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25 de Abril de 2024
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    Como fabricar um culpado

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Texto de Fausto Salvadori e arte de Antônio Junião. Publicada originalmente pela Ponte Jornalismo

    Valter de Assis Rocha não teve a menor chance. Depois que dois policiais militares — atuando ilegalmente como seguranças particulares de um condomínio de luxo do Morumbi, em São Paulo — atiraram nele e mataram o seu melhor amigo, às 3h51 de 31 de agosto de 2014, todos os braços do Estado passaram a tratá-lo como criminoso.

    Um delegado concluiu o inquérito sem ouvi-lo e aceitou armas entregues no distrito policial como se tivessem sido apreendidas no local do crime. Uma promotora ignorou mentiras contadas em juízo pelos policiais e uma juíza chegou a alterar as falas de uma testemunha na sentença em que condenou Valter a quase 8 anos de prisão, em 2015. No final do ano passado, três desembargadores confirmaram por unanimidade a sua condenação. Um dos magistrados reconheceu que não havia “prova plena”, mas disse que “prova suficiente” contra o réu.

    A única esperança restante para Valter está em um pedido de revisão criminal, que sua família pretende enviar nas próximas semanas, para tentar fazer a Justiça reconhecer que cometeu um erro. Prevista no artigo 621 do Código de Processo Penal, a revisão de processos encerrados pode ser pedida quando a condenação contrariar as evidências dos autos, estiver baseada “em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos” ou se forem descobertas novas provas.

    Hoje, o jovem de 23 anos espera por justiça atrás dos muros da penitenciária de Getulina (SP), a 469 quilômetros de sua casa, junto com mais 1.813 presos – num espaço onde cabem 857.

    Fabricando um culpado (em quadrinhos)

    Veja agora, passo a passo, como as Polícias Militar e Civil, o Ministério Público Estadual e o Tribunal de Justiça de São Paulo se uniram para fabricar um culpado.


    Era para Valter ter ido dormir cedo naquela noite. Havia trabalhado o dia todo com o pai, fazendo entrega de água mineral, e se sentia cansado. Já avisara a mãe, a avó e Aline, a namorada: ficaria em casa.

    Não pensou em mudar de ideia nem quando seu melhor amigo, Alexandre Barreto dos Anjos, o Daw, apareceu em casa chamando para colarem em um baile funk no Jardim São Jorge, ali do lado de onde moravam, na região de Americanópolis, bairro pobre na zona sul da cidade de São Paulo. Valter deu uma resposta firme:

    “Não, Daw. Até já avisei as três mulheres da minha vida que não vou sair hoje.”

    Alexandre rebateu na hora:

    “É, mas eu sempre saio quando você me chama.”

    Era verdade. Valter e Alexandre se conheciam desde sempre. Moravam na mesma rua. Quando crianças, jogaram muita bola e empinaram muita pipa pelas ruas do bairro. Agora que Valter tinha 20 anos e Alexandre, 19 (por uma diferença de quatro meses), continuavam a ser parceiros inseparáveis, de ir juntos a tudo quanto fosse balada.

    Daw não deixaria que aquela noite fosse diferente. Contou a Valter que estava com a cabeça cheia. Além de encarar 12 horas seguidas de trampo, na empresa de análise de solos onde trabalhava, a namorada tinha lhe contado que suspeitava estar grávida. A cabeça de Alexandre estava cheia. Precisava do velho amigo para cair na noite com ele.

    “Tá certo, Daw, vamo lá”, cedeu Valter.

    E saíram juntos pela última vez.

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    Os amigos montaram na moto de Valter, uma Honda CG 125, que ele tinha comprado há poucos meses e ainda estava pagando. Valter nem curtia muito funk, sempre foi mais do rap, especialmente o “rap autêntico”, aquele “contra o sistema”, feito Facção Central e Trilha Sonora do Gueto. Funk era para zoar. E a zoeira na comunidade do Jardim São Jorge foi divertida. Valter até fez um pouco de graça empinando a moto no meio do pancadão. Pena que acabou cedo. Ainda era começo da madrugada quando viaturas da Polícia Militar deram as caras na festa.

    Os policiais disseram que a molecada precisava encerrar o pancadão por causa do barulho. Cena típica do lazer na quebrada. Enquanto a multidão se dispersava, Alexandre olhou para os policiais armados e soltou um comentário estranho:

    “Imagina se esses caras com essas armas tudo atiram na gente.”

    Valter disse para o amigo não falar bobagem:

    “Para, Daw. Iam atirar na gente pra quê?”

    O amigo, geralmente um cara para cima, andava com umas conversas meio mórbidas nos últimos dias, vindo com papos nada a ver de violência e morte. Quase como se uma parte dele soubesse o que estava por vir.

    Na saída, encontraram um outro amigo do bairro, Rodrigo Santos de Jesus. Ele contou que os amigos estavam indo para um baile funk em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, localizada a dez quilômetros dali, do outro lado do Rio Pinheiros.

    Decidiram ir juntos. Valter foi de moto, com Alexandre na garupa. Seguiram o automóvel onde estavam Rodrigo e outros amigos. Era tanta gente amontoada que mal cabia dentro do carro.

    No meio do caminho até Paraisópolis, a moto com Alexandre e Valter teria sido parada por uma viatura da PM, próximo ao cruzamento das avenidas Roque Petroni Júnior e Santo Amaro. Enquanto os dois tomavam uma geral dos policiais militares, os amigos que estavam no carro decidiram seguir adiante e deixaram a dupla para trás. Rodrigo disse à Ponte que fez isso porque tinha receio de arrumar algum problema com os homens da lei por estar com gente demais dentro do automóvel. Deixou para encontrar com a dupla na festa.

