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25 de Abril de 2024
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    Análise: os inúmeros equívocos da maioria do STF no julgamento da presunção de inocência

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Falhamos enquanto comunidade jurídica, como diz Lenio Streck. Quando vemos que “profissionais do Direito” agem como torcedores (as), comemorando a Constituição e a lei serem solenemente desconsideradas porque não concordam com elas, temos uma prova cabal de que não se leva o Direito a sério nesse pais… Ministros (as) da maioria do STF, pelo menos, tentaram explicar porque entendem que a decisão sobre a presunção de inocência, desta vez tomada em habeas corpus impetrado pelo ex-Presidente Lula, não seria incompatível com a Constituição e, principalmente, o Código de Processo Penal (no que, com todo respeito, erram enormemente). Nesse ponto, concordamos em discordar e o debate pode ser respeitoso. Mas é desolador e intolerável quando vemos que pessoas formadas em Direito não estão nem aí para decisões que violam a lei e a Constituição quando isso lhes convém. Por isso que falhamos enquanto comunidade jurídica…

    Entremos, agora (e somente agora), nas críticas à nova decisão do STF. A terceira, desde 2016, no mesmo sentido: de permitir a prisão após condenação de segunda instância. Farei aqui o que quase nunca vejo nas críticas a ela: explicarei os fundamentos principais da decisão e demonstrarei porque eles, por mais sedutores que sejam, não tornam a decisão constitucionalmente (e, principalmente, legalmente) válida.

    Inicialmente, uma premissa importante.

    Segundo famosa tese de Robert Alexy, filósofo do Direito alemão usado como base da teoria constitucional hegemônica no Brasil e parte considerável dos países ocidentais, a argumentação jurídica é um caso especial de argumentação prática em geral. Costumo explica isso a pessoas não-conhecedoras dessa tese filosófica que a argumentação prática pode ser entendida como buscando o “bom senso”. Mas, como caso especial, isso significa que Direito não é apenas bom senso: é um bom senso condicionado pelas normas jurídicas (até pelo pluralismo social e impossibilidade de consenso unânime, por pessoas racionais e de boa-fé poderem, legitimamente, discordar sobre temas em geral, a norma jurídica impede o debate sobre o tema por ela definido, impondo respeito ao que está nela garantido/imposto). Isso significa que, por mais racional e defensável que seja uma tese, se ela contraria normas jurídicas vigentes, essa tese é juridicamente inválida. Nesse ponto, cito como exemplo o célebre embate capitalismo x socialismo. Por mais racional que pareça a pessoas de esquerda, o socialismo é inconstitucional por violar o art. 170 da Constituição, que consagra a livre iniciativa como fundamento de nossa ordem econômica, algo incompatível com o monopólio estatal dos meios de produção da tese socialista clássica. Por outro lado, por mais racional que capitalismo (puramente) liberal (laisse faire) seja a pessoas de direita, ele é igualmente inconstitucional por violação ao mesmíssimo art.1700 daConstituiçãoo, pois apesar dele consagrar a livre iniciativa e a livre concorrência, ele as condiciona ao respeito à valorização do trabalho humano, à dignidade da pessoa humana e a uma série de princípios, expostos em seus incisos (proteção ao consumidor, ao meio ambiente etc), algo incompatível com a pretensão de Estado Mínimo do capitalismo liberal. Goste-se ou não, está consagrado na Constituição o capitalismo controlado caracterizador da tese reformista (e não revolucionária) do Estado de Bem-Estar Social, que consagra um Estado Capitalista no qual, todavia, o Estado deve garantir o que se chama de mínimo existencial a uma vida digna a cidadãs e cidadãos.

    A relevância da tese do caso especial se dá para explicar porque as razões esposadas pela maioria do Supremo, por mais sedutoras que sejam (e eu concordo com boa parte delas), não justificam a prisão após a segunda instância à luz do Direito vigente. E isso por uma razão muito simples: temos proibição constitucional e/ou, pelo menos, legal expressa (s) à prisão em segunda instância. Explico.

