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18 de Abril de 2024
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    Novos crimes sexuais na lei: avanço ou armadilha?

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Neste último 07 de agosto, o Senado aprovou proposta de alteração do Código Penal[1] em artigos referentes a crimes contra a dignidade sexual, e que pretende ser um “combo” de combate à violência contra as mulheres elaborado a partir de casos de grande repercussão na imprensa: as justificativas dos projetos mencionam expressamente o caso de estupro coletivo sofrido por quatro adolescentes no Piauí em 2015; o outro sofrido por uma garota de 16 anos no Rio de Janeiro, filmado e divulgado na internet; e, por fim, o caso do rapaz que ejaculou no pescoço de uma moça quando ambos se encontravam no interior de um ônibus na Avenida Paulista, em São Paulo em 2017 (o artigo “Do molestamento de cetáceos ao de mulheres: os problemas das leis penais ao saber do momento”, aborda toda a tramitação dos projetos e respectivas justificativas).

    A aprovação dos textos tanto na Câmara quanto no Senado se deram estrategicamente em datas simbólicas, como é típico das legislações que esperam a saudação dos aplausos: a Câmara dos Deputados aprovou em 07 de março deste ano o PL 5452/2016, possibilitando seu anúncio no dia 08 de março, Dia Internacional da Mulher; e o Senado, como já mencionado, no dia 07 de agosto, que é aniversário da Lei Maria da Penha. Mas não é essa a única peculiaridade sobre o instante em que essa lei é aprovada: ainda que se trate de obra do acaso, não é a primeira vez que um projeto de lei penal para pretensa proteção às mulheres é aprovado exatamente no momento em que outra discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos está em andamento: se na última semana acompanhamos a Audiência Pública realizada no STF sobre a discriminalização do aborto, a Lei do Feminicídio foi aprovada em março de 2015, no mesmo período em que era desarquivado o projeto de lei de autoria de Eduardo Cunha (então presidente da Câmara), que pretende criar obstáculos para oferecimento de contracepção de emergência (a “pílula do dia seguinte”) para evitar a gravidez em mulheres vítimas de estupro[2] (o artigo “Sobre o feminicídio: apagando incêndio enquanto joga lenha na fogueira“trata desta questão).

    O texto aprovado pelo Senado e encaminhado à sanção presidencial padece de vários problemas habituais da péssima técnica legislativa dos parlamentares brasileiros, e, à exceção da revogação do vetusto artigo 61 da Lei de Contravencoes Penais – que prevê a conduta de “importunação ofensiva ao pudor”, com pena de multa calculada em mil-réis – todas as as demais propostas da lei são merecedoras de críticas sérias. Por ora, a mais urgente deve ser feita ao substitutivo da deputada Laura Carneiro (DEM-RJ), apresentado dia 05 de setembro de 2017 (ou seja, dois dias após “o caso do ônibus na Avenida Paulista”), criando a figura da “importunação sexual”, aprovado no Senado com a seguinte redação:

    Importunação sexual

    Art. 215-A. Praticar, na presença de alguém e sem a sua anuência, ato libidinoso, com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro:

    Pena – reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constitui crime mais grave.”

    A conduta descrita na proposta sequer disfarça que sua redação foi pensada sob medida para o caso concreto ocorrido no coletivo na Avenida Paulista, o que foi reafirmado na justificação apresentada pela deputada. Vejamos as possibilidades que esse artigo pode trazer, caso sancionado pela Presidência: a deputada pensou em prever na lei o caso da masturbação em local público. Porém, para todos os outros casos de “encoxadas”, apalpadelas, passadas de mão e outros abusos sexuais praticados no interior dos meios de transporte público e fora deles, permanece o vácuo legislativo que obriga o julgador a optar entre as penas de 06 a 10 anos de reclusão do crime de estupro, pois ao empregar o termo “na presença de alguém” o novo texto também não permite abarcar essas situações. Aliás, quem é esse alguém? Qualquer pessoa que presencie o “ato libidinoso”? O tipo penal não esclarece.

    Por outro lado, a redação casuística não considerou que pode haver outras interpretações para o texto: como convencer um magistrado conservador de que o beijo trocado entre um casal em local público não configura o crime descrito neste artigo, se a “vítima” registrar na delegacia a ocorrência de ter presenciado um ato libidinoso sem sua anuência? Isso para nem entrar nos riscos que essa redação pode representar para a população LGBTT, já tão recorrentemente perseguida em espaços públicos tão-somente por demonstrações de afeto entre parceiras e parceiros do mesmo sexo. Aliás, vale ressaltar que o texto do artigo sequer estipula que o ato libidinoso tenha que ser praticado em local público: um voyeur que, ao espiar pela janela de um vizinho, “flagre” o casal que lá reside praticando sexo pode invocar o artigo questão e registrar um boletim de ocorrência, alegando não ter manifestado sua anuência?

    A dispensa de autorização da vítima na ação penal

    Outro grave problema da proposta aprovada é a dispensa da autorização da vítima – denominada “representação” no jargão jurídico – para instauração da ação penal em todos os crimes sexuais. O projeto aprovado pelo Senado propõe que todos os crimes contra a dignidade sexual sejam tratados como ações públicas incondicionadas (expressão técnica que identifica os processos penais que tramitam independentemente da vontade da vítima, o que é a regra geral no Processo Penal brasileiro). Na prática, isso significa que, uma vez feita a ocorrência pela autoridade policial (o famoso B.O.) ou alertado o Ministério Público, a investigação e o processo seguirão a despeito da vontade da vítima. Até o momento, crimes sexuais – salvo situações de estupro de vulnerável (menores de 14 anos ou demais pessoas sem condições de consentir) – são ações públicas condicionadas, isto é, estão ligadas ao expresso desejo da vítima em transformar a denúncia em processo judicial a partir de uma “representação” feita às autoridades, com o prazo de até seis meses corridos após o acontecimento dos fatos.