    (Segundo essa versão, os policiais revistaram Valter e Alexandre, não encontraram nada de errado e liberaram os dois. O enquadro dos policiais é relatado por Valter e por quatro dos amigos que estavam no carro, os quais confirmaram em juízo essa versão, mas não consta dos registros do Centro de Operações da Polícia Militar, o Copom. Por meio da Lei de Acesso a Informacao, a Ponte questionou se a Polícia Militar havia registrado algum pedido de informações a respeito da motocicleta naquela madrugada. A PM informou que a única solicitação envolvendo uma moto com aquelas características foi realizada às 3h58min59s, por “uma pessoa do sexo masculino, não identificada” – depois do crime, portanto, e provavelmente por um dos policiais envolvidos no tiroteio que vamos narrar a seguir.)

    Na garupa da moto, Alexandre telefonou pedindo orientação para Rodrigo e os outros amigos do carro, que àquela altura já estavam em Paraisópolis. Os dois meninos não sabiam como chegar sozinhos ao endereço da festa. Depois de várias ligações, a bateria do celular acabou. Valter estava sem crédito.

    Sem as orientações dos amigos, acabaram virando cedo demais à esquerda, quase dois quilômetros antes da entrada para Paraisópolis, entrando por engano na Rua Colégio Pio XII. Em vez de Paraisópolis, foram parar no coração do Morumbi.

    Alta madrugada, e Valter e Alexandre agora eram dois jovens da favela percorrendo de moto as ruas vazias de um dos metros quadrados mais caros da cidade. Era como entrar num território inimigo, cercado por muros altos com cercas eletrificadas. Em poucos minutos, um deles estaria morto e o outro, baleado, no chão, implorando para morrer.


    Valter e Alexandre chegaram à Rua Jayme Almeida Paiva, onde foram baleados por dois policiais militares à paisana, Marcelo Querino de Souza e Homero Eduardo Bueno Brito, que estavam em um automóvel Voyage estacionado no local.

    Alexandre morreu ali mesmo e Valter, com o intestino perfurado por um tiro, foi levado ao Hospital das Clínicas.


    Perdido nas ruas vazias do Morumbi, sem saber para onde ir, Valter e Alexandre viram um Voyage estacionado com os vidros fechados e as luzes acesas. Resolveram pedir informação para os ocupantes do carro. Alexandre ficou com medo e disse que era melhor ir embora, mas o amigo insistiu. Quando se aproximaram do Voyage, uma saraivada de tiros saiu de dentro do carro, derrubando os dois meninos no chão.

    “Corre que é polícia, vai matar nós”, Valter gritou para o amigo. Atirando assim, sem motivo e sem perguntar, só podiam ser policiais.

    Os dois correram até o final da rua e viraram à direita em uma viela. Baleado no rosto, nas costas e na perna direita, Valter sentiu as pernas ficarem dormentes e tombou logo na entrada do beco.

    Alexandre continuou a correr pela viela, apenas para descobrir que não tinha como escapar.

    “Não tem saída!”, gritou no fundo do beco.

    “Se joga no chão, Daw, finge de morto”, avisou Valter, do chão onde estava tombado, para o amigo.

    Não deu tempo para mais nada. Um dos policiais entrou no beco, com uma arma na mão. Passou correndo por Valter caído e foi até Alexandre. O menino estava encurralado. O policial atirou. Alexandre tombou morto no beco.

    Mais tarde, o laudo do IML (Instituto Médico Legal) identificaria quatro marcas de tiro no corpo do menino, todos disparados de frente. Um deles acertou na cabeça, mas não foi fatal: a bala entrou pelo nariz e saiu pelo olho direito, sem atravessar o crânio. Um outro disparo atravessou seu antebraço direito. Outros dois atingiram Alexandre no peito.

    Caído no chão, sentindo o sangue escorrer por todos os orifícios do corpo, Valter viu o amigo ser assassinado. Fechou os olhos e tentou se fingir de morto, como havia sugerido a Daw. Ouviu um dos policiais passar ao seu lado e ir até onde estava Alexandre. “Tá morto”, ouviu uma voz comemorar. Nisso, percebeu um policial examinar o seu pulso e dizer ao parceiro: “Steve, esse ainda tá vivo”.

    Sentiu um dos policiais cutucar com os dedos os ferimentos de bala em suas costas. O PM perguntou onde estavam as armas: “Cadê as peças, ladrão?”.

    Valter respondeu que não estava armado, só queria ir para uma festa.

    “Steve, posso tirar uma foto desse aqui que está com a cabeça estourada e postar no Whatsapp?”, perguntou um deles ao colega.

    “Tira logo, que estou ouvindo som de sirene.”

    Dali a pouco um deles contou que não tinha achado nenhuma arma no local. O colega respondeu: “Então vai no carro e pega as peças”. O PM voltou do carro trazendo duas armas. Levou uma até onde estava o corpo de Alexandre. Depois, foi até Valter.

    Ali, o policial abriu sua mão, que estava contraída por causa da dor, e o fez segurar uma pistola: “Segura isso e morre logo, ladrão”.

    Valter voltou a fechar os olhos. O tempo foi escorrendo, junto com seu sangue. Voltou a ouvir passos próximos. Achou que fossem os policiais novamente. “Vocês ainda estão aqui? Para com isso, me mata logo”, implorou.

    “Por que te matar? Eu sou bombeiro”, ouviu uma voz responder.

    Valter abriu os olhos: era o Resgate.

    “Não me deixa morrer, por favor”, pediu. E desmaiou.


