de garantir que os meninos fossem representados por tráfico e não por consumo. O que efetivamente se montava naquele cenário? O que eu via?

    Eu via um crime de tortura; um crime de abuso de autoridade e uma ameaça de um lado. Do outro lado, um porte para consumo de uma quantidade provavelmente ínfima de maconha que eu sequer enxergara. Sobre qual crime eu deveria testemunhar caso efetivamente fosse intimada? Qual é o “mundo do crime”, tão presente nos discursos políticos e midiáticos sobre adolescentes e ato infracional?

    Meu nervosismo me impediu de gravar seus nomes. A+ era o tipo sanguíneo bordado na farda. Sangue. Se tem algo que compartilhamos nessa vida, todos os mamíferos, é o sangue. Penso no sangue e penso na nossa fragilidade. Penso o quanto boa parte da academia, do alto de seus privilégios, se dá ao luxo de se dissociar do sangue, da vida e da morte, a ponto de que todo o consenso mínimo dos mínimos sobre as garantias penais liberais pudessem ser completamente desconhecidos, ou negados, ou repudiados naqueles gritos “sanguíneos”.

    Lembrei que o tema da aula de processo penal dois daquela manhã havia sido a prova no processo penal. Que ironia. Brocardos latinos repetidos. “Nemo tenetur se detegere“: ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. “Cadê a maconha?”. Olhos molhados que me fitavam com o desespero de quem – apesar de sua imaturidade – sabe muito melhor do que qualquer outra pessoa que seu corpo é do tipo torturável, encarcerável, matável. Atrás dele, outros meninos, nascidos em outras peles, se divertiam no parquinho. Rabinhos de cachorros felizes abanavam para as pessoas que ali andavam tranquilamente. Ninguém viu nada. Ninguém. É como se aquilo fizesse parte da paisagem.

    Se a pessoa torturada para obtenção de prova na praça, no centro da cidade, às três da tarde fosse eu, seguiriam rodando as rodas de chimarrão? Essa cegueira/ indiferença/ legitimação ocorreria se fossem os torturados os meninos brancos do parquinho?

    Lembrei do exemplo que dava nas aulas de crítica do direito infracional para explicar a necessária superação do termo “menor” no período pós-Estatuto da Criança e do Adolescente. Perguntava eu: Se vocês estão diante de um parquinho de crianças brincando, você diz “olha que amor aqueles menores brincando?” Não. Queria que meus alunos estivessem ali para ver a ironia do momento. Ali, estampada naquela cena, estava o objeto permanente da denúncia que tantas lutadoras e lutadores fizeram na batalha pela compreensão de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos: historicamente, crianças e menores foram de fato signos que significavam coisas diferentes, ou melhor, de um lado sujeitos, de outro, coisas.

    Aos poucos fui me acalmando, e outro homem de farda se aproximou, na típica estratégia tira mau, tira bom. Calmamente afirmou que era formado em direito. Eu finalmente pude dizer algo, perguntar como é que eles poderiam considerar correto agir de maneira criminosa na suposta tentativa de “combater o crime”.

    A resposta:

    Legalidade negociável: essa sempre foi a lei, determinada pelo poder que uma pessoa tem para excepcioná-la, e, claro, do mais ou menos vulnerável que uma pessoa seja perante quem o detém.

    Mas aqui quero falar de outros códigos, quero falar dos códigos através dos quais miramos a infância e a adolescência. Com que códigos construímos o discurso e transitamos com maior ou menor facilidade nos meios político, midiático, acadêmico, no bar, na esquina, na igreja? Por que o castigo continua sendo o principal código a decifrar condutas contrárias à norma penal praticadas por adolescentes?

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    Com este texto, redigido à flor da pele, quero divulgar a obra recém lançada por mim e pelo Riccardo Cappi, com a colaboração do grupo de pesquisa Poder Controle e dano social da Faculdade Meridional (IMED).

    Punir os jovens? A centralidade do castigo nos discursos midiáticos e parlamentares sobre o ato infracional resulta de pesquisa financiada pelo CNPq, desenvolvida nos anos de 2015 a 2017. Nela, dialogamos com resultados de pesquisas anteriores para compreender quais discursos foram mobilizados quando da aprovação da redução da maioridade penal (PEC 171/1993) na Câmara dos Deputados e do aumento do prazo de internação (PL 33/2015) no Senado Federal, na interação com os meios de comunicação hegemônicos.

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    Os trabalhos anteriores a que me refiro são a tese de doutorado do Riccardo Cappi, defendida em 2010 na Universidade de Louvain, na Bélgica, e publicada pela Letramento/Justificando em 2017 com o título A maioridade penal nos discursos parlamentares: motivos do controle e figuras do perigo;e a minha tese de doutorado, defendida na Universidade Federal do Paraná, em 2013, e que está entre os lançamentos da editora Revan para este ano, com o título Mídias e discursos do poder: estratégias de legitimação do encarceramento da juventude pobre no Brasil.

    Diferentemente destas duas obras, Punir os jovens? está disponível para download gratuitamente aqui.

    Espero que as reflexões ali trazidas possam ser lidas, digeridas, analisadas, questionadas, repercutidas. Quem sabe alguns desses códigos, tão antigos, e tão facilmente circuláveis possam ser efetivamente postos em xeque, dando-nos palavras para indagar: Por que ele precisa ser punido, homem de farda?

    Marília de Nardin Budó é Professora de Direito na Universidade Federal de Santa Maria.

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