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26 de Abril de 2024
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    Meu sangue latino já sabe o que vem

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Michel Temer durante Sessão Plenária da VIII Cúpula das Américas. Foto: Alan Santos/PR

    Na semana passada, Brasil, Argentina, Chile, Peru, Paraguai e Colômbia decidiram suspender sua participação na Unasul. É bem verdade que o organismo já se encontrava relativamente parado desde o ano passado, principalmente pela ascensão de governos de direita no continente e pelos impasses envolvendo a Venezuela. A atitude dos 6 países, porém, pode ser a simbólica pá de cal na política de integração latino-americana e de soberania do continente.

    Essa movimentação contrasta com a busca por protagonismo de alguns desses países na OEA (Organização dos Estados Americanos). Nesses últimos meses, por exemplo, foi curioso ver como México, Colômbia e Peru buscaram agradar interesses americanos com palavras duras contra a Venezuela, como um cão procura o carinho de seu dono.

    O “feedback” dos EUA a essa submissão, porém, não poderia ser mais humilhante. Na Cúpula das Américas, que ocorreu em Lima há uma semana, Trump sequer compareceu. Uma Cúpula, aliás, que mostra bem o caminho melancólico que toma a América Latina. O evento se tornou um show de submissão e hipocrisia, a começar pela retirada do convite à Maduro, meses antes.

    O foco no discurso anti-venezuelano contrasta com a leniência em relação a golpes como o de Honduras ou o do Brasil.

    Maior hipocrisia foi o fato de a Cúpula ter sido transformada em um grande evento contra a corrupção. Temer, que dispensa comentários, Macri do Panamá Papers, o Governo Peruano que acaba de perder um presidente por motivos criminais, todos ali reunidos numa luta contra a corrupção. O cenário não poderia ser mais hipócrita.

    Com tudo isso, o destaque positivo ficou mesmo para Evo Morales. Enquanto todos faziam discursos vazios pela democracia e contra a corrupção, o presidente boliviano fez mais um de seus duros discursos contra o sistema capitalista:

    “Se não eliminarmos os paraísos fiscais, sem controles às empresas transnacionais, se o sistema financeiro, que promove a acumulação de riqueza, não for modificado, enquanto não suprimirmos o sigilo bancário, de nada servirá. O capitalismo é o pior inimigo da humanidade e do planeta. Antes utilizavam o pretexto da luta contra o comunismo, hoje pretendem usar a luta contra a corrupção para derrubar governos democráticos. Respeito o irmão Lula, não podem prender a consciência de um povo”.

    Também não faltaram palavras de Evo contra o imperialismo norte-americano:

    “A principal ameaça contra a paz e o multilateralismo é o Governo dos EUA. Virando as costas ao acordo de Paris, constrói muros, gasta centenas de milhões de dólares para continuar construindo armas de destruição em massa. A Bolívia condena as ameaças dos EUA de invasão da Venezuela. Lamentamos que Maduro não esteja aqui por pressões dos EUA”.

    Copio aqui suas palavras na íntegra porque eu mesmo não seria capaz de escrever de forma mais clara. E Evo Morales pode falar com propriedade. Há mais de uma década crescendo a uma média anual de 5%, o modelo de desenvolvimento boliviano contrasta com, por exemplo, o paraguaio, já que consegue crescer ao mesmo tempo que distribui renda, calando o sempre crítico FMI, que se viu obrigado a reconhecer as qualidades do modelo da Bolívia.

    Tivesse Evo cabelos loiros e olhos azuis, ou fosse ele americano ou europeu, certamente seu modelo de desenvolvimento com redução de desigualdades e sua proteção aos povos indígenas já teriam lhe rendido um Nobel da Paz. Aos que discordam, lembrem que Obama ganhou esse prêmio enquanto estava em guerra com dois países e, “para comemorar”, bombardeou até o “perigosíssimo” Sudão durante seu mandato.

    Mas Evo é um espécime cada vez mais raro no nicho sul americano. O continente parece mesmo ter sido tomado pela agenda da direita liberal, que, é bem verdade, nem sempre se vale dos meios mais legítimos para isso. O Brasil que o diga. Mas os companheiros de Temer no desmanche da Unasul também não ficam atrás.

    A Colômbia, por exemplo, segue sendo um grande cemitério para líderes comunitários e ativistas dos Direitos Humanos. Em parte, por conta do modo desastrado que a Presidência do país tem conduzido o acertado acordo de paz com as FARC.

    Segundo o último Informe sobre Direitos Humanos da ONU sobre a Colômbia, “um dos maiores obstáculos que o Estado enfrenta para garantir direitos econômicos, sociais e culturais é a tentação de usar o gasto público em centros populacionais com o fim de ganhar votos, ao invés de priorizar os recursos para garantir o acesso a direitos básicos nas zonas rurais marginalizadas e menos povoadas”.