    Os policiais Marcelo Querino de Souza e Homero Eduardo Bueno Brito, colegas da Força Tática do 33º Batalhão, em Carapicuíba, disseram em seus depoimentos à polícia e à Justiça que estavam de folga naquela noite e haviam saído para encontrar meninas que conheceram pela internet. No caminho, a dupla se perdeu e decidiu parar o carro na Rua Jayme de Almeida Paiva, no Morumbi, para consultar o GPS.

    Foi quando uma moto se aproximou e parou ao lado do carro. Dois jovens que “portavam ostensivamente arma de fogo” disseram “perdeu, perdeu, perdeu”. Em seguida, Marcelo e Homero se identificaram como policiais, “verbalizando em alto tom”. Os ladrões não se intimidaram, e Marcelo “teve a impressão de que o garupa efetuou um disparo de arma de fogo”. Foi só após a troca de diálogos e os primeiros tiros que os PMs revidaram, disparando de dentro do carro. Homero, que estava do lado do motorista, conta que por pouco não baleou o colega Marcelo no tiroteio.

    A dupla de policiais correu atrás dos meninos, que fugiram em direção a uma viela no final da rua. Na perseguição, um dos ladrões, Alexandre, teria se virado e atirado de novo contra os PMs. Na entrada do beco, o outro ladrão, Valter, caiu no chão, enquanto Alexandre continuou a correr até o final da viela. O PM Marcelo entrou no beco e correu até Alexandre, gritando “polícia, polícia, larga a arma, larga a arma”. Nisso, o jovem atirou. Marcelo revidou aos disparos. Alexandre morreu no local. Com ele, os policiais encontraram uma pistola .380.

    Enquanto Alexandre e Marcelo trocaram tiros, Homero abordou Valter, caído no chão. Não encontrou arma com ele. Depois, na rua, o policial localizou no chão uma pistola de pressão, feita para atirar chumbinho, que o menino havia deixado cair durante a fuga.

    À polícia, tanto Homero como Marcelo deixaram claro que “em nenhum momento agiram com excesso, eis que das vezes que disparou em face dos roubadores sempre foi em resposta a disparos anteriores por eles proferidos”.

    As informações sobre o tiroteio na Rua Jayme Almeida Paiva chegaram ao 89º DP (Portal do Morumbi) levadas pelos próprios policiais que mataram Alexandre e balearam Valter. Segundo o boletim de ocorrência, os PMs Marcelo e Homero chegaram à delegacia sozinhos, levando em suas mãos duas armas: uma pistola .380 e uma pistola de pressão. Disseram que haviam reagido a uma tentativa de assalto e apreendido aquelas armas com os ladrões.

    O delegado plantonista, Daniel Aparecido Viudes, aceitou sem questionar as armas apresentadas pelos PMs e, mesmo anotando que as pistolas “foram apresentadas pelos próprios policiais, ora partes”, registrou que as armas foram “utilizadas pelos roubadores”.

    Ouvido pela Ponte, o advogado criminalista André Lozano Andrade, coordenador-adjunto do laboratório de ciências criminais do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), afirma que o delegado errou, pois só poderia aceitar como prova objetos que fossem encontrados no local de crime pela perícia, nunca armas apresentadas na delegacia pelos próprios envolvidos. Segundo o criminalista, provas obtidas de maneira incerta contaminam o que os juristas chamam de “cadeia de custódia”, um processo de documentação que serve para garantir que as provas reunidas num processo sejam verdadeiras e não forjadas pelo Estado. “Isso é absolutamente ridículo. Tirar as armas do local compromete toda a cadeia de custódia e a credibilidade da prova, ainda mais sendo se quem levou é uma parte que está envolvida”, afirma Lozano.

    Outro criminalista ouvido pela reportagem, Humberto Barrionuevo Fabretti, professor de direito penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie, discorda. “É óbvio que tem que se levar em consideração se a arma foi apresentada pelos policiais que realizaram o disparo e que podem ter forjado a situação, mas, em tese, não há óbice à aceitação dessa prova”, diz.

    Não foi o único ponto controverso aceito por Daniel Viudes naquela manhã. O delegado da Polícia Civil aceitou registrar como “condutor” e “testemunha” da ocorrência dois policiais militares que apareceram na delegacia, Leandro Ribeiro da Silva e Wendell Nascimento Silva, e admitiram nem ter passado perto do local do crime. A dupla de PMs disse que havia recebido ordem de “um sargento” para ir diretamente à delegacia, sem passar pela rua onde estava o corpo de Alexandre e o carro baleado pelos policiais.

    “Nunca vi isso em toda a minha vida”, afirma Paulo Estevão Tamer Junior, criminalista com foco em tribunal do júri e especialista em direito constitucional pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que analisou os autos do processo a pedido da Ponte. “Os policiais foram acionados para serem condutores de uma ocorrência sem ir ao local, apenas indo ao distrito policial. A cena do crime ficou guardado por outros policiais e ninguém se preocupou em ouvi-los. Isso é absolutamente incorreto.”

    O delegado também aceitou sem questionar a história contada pelos policiais para explicar o que faziam no local do crime, escrevendo no boletim:

    “combinaram de se encontrarem com algumas meninas na Vila Andrade em São Paulo; que não sabe declinar dados das garotas, pois o encontro foi agendado via internet; que não as encontraram e acabaram por se perder”.

    Mas a história contada por Marcelo e Homero, a respeito de um encontro misterioso marcado com meninas sem nome pela internet, tinha pernas curtas. O carro pertencia a uma empresa de segurança, a GPS Segurança Eletrônica e Serviços, como o próprio delegado anotou no boletim. Se tivesse feito uma rápida consulta aos sites da Junta Comercial e do Diário Oficial do Estado de São Paulo, o delegado teria descoberto que a empresa dona de segurança dona do Voyage pertencia a Eduardo Bonifácio Bueno, que é investigador da Polícia Civil e tio do PM Homero – informação que viria à tona, 12 dias depois, numa reportagem do R7.

