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18 de Abril de 2024
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    A Intervenção Militar “Constitucional” no Brasil e a Conspiração de Newburgh: Lições Hermenêuticas Possíveis

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Nessa coluna de maio, mais uma vez no apagar das luzes do mês, conto um pouco da angústia que é observar à distância a realidade político-jurídica brasileira e tentar traçar linhas reflexivas em torno dela.

    Fiquei mais da metade do mês fora do Brasil, mais especificamente nos EUA entre as cidades de Nova York e Washington DC, em compromissos acadêmicos diversos. Mas de lá, seja pelo contato com a família e os amigos que aqui ficaram, seja por não conseguir me desligar dos sites de notícias do Brasil, pude me angustiar com o movimento dos caminhoneiros, a crise do desabastecimento de combustível e seu efeito cascata e, para a análise do presente escrito, ainda mais intensamente com o significativo aumento de pedidos e clamores por uma intervenção militar, por vezes impropriamente chamada de “constitucional”, como explicarei adiante.

    Para alguém que na docência tem por objeto frequente de estudo e pesquisa as relações entre constitucionalismo, democracia, instituições e direitos humanos, ver tais manifestações por rupturas com a ordem constitucional terminam por exigir de mim alguma reflexão a respeito, não sem lamentar a nossa permanente ausência de memória em termos de justiça de transição para ainda termos tamanha sensibilização por isso.[i]

    De volta ao nosso caos, o cancelamento de nossas aulas na Universidade Federal de Pernambuco me permitiu um pouco mais de tempo para redigir essas linhas. Tento nelas pensar a questão a partir de um episódio ocorrido há mais de 200 anos nos EUA, conhecido por “Conspiração de Newburgh”, quando a questão da subordinação do poder militar ao poder civil foi objeto de intenso debate por lá. E de nossa dificuldade histórica e factual de lidar com o mesmo problema por aqui, ensejando discussões que seriam desnecessárias caso já tivéssemos consolidado um Estado democrático de direito em termos constitucionais, precisamente o caso da intervenção militar “constitucional”, da qual falarei adiante.

    EUA/1783: a Conspiração de Newburgh

    Em Washington DC, fui juiz da competição acadêmica internacional entre estudantes de direito do mundo inteiro intitulada “Inter-American Human Rights Moot Court Competition”, promovida pela Washington Collegeof Law/American University em parceria com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ambas sediadas na capital norte-americana. Obviamente estando nesta, não deixaria de dedicar algum tempo para visitar monumentos e museus relevantes. E ao visitar o Museu de História Americana, graças à sugestão de meu orientando de mestrado Brivaldo Santos Jr., procurei na parte dos primórdios históricos daquele país a referência à chamada “Conspiração de Newburgh”, uma ameaça de golpe militar na nascente República norte-americana, pouco conhecida por aqui, e inspiração para essas linhas.

    No início da década de 80 do século XVIII, os EUA eram uma Confederação oriunda da união das antigas 13 Colônias britânicas da América do Norte que se insurgiram contra a metrópole. Unidas contra esta na Guerra da Independência a partir da Declaração de Virginia de 1776, não havia ainda um Estado nacional, mas uma Confederação cuja ação conjunta era basicamente militar e de defesa.[ii] Ainda não tinham uma Constituição formal, sendo sua constituição material os Artigos da Confederação, o principal documento jurídico de então, cuja vigência se deu a partir de 1781 até a entrada em vigor da Constituição de 1787, primeira e única Carta constitucional dos EUA até hoje.

    Os referidos Artigos não estabeleciam um sistema de freios e contrapesos como o que ficou consagrado a partir da Constituição. O principal órgão confederativo era o Congresso Conjunto dos Estados Unidos da América, oriundo do antecessor Congresso Continental. Era uma espécie de governo legislativo, sem, contudo, dispor dos poderes legislativo e executivo na mesma dimensão dos existentes em um Estado soberano, já que o efetivo poder político dos EUA estava nos Estados-membros da Confederação.[iii]

    Na Confederação, o Congresso era a principal instituição política e funcionava como guardião da institucionalidade confederativa, tendo sido de fundamental importância à evolução e transformação da Confederação em um Estado constitucional. Todavia, essa institucionalidade esteve seriamente ameaçada nos anos 1782/1783 pelo movimento conhecido como “Conspiração de Newburgh” e é possível que a história daquele país tivesse tido rumos bem diferentes do que teve caso a dita Conspiração fosse exitosa.