    A Constituição Federal (CF) proíbe que se considere alguém como “culpado” antes do trânsito em julgado da ação (art. 5º, LVII). Trânsito em julgado é expressão técnica que se refere ao momento em que não cabem mais recursos contra a decisão. É o fim do processo, quando contra a decisão contrária não é mais possível recorrer. Impossível interpretar de forma distinta, como aparentemente se quer: embora vise a certeza, é uma certeza a partir de um dado objetivo, a saber, a impossibilidade formal de revisão da decisão judicial. Sobre o tema, a maioria do STF, no julgamento do HC n.º 126.292, no início de 2016, de forma astuta, afirmou que a Constituição não proíbe a “prisão” antes do trânsito em julgado, “apenas” proibindo que alguém seja “considerado culpado” antes disso (falou-se que, para prisão, a Constituição exige apenas ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária). Isso foi reiterado na negativa da medida cautelar nas ADCs 43 e 44, ainda em 2016, e, novamente, no dia 04.4.2018, no HC impetrado pelo ex-Presidente Lula (HC 152.752). Mas o que a maioria do Supremo não explicou foi como se pode dizer que não se está considerando “culpado” alguém que se permite a prisão por condenação, ou seja, a prisão por culpa. Nenhuma palavra foi dita pela Eminente Maioria do STF até o momento sobre isso. Ora, a principal consequência de se considerar alguém como “culpado” no processo penal é admitir a sua prisão por culpa, a saber, sua prisão por condenação judicial – e isso segundo a própria lógica principal da maioria do Tribunal, de formação de juízo de culpa do acusado na prática de fato típico e antijurídico, em razão do Tribunal de Segunda Instância ser a última instância soberana na definição de fatos e provas relevantes ao processo. Tanto que foi dito, salvo engano pelo Ministro Fux, que “os demais efeitos” da condenação, como perda de cargo público ou função, ficariam pendentes do trânsito em julgado – ora, isso é um reconhecimento implícito (mas claro) que um dos efeitos da condenação é considerar alguém como culpado e, assim, determinar sua prisão por culpa. Logo, com todo o respeito, não faz o menor sentido essa diferença criada pela maioria do STF (cabendo lembrar que prisões preventivas, por seu caráter cautelar de garantia do devido processo legal, não são proibidas pela presunção de inocência).

    Mas, por mero amor ao debate, ou pelo menos pela prerrogativa constitucional do STF de decidir por último, façamos algo comum na advocacia. Façamos uma argumentação subsidiária/sucessiva, tomando essa diferença (da qual se discorda) como um fato dado, do qual não podemos mais discordar. Temos aqui um fato objetivo: essa diferença criada pelo STF, entre “considerar culpado x prender (por culpa!) não se aplica ao artigo 283 do Código de Processo Penal! Isso porque referido dispositivo legal conseguiu a façanha de ser ainda mais explícito que a Constituição, ao dizer que ninguém pode ser “preso” antes do trânsito em julgado da decisão.

    É por isso que, por mais que se concorde que há efeitos perversos ao combate à impunidade aguardar o trânsito em julgado do processo para se prender uma pessoa (algo muito bem explicado, com exemplos, no voto do Ministro Roberto Barroso), temos como fato objetivo que a Constituição e/ou, pelo menos, o Código de Processo Penal proíbe (m) a prisão antes do fim do processo. Até que sejam alterados esses textos normativos, a tese da prisão em segunda instância será inconstitucional (bem como a inusitada tese de prisão após a decisão do STJ, que é “menos inconstitucional”, por mais próxima do trânsito em julgado, mas também inválida, pois argumentos estatísticos, usados em prol dessas duas teses, não são argumentos válidos para se deixar de aplicar norma jurídica vigente e válida).