    O delegado Viudes, porém, não só ignorou todas as evidências de que os policiais mentiram como ainda tomou a palavra dos dois PMs como base para considerar Valter e Alexandre os verdadeiros criminosos da história. Nos meses seguintes, o Ministério Público e o Judiciário iriam fazer o mesmo.

    Valter acordou na sala de raio-X do Hospital das Clínicas, na região central de São Paulo. A equipe médica havia encontrado cinco sinais de tiros em seu corpo: dois na panturrilha esquerda, um na coxa esquerda, outro na coxa posterior esquerda e a marca de um disparo de raspão na testa, acima da sobrancelha esquerda.

    Enquanto aguardava pela cirurgia, Valter viu um homem se aproximar dele. O homem explicou que era o delegado Viudes, encarregado do seu caso, e lhe fez algumas perguntas. Fraco e com dores, Valter conseguiu dizer algumas poucas palavras, apenas o suficiente para deixar claro à autoridade à sua frente que não havia feito nada de errado.

    A conversa entre baleado e policial civil foi interrompida pela médica Lisa Batista Carrijo. Ela avisou que o menino seria levado para a sala de cirurgia. Sem dar importância ao relato de Valter, o delegado se despediu e saiu do pronto-socorro. Uma escolta de policiais militares ficou no hospital, vigiando o paciente.

    De volta à delegacia, Viudes terminou de redigir o boletim de ocorrência. Registrou o crime como “roubo”, Valter como “indiciado” e Alexandre, o amigo assassinado, como “autor/vítima”. Os policiais entraram como “partes”. Sobre o depoimento que havia acabado de colher no hospital, anotou que Valter “informalmente limitou-se em apenas negar os fatos e não forneceu mais nenhum dado, eis que estava com sua saúde debilitada pelos disparos que o atingiu”.

    Após ler os documentos enviados pelo delegado, o juiz Marcos Vieira de Morais converteu a prisão em flagrante de Valter em prisão preventiva. Nas palavras do juiz, manter Valter preso era importante para a “garantia da ordem pública”, já que “o crime de roubo é de extrema gravidade e violência e tem causado repúdio e enorme insegurança à comunidade laboriosa e ordeira do país”. A prisão também ajudaria no processo criminal, segundo Morais, porque, se o menino fosse solto, poderia “se furtar a comparecer em audiência, a fim de evitar o ato de reconhecimento pessoal em juízo”.

    Quando o juiz assinou sua decisão, apontando o risco de Valter fugir caso não ficasse preso, o jovem estava deitado numa cama de hospital, com uma bolsa de colostomia cheia de merda atada ao seu corpo. Os médicos do Hospital das Clínicas haviam retirado dois metros de seu intestino.

    Valter e Alexandre, os “roubadores”, tentaram “subtrair coisa alheia móvel, mediante grave ameaça e violência à pessoa, com a utilização de arma de fogo e simulacro”. Foi essa a conclusão do relatório final do inquérito policial, conduzido pelo delegado Daniel Aparecido Viudes, que indiciou Valter pelo crime de tentativa de latrocínio.

    O delegado nem ao menos tomou um depoimento de Valter antes de fechar seu relatório. E não foi por falta de tempo, já que tinha um prazo de pelo menos dez dias para concluir o inquérito, mas preferiu fazer tudo em apenas três. Viudes sabia que o menino tinha uma versão diferente dos fatos, mas não achou que valia a pena esperar um tempo a mais para que o jovem se recuperasse e pudesse ouvi-lo, num depoimento formal, antes de indiciá-lo por tentativa de latrocínio.

    O criminalista André Lozano avalia que, ao fechar seu inquérito sem o depoimento de Valter, o delegado ignorou o artigo , inciso V, do Código Processo Penal, que obriga a autoridade policial a ouvir o indiciado. “O delegado agiu errado. A lei diz que ele deveria ter ouvido formalmente Valter, mesmo que o contraditório não seja obrigatório no inquérito policial”, analisa.

    Baleado cinco vezes pela Polícia Militar, Valter agora se tornava vítima da Polícia Civil.

    No domingo, cerca de 20 moradores de Americanópolis atravessaram a cidade e foram até a Avenida Paulista, na região central, protestar contra a morte de um de seus meninos e a prisão de outro. Levavam as imagens de Valter e Alexandre estampadas no peito, carregavam nas mãos as palavras JUSTIÇA, LIBERDADE e PAZ escritas com canetas hidrocor sobre folhas de cartolina e seguravam uma faixa onde se lia “E Deus disse: filho, sabe essa dor? Eu sou maior que ela, confie em mim!!!”.

    A principal organizadora do protesto foi Marcia Eulalia, mãe de Valter. Depois que seu filho foi baleado e preso, Marcia largou o emprego como cabeleireira num salão para poder se dedicar em tempo integral a tentar provar a inocência do menino. Passou a conviver todos os dias com policiais, defensores públicos, advogados, militantes de direitos humanos, políticos e jornalistas, andando de um lado para outro com a bolsa cheia de cópias de laudos médicos, petições e boletins de ocorrência. Em uma semana, perdeu cinco quilos. “Tudo o que quero é ter meu filho de volta em casa”, repetia sem parar.

    A mãe chegou a assumir o papel de detetive, fazendo as investigações que a Polícia Civil havia deixado de fazer. Andando pelo Morumbi, na rua onde Valter foi baleado, e conversando com todas as pessoas que encontrava, localizou um morador que havia sido ouvido pelo delegado Daniel Viudes na elaboração do boletim de ocorrência. Na conversa com Marcia, porém, o morador deu duas informações que não constavam do B.O.

