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26 de Abril de 2024
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    O direito humano da vítima só se realiza com amor ao próximo

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Falar sobre vítimas é falar sobre todos nós em uma sociedade tão violenta e criminógena como a nossa, mas, ao mesmo tempo, o uso do discurso da vítima como discurso político, como discurso manipulável para objetivos políticos suspeitos, confere cada vez mais poder.

    A Nova Zelândia foi o primeiro país a ter uma lei promulgada que verdadeiramente levava as vítimas de crimes em consideração, em 1964. Não por acaso, tal legislação tinha como base a legislação trabalhista, de 1956, o The New Zeland Worker’s Compensation Act, colocando as vítimas em um amplo espectro de proteção de uma rede previdenciária nacional.

    Como explica Marie GOTTSCHALK, a Inglaterra seguiu caminho parecido, incluindo os direitos das vítimas em medidas gerais, caracterizando tais direitos como “extensão do Estado de bem-estar social” (2006, p. 82), possibilitando que as vítimas de crimes fossem assistidas e até ressarcidas pelo Estado.

    Parece óbvio que ao se exaltar o direito da vítima como sendo o direito de ver alguém punido ou punido mais severamente, a classe política foge da responsabilidade de se preocupar com as reais necessidades das vítimas, abandonando a ideia de uma assistência efetiva.

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    Foi, como alerta a professora norte-americana citada, o que aconteceu nos EUA, onde a classe política fez uso do sentimento de rancor de quem é vítima para desviar a atenção das necessidades dessas próprias vítimas, pois nunca foi objetivo daquele país desenvolver uma previdência social para ninguém, quanto mais para as vítimas de crimes.

    É, como todos sabem, o que acontece no Brasil, onde a cada eleição, a cada manifestação de políticos, se fala no direito das vítimas como se esse direito equivalesse ao rigor na punição, e não à necessidade de assistência dessas vítimas que, às vezes, precisam ser ouvidas, protegidas e ressarcidas pelo Estado.

    Diante do desmantelamento da previdência, dos direitos trabalhistas e sociais que estamos presenciando, cada vez fica mais distante qualquer possibilidade de a vítima ser incluída em algum rol de direitos, principalmente porque as próprias vítimas restam iludidas com campanhas de rigor penal que nada trazem de direitos concretos.

    Quando um político fala que vai acabar com o auxílio reclusão, nada mais do que um direito previdenciário, assim o faz dentro de um contexto de precarização de todos os demais direitos previdenciários. A sociedade aplaude, porque deseja o sofrimento de todos os presos, inocentes ou culpados – o que já nem tem tanta importância – mas não percebe que tudo acontece em um momento de violação de diversos outros direitos.

    Em vinte e cinco anos como juiz da execução penal, conto nos dedos de uma mão os presos que receberam auxílio reclusão, porque a maioria não pagou por esse direito, não estava empregada no dia da prisão. Mas o escarcéu que se faz em torno desse auxílio é suficiente para que qualquer vítima esqueça das suas necessidades como vítima.

    Recentemente,um projeto de Lei (580/2015) de relatoria do senador Roberto Caiado, prevê que o preso deva ressarcir o Estado com as despesas de custódia. Mas a Lei de Execução Penal, desde 1984, no seu art. 29, já prevê que o preso deveria ressarcir o Estado, e a vítima, com o trabalho penitenciário. O que o legislador não sabe, faz que não sabe e não quer saber, é que não há trabalho penitenciário e, principalmente, que o preso precisa e quer trabalhar enquanto está preso.

    Assim as leis vão sendo feitas, desfeitas e refeitas tudo em torno do preso, do condenado, da pessoa tida como culpada, enquanto a vítima é esquecida no seu mais elementar direito de, por exemplo, ser bem atendida, ouvida,devidamente assistida, em uma delegacia de polícia, em uma vara de tribunal.

    É lógico que um Estado que abandona o seu trabalhador com a precarização das leis trabalhistas, age com descaso para com os idosos agravando leis previdenciárias, esquece seus jovens e estudantes diminuindo recursos em educação. É lógico que um Estado desses nunca vai investir no bem-estar de vítima alguma.

    Um detalhe que passa despercebido no discurso de vítima que impera no Brasil. O direito da vítima é um direito humano, assim, portanto, impossível os direitos humanos não se preocuparem com os direitos das vítimas, como se apregoa por aí para exacerbar o ódio e angariar votos.

    Colocar o sentimento de vítima contra os direitos humanos é colocar a vítima contra ela mesma. E, nesse ponto também, assemelhada ao próprio preso, dependendo, como dizia Pasoline, das “simpáticas pessoas que lutam pelo direito dos outros” (Apud GIGLIOLI, 2016, p. 97), pessoas cada vez mais raras.

    Nos países onde as vítimas tiveram direitos reais respeitados, foram associações de vítimas, bem orientadas sobre as suas necessidades concretas, as responsáveis pela efetivação desses direitos, impedindo que políticos inescrupulosos utilizassem de um sentimento para falar muito, ganhar eleições e não fazer nada.

    Não existe um Sr. Direitos Humanos que vai chegar, de terno e gravata, e salvar todo mundo. Direitos Humanos são leis pelas quais devemos lutar, direitos humanos são direitos nossos, para o nosso bem, e não se confundem, muito pelo contrário, se obstaculizam, com o desejo de ver outra pessoa sofrendo, sendo torturada ou morrendo.

    Os direitos humanos das vítimas, então, só se efetivarão na solidariedade e no respeito entre todos, até porque as vítimas já foram vítimas e a luta deve ser pelos outros, para que outros não sejam vítimas, para que outros não sejam esquecidos se forem, e quando forem, vítimas. Os direitos humanos das vítimas só prosperarão, como todos os direitos humanos, no amor ao próximo.

    Luís Carlos Valois é Juiz de direito, mestre e doutor em direito penal e criminologia pela Universidade de São Paulo – USP, membro da Associação de Juízes para Democracia – AJD, e porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition – LEAP (Agentes da Lei contra a Proibição).

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