    Ademais, completamente equivocada a posição dos Ministros Alexandre de Moraes e Roberto Barroso, de limitar sua visão sobre a presunção de inocência a partir de tratados internacionais. Afirmou-se que tratados internacionais de direitos humanos não exigem trânsito em julgado, mas apenas decisão de segunda instância. Embora isso seja verdade, essa afirmação desconsidera questão basilar constante dos próprios tratados internacionais de direitos humanos e da Convenção de Viena, conhecida como o “tratado dos tratados”. Tratados internacionais não podem ser interpretados para restringir direitos garantidos na Constituição e nas leis do país. Isso está expresso na Convenção de Viena e em quase todos os de direitos humanos. A doutrina internacionalista e a jurisprudência dos Tribunais Internacionais são peremptórias no sentido de que tratados internacionais não podem gerar menor proteção aos indivíduos de determinado país do que a proteção garantida pela legislação interna do país. Então, embora a Convenção de Viena também diga que não se pode invocar o Direito Interno do país para descumprir tratados internacionais, ela tem outro dispositivo que afirma que o Direito interno não é invalidado por tratado internacional menos protetivo que o Direito interno. Então, no mínimo o art. 283 do CPP proíbe prender antes do fim do processo, então ele prevalece sobre tratados internacionais de direitos humanos.

    E isso por uma razão muito simples: não há hierarquia formal propriamente dita entre tratados internacionais e Constituição, segundo doutrina e jurisprudência internacionalistas. Há, por assim dizer, hierarquia material, de aplicação da norma mais favorável à pessoa humana. Esse é o conteúdo do famoso princípio do in dubio pro dignitate. Nessa seara específica, aplica-se a norma mais favorável, aquela que concede mais direitos. Seja convencional, constitucional, legal, infralegal etc. A hierarquia não é formal, é material, portanto. Aplica-se a que melhor protege a pessoa. Nesse sentido, sendo a presunção de inocência notoriamente um direito individual, focado no indivíduo, não na sociedade, então não há como não aplicar o art. 283 do CPP (e o art. , LVII, da CF/88) por força de menor abrangência de tal direito em tratados internacionais. No Brasil, temos a doutrina de Flávia Piovesan, André de Carvalho Ramos, Cançado Trindade, Valério Mazzuoli e Ingo Sarlet nesse sentido, entre outros.

    Outrossim, igualmente equivocada a postura do Ministro Roberto Barroso, de dizer que desde a década de 1940 se admite a prisão antes do trânsito em julgado, durante algum tempo inclusive por algum tempo após a condenação em primeira instância. Ora, se isso era permitido pelo art. 637 do CPP (ainda formalmente em vigor, mas claramente revogado taticamente pelo art. 283 do CPP, fruto de lei desta última década), isso deixou de sê-lo com a Constituição Federal de 1988 e, ainda, com o art. 283 do CPP. Segundo a doutrina do próprio Ministro Barroso, é descabida a chamada interpretação retrospectiva, que visa interpretar o novo texto normativo da forma o mais parecida possível com o anterior (algo que o Ministro fala, em seu clássico Interpretação e Aplicação da Constituição, em tom crítico a decisões do STF que interpretavam a Constituição de 1988 da forma mais parecida possível com a Constituição anterior, apontando a má vontade da primeira composição do STF pós-redemocratização com as inovações constitucionais). Então, se isso era assim até 1988, o teor do art. 5º, LVII desta demandava compreensão diversa da questão.

    Vale citar que tenho uma posição que muitos consideram inusitada, mas é a consequência lógica de levar a sério o Direito e sua diferença da Política. Penso que que deveria poder haver prisão após condenação de segunda instância. O voto do Ministro Roberto Barroso é quase perfeito para isto justificar, a meu ver. Creio que ele justifica a constitucionalidade de emenda constitucional que coloque na Constituição esse entendimento do STF. Isso porque a Constituição proíbe emendas “tendentes a abolir” cláusulas pétreas no seu art. 60, § 4º, não qualquer alteração de textos normativos consagradores de cláusulas pétreas, há boa doutrina constitucional que defende isso (por exemplo, Ingo Sarlet, tanto sobre o princípio da vedação do retrocesso quanto sobre a questão das cláusulas pétreas[1]), e, nesse caso, ao contrário da maioria dos juristas que criticam essa decisão do STF, não penso que a prisão em segunda instância gera abolição, ou seja, violação do núcleo essencial do princípio da presunção de inocência – desde que seja concedido alto dano moral a quem for preso e, depois, for solto por absolvição (prescrição etc), algo importante de ser destacado já que a jurisprudência atual nega indenização a quem foi preso preventivamente (hipótese distinta da decisão do STF) que, depois, seja considerado inocente. De qualquer forma, isso é outra discussão.