    Em 2012, medida semelhante foi tomada no tratamento dos crimes de “lesão corporal” sob a alçada da Lei Maria da Penha, quando se deixou de exigir a autorização da vítima para que seu agressor fosse criminalmente processado. A medida visava impedir a crítica de que, em se tratando de violência doméstica contra mulheres, autoridades judiciais incentivavam as mulheres a “retirar a queixa” (ou seja, a não fazer a representação) e, com isso, não seguir adiante nos processos. A reclamação também vinha do lado do próprio sistema de justiça, que alegava que muitas vítimas não prosseguiam com suas denúncias. A transformação da “lesão corporal” em crime que dispensa a autorização da vítima para que haja o respectivo processo sobrecarregou as delegacias especializadas no atendimento de mulheres e os juizados especializados, criando demora e insatisfação tanto para profissionais da justiça quanto para vítimas. Em muitas situações, esse fato é usado para desencorajar a denúncia, uma vez que “não se pode retirar a queixa” ou acaba assustando vítimas (ver “A Lei nas Entrelinhas: a lei Maria da penha e o trabalho policial. Lins, Accioly Beatriz. São Paulo: Ed. Unifesp, 2018).

    No caso dos crimes sexuais, é possível prever que a dispensa da autorização da vítima para dar início ao processo criminal terá efeitos ainda maiores. Considerando a dificuldade que vítimas de estupro encontram para relatar às autoridades o crime que sofreram e o estigma enfrentado por mulheres que passam por violência sexual, é razoável supor que a alteração da lei pode significar mais um desestímulo nesse sentido. Os crimes sexuais são profundamente subnotificados e tal mudança pode aumentar esse cenário.

    Entre outros muitos problemas do PLS aprovado pelo Senado, destacamos a criação da tipificação criminal sobre divulgação de imagens que visa aplacar demandas acerca do fenômeno que vem sido nomeado, mais comumente, de “vingança pornográfica” (ver mais em Lins, Beatriz Accioly. ‘Ih, vazou!’: pensando gênero, sexualidade, violência e internet nos debates sobre “pornografia de vingança”. CADERNOS DE CAMPO (USP), v. 25, p. 246-266, 2016).

    Além da falta de rigor na redação do texto, que não deixa exatamente claras as diferenças entre as diferentes formas de divulgação e suas possíveis vítimas, a tipificação descrevecomo crime apenas imagens de “sexo”, “nudez” ou “pornografia”. A exposição da intimidade de mulheres e meninas não envolve somente a existência da material visualmente explícito.Muitas vezes, há chantagem e extorsão na utilização desses conteúdos, ou seja, mulheres e meninas acatam a demandas por medo da exposição. Sobre essa possibilidade, que alguns chamam de “extorsão sexual”, nada consta no projeto.

    Por fim, vale dizer que novas leis penais somente se aplicam aos atos praticados dali em diante, ou seja, nenhuma das alterações aqui comentadas atingirão os fatos que as motivaram. Além disso, os textos dos projetos insistem no combalido – porém popular – argumento de se prever mais crimes e penas mais altas, pelo qual se supõe “combater a impunidade” e dissuadir potenciais criminosos. Não há qualquer evidência de que tal política atinja a finalidade pretendida: basta verificar, por exemplo, o novo recorde de mortes violentas no Brasil , em que pese as penas para o crime de homicídio ser classificado como hediondo desde 1990, e suas penas variarem entre 12 e 30 anos de reclusão.Aliás, a própria a deputada Laura Carneiro (DEM-RJ), afirmou nos debates sobre o projeto que “Nem mesmo a classificação do estupro como crime hediondo é capaz de impedir ou minimizar o cometimento dessa modalidade de crime”.

    Para que o projeto vire lei, é necessária agora apenas a sanção do presidente Michel Temer. Não seria uma surpresa sua aprovação pelo presidente. Como secretário de Segurança Pública do então governador de São Paulo Franco Montoro (PMDB), Temer assinou a criação das primeiras Delegacias de Defesa da Mulher, em 1985. Considerando o não envolvimento do presidente com demandas feministas, seu papel nesse importante episódio costuma ser utilizado como capital político.

    Transformar os movimentos feministas em modismos torna vantajosa a apropriação da militância para fins bem diversos daqueles relacionados aos direitos humanos das mulheres. Usar como gancho casos de violência contra mulheres repercutidos pela imprensa para produzir leis penais populistas pode ter efeitos deletérios. O ordenamento jurídico brasileiro – e, em especial, a legislação penal – é fértil em exemplos de leis feitas no calor do crime da moda. Na melhor das hipóteses, viram piada. No limite, tornam-se fundamento para arbitrariedades perigosas para as liberdades civis.

    Maíra Zapater é Doutora em Direitos Humanos pela USP e graduada em Direito pela PUC-SP, e Ciências Sociais pela FFLCH-USP. É especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Professora e pesquisadora. Autora do blog deunatv.

    [1] O texto aprovado foi o do Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 2, de 2018, ao PLS nº 618 de 2015, que tramitou na Câmara sob o nº PL 5452/2016, e que, uma vez aprovado na Câmara, foi novamente remetido ao Senado para votação do Substitutivo em questão. Todas as menções às exposições de motivos e pareceres das comissões podem ser acessadas nos documentos da tramitação, cuja íntegra pode ser conferida nestes links para o site da Câmara dos Deputados (http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2086414) e do Senado Federal (https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123183).

    [2] Tramitação disponível em: http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=565882

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