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24 de Abril de 2024
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    Isenção ou censura? Uma análise das diretrizes sobre o uso das redes sociais do Grupo Globo

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    O artigo , inciso IX, da Constituição de 1988, refere que o direito de manifestação é livre, independentemente de censura ou licença[1]. Parece claro na leitura do dispositivo que o/a cidadão/ã pode exarar opinião sobre tudo o que lhe convém, porém será responsável por aquilo que proferir, respondendo pelos excessos porventura existentes. Tal responsabilização não implica em censura, mas sim em respeito aos demais mandamentos constitucionais, democráticos e cidadãos. A ideia é evitar discursos de ódio que visam sepultar o princípio fundamental que norteia toda a carta magna brasileira: o da dignidade da pessoa humana.

    Tal previsão no mandamento constitucional surge no Brasil após 21 anos de um período autoritário que ceifou vidas, opiniões e que ainda repercute na estrutura política das instituições que administram o Estado, bem como no imaginário de alguns grupos sociais e empresariais. Diz-se isso no sentido de trazer à tona e questionar as recentes diretrizes sobre o uso de redes sociais por jornalistas divulgadas pelo Grupo Globo no último domingo, 1º de julho de 2018[2].

    A divulgação se deu por meio de uma carta emitida pelo presidente do Conselho Editorial João Roberto Marinho explicando as “recomendações” que, segundo consta, visam seguir uma tendência internacional – cita The New York Times e BBC como exemplos – no reforço do princípio de isenção jornalística. Na carta, Marinho ressalta as benesses e os malefícios das redes sociais, e principalmente, o fator que ensejou o acréscimo desta seção aos Princípios Editoriais do Grupo Globo: a isenção.

    Igualmente, jornalistas e colegas de redação devem evitar fazer publicidade para empresas e/ou mesmo de as criticarem, isso porque “a posição que ocupa nos veículos do Grupo Globo pode levar a que tenha um tratamento preferencial no reparo de danos sofridos”. Além disso, há praticamente um “tutorial” de como os profissionais devem se posicionar e agir perante comentários/ofensas em reportagens divulgadas nas redes sociais.

    As diretrizes abrangem também comentaristas, analistas, colunistas de opinião e, inclusive, colaboradores do Grupo Globo, lhes sendo “vedado apoiar candidatos ou partidos, dentro e fora de eleições”. A penúltima alínea reforça a necessidade de rigorosa observação às regras, sob pena de apreciação pelo Conselho Editorial. Para fechar com chave de ouro esse documento histórico de emancipação da cidadania jornalística e apego glorioso a “isenção”, o Grupo Globo relata que “tem a compreensão de que, muitas vezes, o jornalista pode se sentir em dúvida sobre se um texto seu nas redes sociais resvala na tomada de posição, ferindo o princípio da isenção”, nestes casos, portanto, “a única solução é consultar a chefia”.

    A centralização e o nível de restrições impostas àqueles que exercem a profissão de jornalista é extremamente perigosa no documento emanado pelo Grupo Globo. As “recomendações” se utilizam de expressões como “devem se abster”, “não devem nunca”, “é vedado” e “a única solução é consultar a chefia” para barrar o direito de livre manifestação das pessoas, lembrando em muito os censores da última ditadura civil-militar. É necessário frisar que isso implica em uma total apreensão da cidadania da/do jornalista, inviabilizando qualquer posicionamento “político”, sob o risco de ter a sua conduta “avaliada” pelo Conselho Editorial.

    A ideia de controle por meio do discurso se dá, conforme sustenta Foucault (2012), por três sistemas de exclusão: a palavra proibida, a segregação da loucura e a vontade de verdade. O primeiro sistema tem por escopo obstaculizar a manifestação de algumas pessoas, pois nem todas podem falar o que bem entendem, seja por razão de tabu, de circunstância e/ou de lugar de fala. Já o segundo preza pela diferenciação entre pessoas sãs e insanas e, o terceiro, pela verdade historicamente constituída e não contestada[3].

    O que se pretende, na verdade, é constranger as pessoas a não se manifestarem, ficarem no seu casulo e prezarem por seus empregos. Aos que não cumprirem tais ordens resta a segregação da loucura, por abrir mão de um trabalho num dos maiores conglomerados de mídia do mundo[4] apenas em prol do silenciamento de sua opinião, e a manutenção da verdade “isenta” construída pelo setor jornalístico do referido grupo.

    Possíveis argumentos como “a Globo é um conglomerado de empresas privadas”, “não está feliz, sai”, “tem um monte de gente desempregada querendo estar no seu lugar” corroboram o empobrecimento do imaginário social e do suplantamento da liberdade de se exprimir sem prévia censura em prol da capitalização do ser humano[5]. Conforme Casara sugere, “as pessoas acreditam que estão livres, que gozam de plena liberdade, porém formas sutis e efetivas de coação se fazem presentes” [6].

    Estar contratada/o por uma empresa não pode e nem deve obstruir a manifestação sobre questões que lhe afetem, desde que atendidos os pressupostos de respeito à dignidade da pessoa humana e ao código de ética da profissão. A falsa hipótese de isenção e neutralidade jornalística é tão fantasiosa quanto a suposta boa intenção do Grupo Globo com a divulgação dessas diretrizes.

    Nesse sentido, Casara diz:

    O novo mandamento se insere na razão neoliberal de orientar a conduta das pessoas por meio da subjetivação de valores empreendedores e alienantes da política cidadã. O indivíduo torna-se uma empresa que “deve mostrar constantemente o seu valor para merecer as condições de sua existência. A vida é uma perpétua gestão de riscos que exige rigorosa abstenção de práticas perigosas, autocontrole permanente e regulação dos próprios comportamentos, misturando ascetismo e flexibilidade” [8]. É o sujeito-empreendedor de si mesmo. Não opina, se mantém alinhado, silenciado e não questiona regras para seguir no rumo da dita isenção de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo.

    O papel do jornalista enquanto informante e formador de opinião vai além do seu vínculo empregatício com qualquer tipo de empresa que porventura venha a trabalhar. Ser jornalista pressupõe coragem, senso crítico e direito a opinar, sempre ressalvando sua responsabilidade ética e humana – coisa que a isenção tecnicista parece desconhecer –, como dispõe a nossa sempre dilapidada Constituição “Cidadã” de 1988.

    Quem vai dizer o que é opinião política? Quais são as discussões passíveis de serem “controversas e polêmicas”? A liberdade de expressão pode ser restringida em prol de uma suposta isenção jornalística? Em caso de dúvida, “a única solução é consultar a chefia”.

    Pedro Henrique Farina Soares é Mestrando em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pós-Graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus. Advogado.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/isencao-ou-censura-uma-analise-das-diretrizes-sobre-o-uso-das-redes-sociais-do-grupo-globo/597599452

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