    A questão é que nem o Ministro Roberto Barroso, o Ministro Fux nem ninguém da maioria não disseram como compatibilizar a prisão em segunda instância com os limites semânticos do art. 283 do CPP, que expressamente proíbe a “prisão” antes do trânsito – ao passo que é lição basilar sobre interpretação conforme a Constituição que ela só pode “salvar a constitucionalidade” de um dispositivo legal, dando-lhe interpretação compatível com a Constituição, desde que isso não viole os limites semânticos de dito dispositivo legal. Ora, um dispositivo que diz que é proibida a prisão antes do trânsito em julgado não tem como ser interpretado como permitindo a prisão antes do trânsito em julgado! Como dito, ante o art. 283 do CPP ter conseguido a façanha de ser mais explícito que o art. , LVII, da CF/88, erram o Ministro Barroso, o Ministro Fux e o restante da maioria ao entenderem que ele se limitou a repetir o essencial da Constituição).

    Portanto, embora obviamente não se duvide da sinceridade do Ministro Roberto Barroso, que realmente acredita que sua posição busca o bem do país, já que citou sentimentos mínimos de Justiça social, seu rechaço ao punitivismo e a necessidade de combate à seletividade penal – este último ao falar que que a “defesa dos pobres” não pode ser usada contra o seu entendimento, já que (e aí está corretíssimo na constatação da notória seletividade classista e racista da Justiça Penal), “os pobres” são seletivamente presos desde bem antes da primeira condenação, de sorte a que, continuou o Ministro Barroso, a prisão em segunda instância não aumentou o encarceramento em geral [das pessoas pobres e negras], se aplicando só a crimes de corrupção e quem tem dinheiro para bons advogados. Creio que contra isso se pode argumentar que essa fundamentação, salvo melhor juízo, parece querer resolver o problema da seletividade penal pela prisão de quem não é preso por seletividade atual e não pela não-prisão de quem não devia tê-lo sido (citou algumas vezes o “menino pobre” pego com algumas gramas de maconha), mas, de todo modo, o foco do seu voto foi combater a seletividade penal, isso desde 2016 (e tanto o Ministro Barroso não é punitivista que tenta emplacar no STF a tese de que a reincidência não deve impedir a aplicação do princípio da insignificância, como se vê por seus votos nos HCs 123.108, 123.533 e 123.734[2]).

    Gostaria, mesmo, de entender como o STF pode achar que “considerar culpado” não abrange prender por culpa, já que prender por condenação (de segunda instância) significa prender por culpa. A maioria do Supremo precisava, no mínimo, explicar então o que entende por “considerar culpado”, já que admite a prisão por culpa sem considerar isso “considerar culpado”…

    Mas há outro ponto. O legislador tem competência constitucional para concretizar e, assim, desenvolver a Constituição. A lei não é mero ato de execução da Constituição, tendo o Legislativo liberdade de conformação das cláusulas constitucionais, concretizando-as. É clássica a lição de Canotilho acerca do tema[3], ao explicar que a lei não é ato meramente vinculado à Constituição nem ato discricionário (que concretiza uma ordem a partir de critérios de conveniência e oportunidade), mas ato de liberdade de conformação, mais amplo que o ato discricionário. Por isso que é relevante a diferença (criada pelo STF) entre “considerar culpado” e “prender”, já que é a Constituição que “se limita” a proibir alguém de ser considerado culpado antes do fim do processo, tendo o CPP ido além, ao proibir a “prisão” (novamente, a partir dessa diferença, não explicada, criada pelo STF). Ora, a lei pode garantir mais direitos que a Constituição. Não pode contrariar proibição constitucional, mas pode garantir mais direitos que os garantidos pela Constituição. O Legislativo é o primeiro intérprete da Constituição. Embora a palavra final da interpretação constitucional caiba ao STF (art. 102 da CF/88), é igualmente basilar que o STF (e o Judiciário em geral) deve (m) ter deferência com as valorações do Legislativo, só as invalidando quando demonstre (m) serem estas evidentemente inconstitucionais (ou inconvencionais, por violadoras, neste caso, de tratados internacionais).