    “Aquele carro que foi baleado era dos seguranças da rua. Eles ficavam na frente de casa. Eu sempre cumprimentava eles”, relatou o morador. E mais. Contou que, ao ver o automóvel dos PMs baleado na rua de casa, notou que havia somente marcas de disparos disparadas de dentro para fora do carro, pelos próprios agentes da lei.

    Marcia gravou a conversa em seu celular. Levou a gravação à Defensoria Pública, que cuidava do caso na época e mandou anexar ao processo o áudio com “as investigações feitas pela genitora do réu”.

    Meses depois, nas audiências de instrução do processo, o morador reconheceu os PMs Marcelo e Homero e confirmou o que havia dito diante do celular de Márcia: os dois faziam “bico” como seguranças do bairro. O depoimento comprovava que os policiais haviam mentido em juízo: eles não estavam perdidos no Morumbi atrás de meninas sem nome que conheceram pela internet.

    A testemunha também reafirmou que não viu marcas de tiros efetuados de fora para dentro do carro dos policiais, informação que o laudo do IC (Instituto de Criminalística) não havia deixado clara.

    Marcia sentiu esperança. Pensou que as revelações seriam o primeiro passo para a absolvição de Valter. Ainda não havia descoberto a queda que a Justiça tem para acreditar em mentiras de homens que vestem farda.

    Ao entrar na história, o Ministério Público seguiu o mesmo caminho aberto pelos policiais militares e pelo delegado da Polícia Civil. Após ler o relatório do inquérito feito pelo delegado Viudes, a promotora de justiça Valéria Maiolini denunciou Valter por dupla tentativa de latrocínio. Na denúncia, Maiolini pedia que a justiça ouvisse seis testemunhas. Destas, quatro eram policiais militares.

    Valter recebeu alta do Hospital das Clínicas e foi transferido para o CDP (Centro de Detenção Provisória) Belém I, na zona leste da cidade de São Paulo. As condições ali eram tão ruins que Marcia passou a temer que o sistema prisional terminasse o serviço que os dois policiais haviam começado. Mesmo colostomizado e com risco de infecção, Valter passou os dias dividindo um colchão sujo de sangue com um outro preso, que estava com uma perna quebrada. Depois que a Defensoria Pública pediu melhores instalações para Valter, o jovem foi levado a uma ala psiquiátrica do CDP. “Imagina você numa cadeia, vivendo num espaço que só tem gente com problema mental. Eu tive que ser um louco para conseguir sobreviver no meio dos loucos”, relataria Valter, mais tarde, à Ponte.

    Sem nunca ter visto Valter, a promotora Valéria Maiolini declarou que ele era um “indivíduo perigoso com compulsão criminosa”, “de cuja conduta infere-se possuir personalidade deformada, voltada para a senda delituosa” e que merecia ser “segregado do convívio social”. A descrição consta do documento em que a promotora pediu a manutenção da prisão preventiva do jovem e se manifestou contra o pedido de liberdade provisória feito pela Defensoria. Tirá-lo da cadeia, segundo a promotora, traria “pânico à sociedade ordeira e honrada”.

    A defesa sofreu um golpe. Atendendo a recomendação do Ministério Público, a juíza Eva Lôbo Chaib Dias Jorge recusou-se a aceitar o pedido, feito pela Defensoria Pública, de quebra dos sigilos telefônico e eletrônico dos policiais e da GPS Serviços de Portaria Ltda., para a qual os PMs trabalhavam.

    Promotora e juíza davam como certo que havia ocorrido uma tentativa de latrocínio e que os policiais eram vítimas. Provas que apontassem para a falta de credibilidade das supostas vítimas não interessavam.

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    Numa audiência de instrução do processo, Valter recebeu a primeira boa notícia em cinco meses. A juíza aceitou substituir a prisão preventiva por uma medida cautelar e expediu o alvará de soltura do réu. Valter agora estaria livre, desde que seguisse algumas condições: não sair da cidade sem autorização judicial, nada de frequentar bares, nada de sair à noite e comparecer todo mês ao Fórum.

    Na saída, abraçou a mãe.

    Enquanto isso, as investigações sobre a morte do melhor amigo de Valter terminaram arquivadas, a pedido do Ministério Público Estadual. Ninguém foi processado por matar Alexandre. Na sua leitura dos autos, o promotor Romeu Galiano Zanelli Júnior considerou que as investigações haviam demonstrado que os PMs Homero e Marcelo atiraram em legítima defesa.

    Para justificar sua decisão, Galiano ignorou indícios importantes da cena do crime. “O exame de balística atestou que um dos estojos encontrados no local foi proveniente da arma utilizada por Alexandre, o que demonstra ter havido troca de tiros”, afirmou o promotor, omitindo que o tal estojo, de calibre .380, havia sido encontrado diante do carro onde estavam os policiais, a aproximadamente 100 metros do corpo de Alexandre.

    No beco onde o jovem foi morto – e onde, segundo os dois PMs, teria ocorrido uma troca de tiros – a perícia encontrou sete estojos de pistola .40, todos provenientes das armas usadas pelas policiais.

    “Não existe vestígio material de que houve troca de tiros no beco”, afirma o perito criminal André Morrison, membro da diretoria executiva da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, que leu os laudos a pedido da Ponte. “Para provar que houve um confronto, é preciso achar vestígios dos dois lados. Ali, pelo que eu vi, só tem vestígio de um lado. Tem que ter outro vestígio do outro lado. Ele não foi encontrado”, diz.

    O perito ressaltou que a ausência de vestígios de que Alexandre tenha atirado não significa uma “certeza absoluta” de que o jovem tenha sido executado pela polícia. “Como teve a entrada de uma equipe para resgatar a vítima [Valter] no local, há a hipótese de que o estojo pode ter saído dali”, acidentalmente, durante o trabalho dos bombeiros. Mas o perito ressalta: “É uma hipótese remota”.