    E são justamente essas áreas que vêm sendo banhadas com o sangue de ativistas e líderes colombianos. Fruto do vácuo de poder deixado pela retirada das FARC, já que o processo não foi acompanhado pelo Governo, mais preocupado em gastar dinheiro em ações eleitoreiras nas grandes cidades.

    Além disso, vários casos de violência envolvem os próprios agentes do Estado. Ao todo, foram 441 ataques a ativistas e lideranças na Colômbia em 2017, incluindo 121 assassinatos. Dessas mortes, ao menos 14 aconteceram em meio a protestos populares e são objeto de investigação contra policiais e militares.

    Por isso mesmo, a ONU disse se preocupar com “a impunidade seletiva em casos de execuções extrajudiciais cometidas por membros das Forças Armadas que envolvem Generais, o que põe em risco o direito das vítimas à justiça e à verdade”.

    Seletividade, aliás, parece ser a palavra-chave para entender o que se passa na Argentina. Isso porque Macri tem ao seu lado os grandes monopólios de comunicação do país. Certamente uma forma de agradecimento que empresas como o Clarín têm para o Presidente que chegou ao poder a tempo de desmanchar a Lei de Meios.

    Assim, mesmo que em seu primeiro ano de governo a Argentina tenha enfrentado uma recessão de 2,5%, o desemprego tenha aumentado 2% (chegando a 9,5%) e a dívida do país tenha aumentado em mais de US$ 100 bi, tudo não passaria de uma “herança maldita kirchnerista” para os noticiários.

    Agora, a economia argentina vai mostrando alguns “bons” números às custas do bem-estar social dos mais pobres, sacrificado por políticas de austeridade que, logicamente, arrancaram elogios do FMI. E não faltou repressão policial e violência generalizada para que essas reformas acontecessem, é claro. No ano passado, correram o mundo as imagens de repressão aos argentinos que protestavam contra sua Reforma da Previdência.

    Com um crescimento tímido que ainda não compensou a forte recessão do início do mandato de Macri e com o desemprego ainda em um nível desconfortável, o povo argentino tem sido esmagado por uma das maiores inflações do mundo e pelos aumentos abusivos nas taxas de serviços públicos essenciais.

    Não à toa, um cântico nada polido contra Mauricio Macri tem ecoado nos estádios argentinos a cada rodada do campeonato nacional. Impossível não lembrar do “carinho” que a classe trabalhadora inglesa nutria por Margareth Thatcher, com cantos semelhantes.

    Por outro lado, contrastando com os afagos dados a Macri, a imprensa argentina segue firme em seu trabalho de destruição da imagem da sua principal opositora, Cristina Kirchner. Não há uma semana sequer sem notícias negativas sobre a ex-Presidenta, e qualquer semelhança com o anti-petismo brasileiro não é mera coincidência.

    Aliás, por lá, também se somou à perseguição midiática o uso político do Judiciário. A própria Kirchner enfrenta um processo criminal por supostamente ter acobertado suspeitos de um ato terrorista contra judeus em 1994. A pressa para tirar Kirchner do pleito eleitoral se “justifica”, já que, mesmo com toda perseguição, ela foi eleita Senadora com mais de 37% dos votos de Buenos Aires no ano passado, praticamente empatada com o candidato macrista.

    Outro país dos que viraram as costas à Unasul que parece ter judicializado a questão presidencial foi o Peru. Toda a movimentação que culminou com a renúncia do presidente liberal Pedro Paulo Kuczynski mostrou, mais uma vez na América Latina, que a direita liberal não se acanha em se aliar ao que há de mais retrógrado em um país.

    As alianças entre PPK e Keiji Fujimori, filho mais novo do ex-ditador Alberto Fujimori, escancararam a falta de limites da direita liberal peruana. Para se livrar de um processo de impeachment, PPK foi capaz de “comprar” votos a seu favor oferecendo, em troca, o indulto ao antigo ditador, preso até então. Agora, o Peru vê o risco do Fujimorismo voltar ao poder na figura de sua filha, Keiko Fujimori.

    Chega a ser irônico que tenha sido o Peru o país que barrou a presença de Maduro na Cúpula das Américas sediada em Lima. Mas o Peru não é o único país que tem revirado velhos fantasmas da ditadura. Tampouco é o único onde a direita liberal seja a responsável por isso.

    No Chile, foi o liberal Sebastian Piñera quem resolveu abrir a “caixa de Pandora”. Piñera que, vale lembrar, chegou ao poder através de fraudes. Afinal, no começo do ano, o economista-chefe do Banco Mundial, Paul Romer, admitiu que manipulou dados econômicos no ranking “Doing Bussines” durante anos, jogando para baixo os índices chilenos durante o mandato da esquerdista Bachelet, enquanto inflou os números no primeiro mandato de Piñera entre 2010 e 2014.