    Por outro lado, inacreditavelmente preciso fazer uma explicação, para evitar acusações de incoerência (que, absurdamente, já recebi), por minha defesa das decisões sobre a união homoafetiva, direitos de transgêneros e da população LGBTI em geral. Não há incoerência por duas simples razões:

    a) não há proibição constitucional nem legal à união homoafetiva e direitos LGBTI em geral. Qualquer primeiro anista de Direito tem a obrigação de saber que o fato de a lei disciplinar um fato (por exemplo, a união heteroafetiva) sem nada dispor sobre outro (caso da união homoafetiva) gera uma situação de lacuna normativa, jamais de “proibição implícita”. Sempre foi notório na doutrina e na jurisprudência brasileiras a afirmação da “ausência de proibição” à união homoafetiva, o que gera lacuna normativa (para a jurisprudência pacífica do STJ, impossibilidade jurídica do pedido só existe quando o tema é expressamente proibido pela lei[4], o que reforça esse conceito de lacuna). E lacunas podem ser colmatadas (preenchidas) por interpretação extensiva ou analogia para garantia de direitos, como é basilar na teoria jurídica desde tempos imemoriais;

    b) para garantia de direitos, o Judiciário pode ir além da “letra da lei”, garantindo direitos por interpretação extensiva ou analogia, mas, para restringir direitos, não o pode sem exercer função legislativa, o que evidentemente não cabia aqui (até entendo que cabe função legislativa atípica ao Tribunal Constitucional ou Suprema Corte em casos de omissões inconstitucionais, frutos de ordens expressas de legislar descumpridas pelo Legislativo, mas além disso ser ainda muito polêmico mesmo para garantia de direitos condicionados à aprovação de lei, onde já há alguma doutrina de peso apoiando esse exegese, e ainda mais polêmico para restrições de direitos, algo que desenvolvi em minha tese de doutorado, evidentemente não era o caso aqui e não foi assim que o Supremo se fundamentou). É lição basilar de hermenêutica jurídica que restrições de direitos devem ser interpretadas de maneira estrita, jamais extensiva.

    Logo, pode o Judiciário reconhecer união homoafetiva (ADPF 132/ADI 4277), direitos das pessoas transgênero (ADI 4275) e LGBTI em geral, mediante concretização de princípios constitucionais, ante a ausência de proibição constitucional e legal a eles. Nenhuma incoerência há, portanto, de minha parte nesse tema.

    Por todos esses fundamentos, pode-se entender o título deste artigo. É tradicional a discussão sobre a tensão entre constitucionalismo e democracia, entendida esta como (mero) governo da maioria. Cunhou-se a expressão democracia constitucional, enquanto democracia substantiva (e não meramente formal) para designar que a democracia contemporânea não se limita à regra da maioria. Na espirituosa lição do Ministro Roberto Barroso, não é porque você tem oito católicos e dois muçulmanos em uma sala que o primeiro grupo pode deliberar jogar o segundo pela janela[5]. Democracia não é ditadura da maioria, mas regime jurídico em que os direitos fundamentais (e humanos) de minorias e grupos vulneráveis devem ser respeitados pela maioria como condição para que esta possa definir os rumos políticos e jurídicos da nação. O constitucionalismo revolucionou a antiga discussão entre positivismo jurídico e jusnaturalismo ao positivar valores substantivos que devem ser respeitados pela maioria em suas deliberações, sob pena de invalidação destas pelo Judiciário em geral ou Tribunal Constitucional específico. Antigos “valores suprapositivos”, objeto apenas do “Direito Natural”, passaram a integrar o “Direito Positivo”, no texto constitucional (e nos tratados internacionais de direitos humanos, de sorte a se falar que a teoria dos direitos humanos tem a vantagem sobre a teoria dos direitos naturais porque aqueles estão positivados em tratados internacionais, convencionalmente elaborados, tendo assim coercibilidade no Direito Estatal, ao contrário destes).