    Na sentença em que condenou Valter, a juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge discursou em defesa das pessoas de bem. “A sociedade está aterrorizada diante do crescimento da criminalidade e da violência, em especial, ante a abundância de delitos contra o patrimônio praticados cada vez de modo mais frio e arrojado”, declarou.

    Para a juíza, Valter era uma dessas ameaças à sociedade, um homem com “insensibilidade moral e desvirtuamento de caráter”, que, junto com Alexandre, havia tentado roubar os policiais, “mediante violência e grave ameaça exercida com emprego de armas de fogo”, “valendo-se das fragilidades oriundas da organização social e da boa-fé que norteia as pessoas de bem”.

    E, pelas duas tentativas de latrocínio contra os policiais, condenou Valter a 7 anos, 9 meses e 10 dias de reclusão.

    A juíza deixou claro que as mentiras contadas em juízo por Homero e Eduardo, para esconder o trabalho ilegal que realizavam na noite dos tiros, não diminuíam a credibilidade dos policiais. “A alegação de que as vítimas, policiais, estavam fazendo ‘bico’ no momento dos fatos, não abala em nada a confiança nos depoimentos”, afirmou.

    A versão do jovem baleado, porém, não merecia o mesmo crédito. “Não se pode crer que o acusado estivesse a caminho de uma festa, e ao se perder, fosse pedir informações a um carro encostado na rua, e, ao acaso e do nada, os policias começassem a distribuir tiros”, escreveu Eva. Afinal, policiais não saem por aí atirando em pessoas inocentes.

    Apesar da condenação, a juíza concedeu a Valter o direito a recorrer em liberdade. Levou em conta que o jovem era réu primário, tinha endereço fixo e — contrariando as “previsões” feitas em setembro pela promotora sobre os riscos de deixá-lo solto — não havia descumprido qualquer das medidas cautelares impostas. Também considerou “o estado de saúde do réu”, que até há poucos dias ainda carregava uma bolsa de colostomia presa ao intestino.

    Mãe e filho tomaram um susto quando tomaram conhecimento da sentença, mas continuaram confiantes na justiça. Márcia lembra: “Eu tinha certeza que, dali para a frente, a justiça ia reconhecer que tinha errado e tirar a condenação do meu filho”.

    A reportagem da Ponte mostrou os autos do processo de Valter a três advogados criminalistas. Todos concordaram que as provas levantadas durante o processo eram insuficientes para garantir uma condenação.

    Representante do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), a advogada Mariana Chamelette foi cuidadosa: “Analisando os autos, não é possível se concluir que se trata de uma sentença livre de dúvidas”. André Lozano foi um pouco mais além: “O processo está fraco de provas, mas, até aí, todo processo penal em São Paulo é mais ou menos assim”. Já Paulo Tamer foi taxativo: “Existem muito mais provas de que Valter fala a verdade do que os policiais. Acredito na inocência do Valter plenamente. Isso me restou claro do processo”.

    Um dos indícios citados por Tamer aparece no vídeo feito por câmeras da rua que flagraram, à distância, o momento em que os policiais atiram nos meninos. As imagens revelam que os primeiros clarões de disparos ocorrem apenas dois segundos após a moto emparelhar com o Voyage dos policiais. “Os policiais afirmam em seu depoimento que, quando a moto emparelha, Alexandre diz: ‘perdeu, perdeu’, o policial retruca dizendo ‘somos policiais’ e só então começam os tiros. Se você vir o vídeo, não há tempo disso acontecer”, aponta.

    Um trecho da sentença que condenou Valter mostra que a juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge buscou nos fatos o que queria ver, inclusive o que não estava lá. Ela chegou a modificar o depoimento de uma testemunha: um porteiro que tralhava no prédio da rua onde ocorreu o crime, e que não viu muita coisa além de tiros e correria. Sobre o garupa da moto, da primeira vez em que foi ouvido, pela Polícia Civil, no mesmo dia do crime, o porteiro contou ter visto Alexandre correr “segurando um capacete”. Um ano mais tarde, diante da juíza, disse que o menino “corria com alguma coisa nas mãos”, “mas não sabe dizer se o que ele tinha nas mãos era o capacete”. Na sentença, a juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge escreveu algo bem diferente do que o porteiro havia falado: “a testemunha narra com clareza que conseguiu observar que um dos indivíduos estava com arma na mão”.

    Para o criminalista André Lozano, Eva “modificou do depoimento de uma testemunha”, o que é “completamente absurdo” para uma juíza. “Ela não pode manipular o que a testemunha falou. Tem que usar o depoimento como foi feito, não como ela gostaria que fosse feito”, afirma.

    Acontece que, para a história construída pela juíza em sua sentença, Alexandre não poderia ter saído correndo com um capacete nas mãos, após apontar uma arma para os dois policiais. “A tese da defesa, tentando fazer crer que o objeto que o agente trazia nas mãos era seu capacete, é no mínimo pueril e não convence. Pela rapidez que se operou na dinâmica dos acontecimentos, não se mostra crível que o roubador tivesse tempo de tirar seu capacete segurando-o nas mãos no momento da abordagem”, anotou a juíza.

    Uma olhada mais atenta aos laudos da perícia deixa claro, contudo, que o tal “objeto” que aparece nas imagens sendo carregado por Alexandre até o viela só pode ser o capacete, já que foi encontrado no beco, ao lado do corpo dele – e não poderia ter sido levado até lá se não fosse pelas mãos do jovem.

