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24 de Abril de 2024
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    Súmula 70: Prisão apenas com a palavra do policial

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Quem não se lembra de junho de 2013? Quando chegou ao Brasil uma onda de insatisfação popular e descrédito na política, que havia pouco inflamara os ânimos internacionais com a Primavera Árabe, o Occupy Wall St e o movimento espanhol de Los Indignados. O pavio que acendeu a versão brasileira foi o aumento das passagens, que neste momento representava o enorme custo de vida para uma população que sentia na pele a perda de renda e de direitos. Dizia-se à época que “não era pelos 20 centavos” e por algum tempo o movimento teve vitórias importantes, tanto no preço da passagem como pela representação simbólica de que agora o povo acordara.

    Ao mesmo tempo que essa mensagem era explorada pelos camisa amarela, que iam às ruas tirar fotos com policiais sorridentes, um outro grupo estava recebendo tratamento muito diferente das forças de segurança. Foram conhecidos os casos de uso excessivo da força, inclusive contra jornalistas, a falsificação de provas, as detenções arbitrárias e até a dispersão de manifestações inteiras à bala de borracha e spray de pimenta. O que realmente significou junho de 2013, afinal, é uma proposta muito ambiciosa para essas poucas linhas, mas suas consequências podemos analisar, porque nos são atuais.

    Rafael Braga, por exemplo. Um negro, pobre e favelado, estereótipo ideal do criminoso inimigo, aquele para quem o sistema criminal brasileiro foi forjado. Rafael é um caso curioso de seletividade penal, pois mostra que o sistema sequer precisa de um crime real para selecionar seu cliente ideal. Único a ser condenado durante as “jornadas de junho”, sua prisão foi baseada na palavra dos policiais que o prenderam, acusando de portar material explosivo. Recolheram Rafael e a mochila com explosivos em sua posse, que levados à delegacia, foram identificados como produtos de limpeza ainda lacrados, inclusive, uma garrafa de pinho sol, um agradável desinfetante que a maioria de nós usa não para bombas imaginárias, mas para limpar o banheiro.

    Recentemente, Rafael voltou a ser condenado em um novo caso, onde também policiais militares são as únicas testemunhas. Segundo o relato acusatório na delegacia, no dia 12 de janeiro de 2016, por volta das 9h, policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Vila Cruzeiro faziam patrulhamento na favela, em local conhecido como “Sem Terra”, próximo à residência de Rafael Braga, quando, supostamente, receberam notícia de um “morador não identificado” que, a poucos metros do local, havia um indivíduo que “portava material entorpecente a fim de comercializá-lo”.

    Os policiais afirmam que após o abordarem encontraram com ele um saco plástico contendo 0,6 (zero vírgula seis) gramas de maconha e 9,3 (nove vírgula três) gramas de cocaína. No entanto, durante o julgamento do caso, os policias mudaram seus depoimentos e afirmaram que viram um grupo correndo e Rafael foi o único que permaneceu parado, demonstrando contradição policial sobre a dinâmica dos fatos.

    Condenar pessoas com base exclusivamente na palavra de policiais, sem nenhum indício complementar, não é democrático. Remete muito mais a sociedades regidas por leis marciais, organizada em hierarquias rígidas e papeis sociais muito bem definidos. Geralmente, expressam desigualdades sociais perversas, onde manter a comunidade sob controle exige que se levem algumas bruxas à fogueira. A súmula 70 é uma excentricidade judiciária que compromete todo o sistema de proteção aos direitos fundamentais, sistema este que revestem de ilustração a nossa constituição cidadã. Rafael Braga não foi o primeiro aprisionado por uma acusação sumaríssima pré-processual sem provas e, certamente, não será o último. Outros meninos pobres e negros continuarão sendo presos e mortos enquanto normas como a súmula 70 ainda estiverem em vigor.

    André Luiz de Carvalho Matheus é Advogado Criminalista e Eleitoralista. Mestrando em Direito na UERJ e Pesquisador na área de movimentos sociais urbanos.

    Diogo José da Silva Flora é Advogado Criminalista. Mestre em Direito na UFRJ e Pesquisador na área de Direitos Humanos.

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