    E porque nossa democracia constitucional foi rasgada no caso da presunção de inocência? Porque permitiu-se que argumentos pragmáticos e estatísticos prevalecessem sobre norma constitucional e legal expressas em sentido contrário à decisão judicial que disse “interpretá-los” (eles até podem ser usados na interpretação jurídica, mas não para contrariar norma jurídica). Uma função básica do Direito é impedir que o Judiciário decida conforme seu senso subjetivo de justiça, mas decida de acordo com o Direito vigente. Obviamente, muitas vezes a diferença é muito sutil, na concretização de “princípios vagos”, de baixa densidade normativa, pelo Judiciário (como dizer o que significa “dignidade”, “solidariedade”, “função social do contrato”, “desvantagem manifestamente excessiva” etc no caso concreto). Mas o mínimo que o Direito exige é que o Judiciário não decida contrariamente a textos normativos peremptórios! O texto é só o início do trabalho interpretativo, mas também é seu limite. É lição básica, consagrada na doutrina do Ministro Roberto Barroso, que embora o intérprete crie a norma jurídica a partir da interpretação de textos normativos, os limites semânticos do texto normativo constituem o ponto do qual o Judiciário não pode ultrapassar. Partindo da famosa lição de Kelsen (positivada no art. , II, da CF/88), se é certo afirmar que tudo que não é expressamente proibido é permitido, pelo menos o que é expressamente proibido é… proibido! E a decisão do STF, não obstante o esforço da maioria em dizer o contrário, acabou decidindo contra proibição constitucional e legal. Violou, assim, nossa democracia constitucional. Não respeitou o direito básico de presunção de inocência, tal como positivado na ordem jurídica brasileira, pressuposto básico de nossa democracia. Por isso, sangra, mais uma vez, nossa Constituição Federal, com essa decisão.

    Paulo Iotti é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.