    Uma boa parte dos oficiais do Exército do Norte estava acampada em Newburgh/Nova York e foi lá, em 10 de março de 1783, que foi convocada anonimamente uma reunião dos militares para o dia seguinte. Um inflamado discurso escrito pelo Major John Armstrong, auxiliar do General Horatio Gates, também circulou, conclamando os oficiais a abandonarem o tom moderado utilizado por George Washington nas negociações com o Congresso e partissem para um ultimato, ameaçando debandarem e deixarem a Confederação militarmente desprotegida ou ainda recusarem obedecer às ordens de desmobilização dadas pelo Congresso quando da conclusão dos tratados de paz, o que é visto por muitos historiadores como uma ameaça velada de tomada do poder político pelos militares e um possível fechamento do Congresso.[v]

    Por questões procedimentais, o encontro só ocorreu no dia 15. Quem o abriu foi o General Gates, mas o General George Washington chegou a tempo de participar e de discursar, não sem antes ter enviado mensagens ao Congresso, advertindo-os da existência de um motim militar em curso. Ele criticou duramente o Major Armstrong, afirmando que quem assim procedia ao instigar movimentos de ruptura não poderia ser considerado um amigo do Exército ou do país, mas um “inimigo insidioso” (insidiousfoe). Washington conclama seus oficiais a darem o exemplo de patriotismo e paciência e manterem a confiança nas boas intenções do Congresso.

    A participação do herói da Independência e futuro Presidente constitucional dos EUA é considerada decisiva para abortar a Conspiração de Newburgh. Sua presença e posicionamento, aliados ao “episódio dos óculos”[vi], encorajou os seus aliados e conduziu as instituições confederativas envolvidas – Forças Armadas e Congresso – ao entendimento, sem, no entanto, abrir mão de algo definitivamente consolidado a partir de então: a subordinação do poder militar à autoridade civil, consagrado constitucionalmente poucos anos depois (Constituição 1787, Artigo 2, Seção II, 1) e sem qualquer ruptura velada ou aberta em 231 anos de vigência da Carta norte-americana.[vii]

    A interpretação do art. 142 da CF e os limites políticos da hermenêutica constitucional

    Em verdade, não há um mal ontológico na participação dos militares na política. Os EUA tiveram presidentes respeitáveis de origem na caserna, como Dwight Eisenhower e o próprio George Washington. Também os brasileiros já elegeram por voto direto um presidente oriundo das FAs, o General Eurico Gaspar Dutra, em 1945. Contudo, na história nacional, a participação dos militares na chefia de Estado está mais associada a rupturas institucionais, como nos golpes de Estado que resultaram na Proclamação da República em 1889 e no advento da ditadura militar 1964-1985, do que em concorrência democrática eleitoral pelo poder político.

    Voltando ao Brasil atual, vemos aumentar na esteira do movimento dos caminhoneiros, pedidos por uma intervenção militar “constitucional”. Em verdade, quando do processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, tive oportunidade de receber panfletos de gente na rua defendendo isso, mas vi como algo tão absurdo que não me dei ao trabalho de refutar, tamanha a discrepância com o texto constitucional e com qualquer horizonte hermenêutico razoável dentro dos cânones da teoria do direito e da constituição. Contudo, durante esses últimos dois anos os julgadores (incluídos aí os do processo de impeachment) demonstraram um assustador desprezo por balizas hermenêuticas constitucionais elementares, da primeira instância ao STF. Como em um humpty-dumptismo constitucional (dar as palavras o sentido que se quer) alertado por LenioStreck em vários de seus artigos[viii], trilhamos caminhos politicamente perigosos no âmbito judicial e, tal como ocorreu no passado, nada obsta que justificativas as mais esdrúxulas possam ser usadas para fundamentar uma solução de constitucionalidade insustentável. Tal foi feito, aliás, por ocasião do golpe de Estado de 1964, quando o movimento militar vitorioso teve a legalidade reconhecida pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal, não obstante a evidente ruptura com a Constituição de 1946.[ix]

    Se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar “constitucional” nos moldes que têm sido defendidos. Veja-se texto do art. 142 da Constituição de 1988:

    Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

    Dispositivos semelhantes estão nas Constituições brasileiras desde a de 1946, incluindo, portanto, a Carta de 1967/1969 do período da ditadura militar. Contudo, os textos anteriores ao de 1988, apesar da referência à autoridade suprema do Presidente da República, não deixavam claro se a iniciativa de manter a lei e a ordem poderia ser algo autonomamente conferido às próprias Forças Armadas, a exemplo da de 1946 (art. 176) e de 1967 (art. 92, § 1º – redação originária, e art. 91, caput – redação da EC 1/1969). Já o texto de 1988 é cristalino a respeito: a iniciativa da ação garantidora da lei e da ordem por parte das Forças Armadas é necessariamente oriunda dos poderes constitucionais civis dentro de suas respectivas competências (legislativo, executivo e judiciário), não sendo juridicamente sustentável o afirmado por Jorge Zaverucha em artigo publicado na Folha de São Paulo de que a Constituição autorizaria uma intervenção sem esses requisitos.[x]

    Em princípio, o próprio teor literal do art. 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (arts. 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de Conselhos como o da República e de Defesa Nacional (arts. 89 a 91), tendo os Comandantes das FAs e o Ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao Presidente da República.[xi]

    A própria existência de um Ministro civil de Estado da Defesa em substituição aos antigos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (hoje Comandantes) (arts. 12, § 3º, VII, c/ 91, V, e Lei Complementar97/1999), demonstra uma opção do poder reformador por reforçar a subordinação das ditas Forças ao poder civil. Veja-se também que a Carta de 1988 toma algumas precauções em evitar a simbiose de funções civise militares: o militar, embora tenha os seus direitos políticos preservados, não pode exercer cargo eletivo ou civil simultaneamente com suas funções militares, sendo o caso de se afastar da atividade ou mesmo ir definitivamente para a inatividade/reserva, como exigem os arts. 14, § 8º, e 142, § 3º, II e III, da Constituição da República.

    Essa questão também suscita a utilização dos elementos hermenêuticos histórico e genético. A Constituição de 1988 é concebida na Assembleia Constituinte como um documento de significativa ruptura com a Carta anterior, bem como com o Estado de exceção. Não é revolucionária, mas cumpre um papel de total substituição da Lei Maior anterior, afastando o modus operandi institucional do regime findo em grau bastante elevado, rejeitando o autoritarismo e propondo uma relação diferente entre os poderes civil e militar, não obstante preservar, no âmbito das naturais negociações políticas, uma parte do que este último desejava. Não é um simples reformismo como no caso da Constituição do Chile de 1980, mas uma nova Carta nos moldes democráticos.

    Elementos hermenêuticos outros como os dos âmbitos da norma e do caso, de política constitucional etc. descritos pela metódica estruturante de Friedrich Müller, bem como os princípios da hermenêutica concretizante de Konrad Hesse também poderiam ser invocados, mas penso que isso não se faz necessário em um espaço limitado como essa coluna.[xii]Em termos hermenêutico-constitucionais e hermenêutico-jurídicos não há qualquer sustentabilidade da tese da intervenção militar “constitucional”. Isso seria golpe de Estado puro e simples e ruptura escancarada com a ordem constitucional vigente.

    Todavia, na atual situação do país, a hermenêutica constitucional não tem tido tanto prestígio e tem cedido ao voluntarismo e aos argumentos de ocasião. A política enquanto exercício do poder tem sua própria dinâmica e quando esta não prestigia o direito, este termina servindo à mera legitimação da decisão daquele plano. As consequências para o Estado democrático de direito normalmente não são positivas, pois se abandona a segurança jurídica e a previsibilidade de relações sociais dentro de marcos civilizatórios e renovam-se situações de estado de exceção no sentido schmittiano.[xiii]

    Como disse em outra oportunidade, o herói grego Ulisses desamarrado pelo deus Hermes e seduzido pelo canto das sereias sucumbe inevitavelmente a um caminho letal e destrutivo, não obstante sua aparência agradável. Quiçá a política brasileira volte a prestigiar as soluções dentro dos marcos constitucionais, abrindo mão da sedução dos caminhos de um constitucionalismo meramente semântico e inefetivo.[xiv]

    E que as nossas conspirações de Newburgh, tão frequentes e efetivas em nossa história, possam sucumbir doravante, afirmando a supremacia constitucional do poder civil sobre o militar e deixando as FAs dedicadas à sua nobre missão constitucional dentro dos marcos do Estado democrático de direito.

    Bruno Galindo é Professor Associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Doutor em Direito pela UFPE/Universidade de Coimbra-Portugal (PDEE); Conselheiro Estadual da OAB/PE.

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