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19 de Abril de 2024
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    O avesso da seletividade penal

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Um homem branco de meia idade desce a ladeira do estacionamento. Óculos, barba por fazer, camisa social, relógio no pulso esquerdo. Falando ao celular em uma ligação que parece importante, ele se dirige ao automóvel, agarra as chaves no para-brisa, entra no carro e deixa o local.[1]

    Poderia ser mais uma cena cotidiana em um dia qualquer na cidade de São Paulo.

    Mas eis que…

    Ele acabou de furtar o veículo do estacionamento[2].

    A edição de 14 de junho de 2018 da Folha de São Paulo noticiou uma nova modalidade de crime: pessoas se fazem passar pelos donos dos carros e os levam de estacionamentos em regiões nobres da capital paulista.

    Pensamento viciado da docência, a primeira reflexão que me veio à mente foi: “poxa, alguém usou meu exemplo de aula para o furto mediante fraude para bolar esse golpe!” Perdida nos pensamentos sobre a tipicidade formal da conduta de iludir a vigilância da vítima – descrição dos doutrinadores para diferenciar a fraude que qualifica o furto[3] da fraude elementar do estelionato[4] –, leio na matéria as falas dos funcionários dos estacionamentos a respeito dos homens que lá entraram, cheios de animus furandi (expressão do Latinório Juridiquês Nível II para designar o dolo de subtrair algo) para pegar as chaves dos automóveis:

    Eles estavam bem trajados, falando no celular. É uma estratégia para não serem abordados. Agem em horário de pico, quando o entra e sai é grande. Não usaram arma nem nada. Falam com o manobrista, são bem educados. Têm frieza”, disse um.

    Já outro observa que “Ninguém desconfia deles por causa da aparência. Vieram de roupa social, bem vestidos, falando no celular. Você fica até meio assim de interromper a ligação. Te pegam no descuido”.

    Pois bem: logo acima eu dizia que os autores estudiosos de Direito Penal descrevem o furto mediante fraude como a modalidade de furto na qual a fraude é empregada para iludir a vigilância da vítima: esta é levada a se sentir (equivocadamente) segura por meio da fraude, e deixa de vigiar seus pertences, que são subtraídos pelo autor do crime.

    Quando se examina o tema da seletividade penal em relação a pessoas, é quase um lugar comum (embora ainda não compreendido por muitos setores sociais) colocar a questão da maior vigilância sobre negros e negras como um fator relevante para explicar a sobre-representação desta população no sistema carcerário (sobre isso, recomendo a leitura de “A nova segregação”, de Michelle Alexander, o documentário “A 13ª Emenda”, de Ava Duvernay – disponível na Netflix!).

    Mas para contrapor – e usar isso como um argumento convincente sobre o racismo estrutural que contamina as relações de poder representadas pelo sistema de justiça criminal – hoje quero falar sobre ser branco (ou branca) e o privilégio de não ser selecionado pelo sistema.

    Acredito que a consciência de (mais essa) dimensão da branquitude tem potência para promover a reflexão sobre lugares e situações que somente vão existir para quem – como esta colunista que vos fala – é classificado socialmente como “branco”.

    Quem é classificado como branco dificilmente é ensinado a treinar o olhar para perceber situações de privilégio, ou melhor, as muitas “injustiças favoráveis” que nos mantêm comodamente em uma estrutura social racializada. Mas, uma vez iniciado o processo, o desconforto passa a ser uma constante – e isso pode ser extremamente positivo. (Essa excelente matéria do UOL me trouxe bons elementos para essa reflexão: GENTE BRANCA: O que os brancos de um país racista podem fazer pela igualdade além de não serem racistas?).

    Quando esse modo de olhar o mundo nos toma a mente, os contrastes vão ganhando contornos mais nítidos e cores mais fortes. Em sala de aula, quando o tema é o princípio da insignificância nos crimes patrimoniais, indico o documentário “Bagatela” como preparação prévia à aula. O filme retrata mulheres condenadas a partir de acusações de furto de objetos de valor irrisório, como vidros de shampoo, pacotes de biscoito ou de um pedaço de queijo. Falo em aula que se eu – classificada como branca no Brasil, e como não pertencente à classes economicamente vulneráveis – entrar em uma perfumaria chique e enfiar na bolsa um creminho de poucos gramas e que custe mais de três dígitos, o mais provável é que eu seja delicadamente abordada por um funcionário da segurança com palavras do tipo “a senhora esqueceu de pagar”.

    Evidentemente, não há qualquer rigor científico nessa minha micro-pesquisa – como avisei antes, é uma “etnografia selvagem”. Aliás, experiências individuais jamais podem ser consideradas dados científicos, embora possam – aí, sim – estimular a curiosidade de pontos de partida para uma pesquisa. Esse exercício que realizo em minhas salas de aula, quando pensados em conjunto com outros dados, indica uma certa padronização de vivências, marcada por elementos racializados.

    Leia também: A “13ª Emenda” brasileira

    Para quem não se convence de que se construiu historicamente uma simbologia culturalmente compartilhada de que negros seriam mais propensos à prática de crimes, e que isso tem a ver com um contexto social de ex-escravos libertos no espaço urbano, e um novo Código Criminal (o da República, em 1890) que criminalizava várias situações relativas à existência e circulação dessas pessoas e o quanto isso contribui (quando não determina) maior vigilância policial sobre os negros e negras no Brasil, lembre-se dos moços “bem apessoados” afanando tranquilamente a chave do BMW no estacionamento da Rua da Consolação.

    Enxergar flagrantes onde nada ocorreu, e invisibilizar crimes cometidos às escancaras e à luz do dia: o nome disso é seletividade.

    Maíra Zapater é doutora em Direitos Humanos pela FADUSP, especialista em Direito Penal e Processual Penal (Escola Superior do Ministério Público de SP), graduada em Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH – USP). Professora de Direito e Processo Penal na FGV – Direito SP.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/o-avesso-da-seletividade-penal/590373406

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