    Se Alexandre, como afirma a juíza, não teve tempo de tirar o capacete no momento da abordagem, só é possível concluir que, para apontar uma arma em direção aos policiais e atirar neles, o jovem precisaria ser um exímio equilibrista, capaz de permanecer sentado na garupa da moto segurando um capacete em uma mão e a pistola na outra.

    Por curiosidade, a Ponte mostrou o vídeo com a cena do tiroteio a cerca de 50 pessoas, entre leigos e especialistas. Todos viram um capacete, e não uma arma, na cena em que Alexandre corre até o beco. “Aparentemente, é um capacete. Mas isso não significa que ele não pudesse estar carregando o capacete e uma arma”, ressaltou o perito André Morrison.

    Além de ouvir afirmações que as testemunhas não disseram, a juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge também enxergou nos laudos da perícia dados que não estavam lá. Para a juíza, a perícia deixou claro que Valter e Alexandre atiraram contra o Voyage dos policiais: a prova seria um estojo de pistola .380 encontrada diante do carro. O laudo, porém, só deixa claro que houve disparos de dentro para fora do carro, realizados pelos próprios policiais. Informação que é confirmada por uma testemunha, que, diante da juíza, relatou que “viu somente disparos efetuados de dentro do carro para fora” e que “não houve disparos de fora para dentro”.

    A juíza preferiu desconsiderar o depoimento da testemunha e se basear numa leitura própria do laudo. “A despeito da testemunha […] crer que só houve tiros de dentro para fora do carro, está certo aos autos que efetivamente houve disparo por parte dos agentes, tendo em vista o estojo [de .380] encontrado”, afirmou.

    Ouvido pela Ponte, o perito André Morrison, diretor da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, não demonstrou as mesmas certezas da juíza. Morrison não encontrou no laudo um indício claro de que o Voyage tenha sido atingido por qualquer tiro além daqueles disparados pelos próprios PMs de dentro do carro. “Deduz-se que todas as perfurações do carro tiveram o mesmo sentido [de dentro para fora]”, diz o perito, deixando claro, contudo, que o laudo não é claro a esse respeito.

    O texto do laudo afirma que há 18 marcas de tiro no Voyage dos policiais. Dessas, 16 foram “direcionadas de dentro para fora”, ou seja, partiram dos próprios PMs. Sobram outras 2 perfurações, localizadas no batente entre as portas do lado direito do carro. Nesse ponto, porém, o laudo é impreciso: não deixa claro se as tais das perfurações foram feitas dentro do carro ou se vieram de fora. Ao mesmo tempo, nenhum trecho do laudo faz qualquer menção a marcas de tiro do lado de fora do Voyage. “Se o perito não botou nenhuma foto mostrando um buraco do lado externo [do carro], estou deduzindo que os outros dois tiros também foram no mesmo sentido dos outros [de dentro para fora]”, afirma Morrison.

    Para o criminalista Paulo Tamer, as provas, sejam quais foram, nunca importaram no processo contra Valter: “A Justiça e o Ministério Público fecharam os olhos a provas que indicavam a flagrante inocência de Valter porque sempre tencionaram a condenação, tendo em vista que ele e Alexandre tinham o perfil de indivíduos normalmente encarcerados pela justiça brasileira: jovens de classe baixa, pilotando uma moto, e que iam de um baile funk para outro”.

    Livre da prisão e da bolsa de colostomia, Valter retomou sua vida enquanto esperava os desdobramentos de seu processo. Não conseguiu que a Polícia Civil devolvesse a motocicleta novinha que havia apreendido, com a qual ganhava seu pão, mas conseguiu comprar uma nova. Voltou ao trabalho de entregador, fazendo bicos em pizzarias ou no serviço de entrega de água mineral do seu pai.

    Mesmo antes do resultado final do processo, os acontecimentos da noite de 30 de agosto de 2014 nunca deixaram de persegui-lo. “Ele passou muito tempo se culpando pela morte do Alexandre. Dizia que, se não tivesse aceitado sair com ele de moto naquela noite, o amigo ainda estaria vivo”, conta Márcia. Valter só se sentiu melhor quando procurou a mãe de Alexandre, baixou a cabeça diante dela e lhe pediu perdão. Ela o acolheu e respondeu com tranquilidade: “não tem o que perdoar”.

    O fantasma daquela noite voltou a atormentá-lo na única oportunidade de emprego fixo que conseguiu, como entregador de uma empresa de próteses odontológicas. A família de Valter conta que sua contratação estava certa, mas tudo mudou quando o jovem contou ao futuro patrão que, uma vez ao mês, precisaria faltar ao trabalho para ir ao Fórum assinar o documento de um processo a que respondia. Após ouvir isso, o empregador desistiu de contratá-lo.

    Para piorar, Valter perdeu a moto num roubo. Precisou se endividar para comprar outra motocicleta, usada e mais simples, e continuar a trabalhar em uma pizzaria do bairro.

    Mesmo endividado e ameaçado pelo processo criminal, Valter não ficou parado. Queria voltar a estudar: havia se inscrito no Encceja (Exame Nacional para Certificação de Jovens e Adultos), para obter o certificado de conclusão do ensino médio. E planejava se casar com a agente de registro Aline Silva Teodózio, 25 anos, após seis anos de namoro. Iriam morar em um cômodo na casa da avó dele, que Valter estava reformando para receber o casal.

    Aline faz questão de dizer que todos os seus amigos e parentes ficaram ao seu lado, mesmo após a condenação do namorado. “As pessoas próximas a mim sempre acreditaram no Valter, até porque ele nunca fez que nada fosse duvidoso. Sempre foi um trabalhador, tinha diversos calos nas mãos”, conta.