    [1] Sobre o princípio da proibição do retrocesso, parece-me pacífico que ele não impede qualquer restrição – impede “apenas” que se viole o núcleo essencial, em situação equivalente àquela relativa à teoria das garantias institucionais, pode-se mudá-las, desde que não sejam elas desnaturadas. É a doutrina do Prof. Ingo Sarlet, a partir das jurisprudências portuguesa e alemã, que, após defender a implicitude da vedação do retrocesso na ordem constitucional brasileira, aponta que “se é correto apontar a existência e de elevado consenso (pelo menos na doutrina e jurisprudência nacional e, de modo geral, no espaço europeu) quanto à existência de uma proteção contra o retrocesso, igualmente é certo que tal consenso (como já foi lembrado) abrange o reconhecimento de que tal proteção não pode assumir um caráter absoluto, notodamente no que diz com a concretização dos direitos sociais a prestações. Com efeito, sem que se vá aqui aprofundar as razões que vedam o reconhecimento de uma proibição de retrocesso social com feições absolutas, ou seja, impeditivas de qualquer redução nos níveis de proteção social, importa destacar, em apertada síntese, que uma proibição absoluta não apenas implica a afetação substancial da necessária possibilidade de revisão que é peculiar à função legislativa, mas também desconsidera a indispensável possibilidade (e necessidade) de reavaliação global e permanente das metas da ação estatal e do próprio desempenho na consecução de tais metas, ou seja, a reavaliação mesmo dos meios utilizados para realização dos fins estatais, com destaque para a efetivação dos direitos fundamentais. […] Nesse sentido, Vieira de Andrade […] apontou para a circunstância de que a proibição de retrocesso social não pode ser tida como uma regra geral, sob pena de se colocar seriamente em risco a indispensável autonomia da função legiferante, já que não se pode considerar o legislador como órgão de mera execução das decisões constitucionais. […] Entre nós […], Andreas Krell, ao referir – na mesma linha de Vieira de Andrade (no que diz com a proibição de retrocesso) – que a aplicação dessa teoria, que, por si só não veda uma diminuição dos direitos sociais individuais para assegurar interesses públicos urgentes e relevantes, poderia levar a uma proteção maior dos direitos sociais em relação aos direitos de liberdade. […] Com efeito, reitera-se nesta quadra a nossa posição em prol da possibilidade de uma aplicação da proibição de retrocesso a todos os direitos fundamentais, de tal sorte que a designação proibição de retrocesso social, que opera na esfera dos direitos sociais, especialmente no que diz com a proteção “Negativa” (vedação da supressão ou diminuição) de direitos a prestações sociais, além de uma ideia-força importante, poderia ser justificada a partir de algumas peculiaridade dos direitos sociais, o que, importa sempre frisar, não se revela incompatível com a complementariedade entre direitos sociais (positivos e negativos) e os demais direitos fundamentais” (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais… 12a Ed., 2015, pp. 467 e 469). Obviamente, não estou falando que o Prof. Ingo Sarlet concorda com minha afirmação, de que não há violação ao núcleo essencial do princípio da presunção de inocência com a possibilidade de prisão após decisão de segunda instância. Desconheço o entendimento dele sobre o tema específico. O que invoco é a sua doutrina sobre o caráter não-absoluto do princípio da proibição do retrocesso, que me parece aplicável não só aos direitos sociais, mas também aos individuais e fundamentais em geral (que foi o que entendi ser, também, a posição dele). Nesse sentido, a possibilidade de restrição sem violar o núcleo essencial se aplicaria aqui também. Ademais, o Professor Sarlet também parece concordar com a tese da possibilidade de restrições a cláusulas pétreas que não violem o núcleo essencial delas. Com efeito, em sua doutrina, afirma ele que “no que diz respeito com os direitos fundamentais, a proteção a estes outorgada pelo Constituinte, incluindo-os no rol das “cláusulas pétreas”, não alcança as dimensões de uma absoluta intangibilidade, já que apenas uma abolição (efetiva ou tendencial) se encontra vedada. Também aos direitos fundamentais se aplica a já referida tese da preservação de seu núcleo essencial, razão pela qual até mesmo eventuais restrições, desde que não invasivas do cerne do direito fundamental, podem ser toleradas. Que tal circunstância apenas pode ser aferida à luz do caso concreto e considerando as peculiaridades de cada direito fundamental parece não causar maior controvérsia. Assim, constata-se, desde logo, que não há como determinar em abstrato, para todos os direitos fundamentais, a amplitude de sua proteção contra reformas constitucionais, destacando-se, ainda, que tal proteção há que ser diferenciada, dependendo do direito fundamental que estiver em causa” (SARLET, Op. Cit., p. 446).

    [2] Cf. (acesso em 06.04.2018).

    [3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, 2ª Ed., Coimbra: Coimbra Ed., 2001.

    [4] Entre muitos outros, vide, exemplificativamente: STJ, AR 4294/SC, 01ª Seção, Rel. Min, Benedito Gonçalves, DJe de 06.04.2016: “A caracterização da carência do direito de ação por impossibilidade do pedido reclama que haja expressa proibição de veicular o próprio pedido na esfera judicial, o que, a toda evidência, não é o caso estes autos. Precedentes: REsp 782.601/RS, Relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJ de 15 de dezembro de 2009; REsp 322.021/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJ de 8 de setembro de 2009; e REsp 813.678/RJ, Relator Ministro Fernando Gonçalves, Quarta Turma, DJ de 17 de agosto de 2009” (g.n).

    [5] BARROSO, Luís Roberto. Ano do STF: Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. In: Revista Consultor Jurídico, 22.12.2008. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_legitimidade_democratica?página=7 (acesso em 06.4.2018).

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