    Leia também:

    Às favas com o Banco Mundial

    O terrorismo econômico foi marcante na última disputa eleitoral chilena, onde a direita liberal de Piñera jogava com o ridículo discurso de que mais um mandato esquerdista no país poderia transformá-los numa “Chilezuela”. Piñera tinha números a seu favor e, hoje, já se sabe que estes números eram fraudulentos. Ao povo chileno, restou apenas um pedido de desculpas vazio do Banco Mundial.

    Ocorre que, para governar, ante a expressiva votação da extrema-esquerda chilena, que surpreendeu o país com seus jovens candidatos, Piñera se viu “obrigado” a aliar-se à extrema-direita do país, saudosa de Pinochet. “Obrigado” entre aspas, pois haviam outras possibilidades antes de se alinhar a defensores da Ditadura. Mas Piñera não pensou duas vezes.

    Não tardou para o pinochetismo voltar a dar as caras no país. O último episódio foi a retirada do Congresso pelo próprio Governo de um projeto de reparação às vítimas da Ditadura. A sessão foi marcada pelos insultos a essas vítimas por parte de um aliado do Presidente membro da UDI, partido da extrema-direita simpatizante de Pinochet que ganhou espaço no Governo de Piñera.

    Mesmo caminho parece seguir, agora, o Paraguai. Nosso vizinho sul americano também viu sua ordem constitucional ser rasgada há 6 anos atrás. Em um processo bastante parecido com o que ocorreu em 2016 no Brasil, o Presidente Fernando Lugo, da esquerdista Frente Guasú, foi deposto em um golpe parlamentar em 2012.

    Lugo havia, finalmente, rompido com a hegemonia do Partido Colorado, que, nos últimos 70 anos, só ficou fora do poder em 5. Uma hegemonia que quase sempre foi conquistada por métodos nada democráticos. Afinal, foi dentro desse período hegemônico que ocorreu a ditadura de Alfredo Stroessner, entre 1954 e 1989, mais um célebre violador dos direitos humanos na América do Sul.

    Um ano após o golpe, como era de se esperar, o Partido Colorado voltou ao poder com Horacio Cartes e, esta semana, acaba de eleger seu sucessor, o empresário Mario Abdo Benitez. Marito, como é conhecido, é filho de um ex-secretário privado de Stroessner na época da ditadura. Se na televisão Marito preferia não falar sobre o assunto, em seus comícios não faltavam elogios à época ditatorial.

    Curioso (ou não) é que, apesar do golpe de 2012 e da proximidade com o histórico apelo ditatorial, o Paraguai tem se tornado uma espécie de “menina dos olhos” dos liberais sul americanos. Ortodoxos colocam o país como um exemplo de crescimento através da abertura econômica.

    Pouco importa se o Paraguai é o segundo país mais desigual da América Latina, segundo a CEPAL, atrás apenas do Brasil. Também não parece ser problema que 28% dos paraguaios estejam abaixo da linha de pobreza, aliás, um número parecido com o da Argentina de Macri (25,7%), e que não tem a menor previsão de melhorar. Para os liberais manterem o modelo de abertura econômica que enriquece alguns poucos privilegiados, vale até defender o “filhote da Ditadura” que é contra a legalização do aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

    Postura não muito diferente da direita liberal brasileira, que vibra envergonhada com um país governado por Temer onde a Suprema Corte é ameaçada por Generais via Twitter e a coisa pública é vendida a preço de banana para a primeira empresa estrangeira que aparecer.

    A América do Sul parece ter sido envolta em um misto de anti-comunismo e viralatismo numa reedição malfeita da Operação Condor que flerta perigosamente com os fantasmas mais terríveis de nossa história. Uma direita liberal que não conseguiu vencer com propostas e apostou tudo na anti-política agora tenta voltar a transformar o continente num “puxadinho” das grandes potências mundiais.

    Potências mundiais que, hoje, ironicamente, rechaçam a própria agenda liberal de austeridade que tanto tentam nos impor.

    Vai mal a nossa América Latina, mas ainda guardo fé. Não vejo vida longa na anti-política e algumas coisas não voltam atrás. Quem já provou da soberania, quem já viveu com autodeterminação, quem já teve acesso a direitos básicos não aceita dar um passo para trás e esse é um sentimento que não se mata.

    Mas a reação a esse sentimento costuma ser dura aqui na periferia do mundo, onde os fatos históricos nem sempre seguem a vontade popular. Nosso sangue latino é cascudo e já sabe o que vem pela frente. São tempos de luta e não daremos nem um passo para trás.

    Almir Felitte é advogado, graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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