    Aline gosta muito dele. Dá para perceber pelo jeito como fala de Valter. “É uma pessoa muito amorosa, de um coração gigantesco, um garoto muito sincero e muito bom”, define. E, segurando a vontade de chorar, lembra: “Nós tínhamos muitos planos para daqui pra frente”.

    A defesa de Valter, agora com um advogado particular, entrou com um recurso no Tribunal de Justiça de São Paulo. No acórdão que negou provimento ao recurso, assinado pelos desembargadores Amaro Thomé e Lauro Mens de Mello, o relator Roberto Solimene reconhece que não havia “prova plena” contra Valter, mas ressalta que existia “prova suficiente”.

    Assim como a juíza Eva Lobo, o desembargador Solimene fez uma leitura do laudo pericial que só existia na sua cabeça. Escreveu que “duas perfurações no batente localizado entre a porta direita e a traseira do veículo” contradiziam a versão da testemunha que disse “presumir que os disparos apenas teriam sido efetuados apenas de dentro para fora do veículo”. Mas o laudo em nenhum momento afirma que as perfurações estavam do lado de fora do carro.

    O desembargador aproveitou para afirmar sua fé na palavra dos policiais, afirmando que “a jurisprudência tem dado especial relevo ao depoimento das vítimas”, que gozam “da presunção da veracidade”. Para Solimene, não era possível sequer imaginar um motivo pelo qual os policiais pudessem mentir para justificar o fato de terem atirado em dois jovens, “não sendo crível à condição humana que alguém incrimine irresponsavelmente pessoa idônea, daí porque os relatos merecem todo o crédito, porque não teriam os acusadores qualquer proveito em mentir”.

    O desembargador Solimene rejeitou os embargos de declaração movidos pela defesa de Valter e aproveitou para discursar a favor das “pessoas ordeiras”, lembrando que o crime de roubo “conturba a paz social, promove intranquilidade e, não bastasse os danos materiais, ainda obriga que as pessoas ordeiras gastem mais com o reforço de sua segurança, o que exige o mais firme posicionamento estatal em sua repressão, especialmente pela adoção dos programas severos de ressocialização”.

    Como fazia todos os meses, há três anos, Valter saiu de casa e percorreu 20 quilômetros até o Fórum Criminal da Barra Funda para assinar os papéis do processo que respondia. Como seu advogado não o tinha avisado de nada, o motoboy não sabia que sua condenação definitiva havia saído. Assim que se apresentou na 12ª Vara Criminal, os funcionários do Fórum constataram que havia um mandado de prisão expedido com seu nome desde o dia 12 daquele mês.

    Eles avisaram Valter que ele não voltaria para casa naquele dia. E nem nos próximos anos.

    Aos 23 anos, Valter permanece na penitenciária de Getulina (SP). Em janeiro, o raio onde vive sofreu uma intervenção do GIR (Grupo de Intervenção Rápida), a “tropa de choque” dos presídios, que terminou com presos torturados, ajoelhados em poças de urina, com braço e dentes quebrados, segundo o relato de parentes.

    A 469 quilômetros dali, no bairro de Americanópolis, o cômodo na casa da avó de Valter, que ele estava reformando para viver com Aline, permanece inacabado.

    A namorada sente sua falta: “É muito difícil viver com uma injustiça do tamanho que estamos vivendo. Eu tento deixar minha cabeça no meu trabalho, para esquecer o que está se passando, mas a falta dele é muito grande”.

    A mãe, também: “Eu só quero que a verdade seja esclarecida e que ele seja livre que a gente saia desse pesadelo. Que esse pesadelo acabe logo, que isso tudo acabe. É isso o que eu quero: paz”.

    Para a filha mais nova, Sophia, de 9 anos, que adora Valter, Marcia todos os dias conta a mesma mentira. Diz que o irmão dela viajou para outra cidade e que em breve, muito breve, vai voltar. É mais uma mentira contada ao longo dessa história, já tão repleta de mentiras — mentiras contadas em juízo e depois repetidas por diferentes autoridades, até ganharem aparência de verdade e poder de condenação. Diferente das demais, contudo, a mentira de Márcia é feita de outra substância: da vontade de evitar as lágrimas de uma criança. E da esperança de que essa mentira possa, um dia, se tornar uma verdade.

    Com a palavra, todos os responsáveis pela condenação de Valter de Assis Rocha.

    Procurada pela reportagem, por meio da assessoria de imprensa, não respondeu.

    Procurada pela reportagem, por meio da assessoria de imprensa, não respondeu.

    Promotora Valéria Maiolini, que denunciou Valter:

    “Toda manifestação do Ministério Público acerca dos fatos já foi proferida no processo judicial.”

    Promotor Romeu Galiano Zanelli Júnior, que arquivou o inquérito sobre a morte de Alexandre:

    “Os elementos de prova existentes no inquérito policial e citados na manifestação que lancei nos autos autorizaram o seu arquivamento, que, aliás, foi apreciado e acolhido pelo poder Judiciário. O caso somente pode ser reaberto se houver novas provas, as quais até agora não foram por ninguém apresentadas.”

    A respeito da sentença da juíza Eva Lobo Chaib Dias Jorge, a assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo afirmou, na época em que a decisão foi proferida, que “o magistrado é livre para formar sua convicção”.

    “Cada Magistrado interpreta as provas produzidas nos autos de forma diferente, de acordo com as provas e sua convicção. Por exemplo, quando a testemunha afirmou que o réu corria com algo nas mãos, ficou claro que se tratava de uma arma de fogo, e a magistrada não se convenceu de que o objeto era seu capacete. Com base na livre convicção, após analisar as provas, sejam as documentais, imagens e outras, a magistrada proferiu a decisão condenatória”, afirmou a assessoria em nota.

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