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25 de Abril de 2024
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    STF e TSE fazem História ao afirmar a Cidadania de Transexuais e Travestis

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    A História da Diversidade de Gênero teve um capítulo muito especial escrito nos dias 28.2 e 02.3.2018.

    Em julgamentos históricos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmaram a humanidade, dignidade, cidadania e autonomia das pessoas transexuais e travestis, ao reconhecerem seu direito de soberana autodefinição de sua identidade de gênero e a necessidade de respeito a suas pessoas enquanto tais. Tivemos uma verdadeira libertação da população de travestis e transexuais (mulheres transexuais e homens trans) nesses paradigmáticos julgamentos.

    Na manhã do dia 01.3.2018, o TSE acolheu a pretensão de reconhecimento da identidade de gênero das pessoas transgênero (transexuais e travestis), para afirmar que mulheres transexuais e travestis podem concorrer na cota destinada ao sexo feminino pela Lei Eleitoral (e, consequentemente, homens trans nas vagas restantes, destinadas ao sexo masculino). A decisão foi proferida em sede de Consulta[1], formulada pela Senadora Fátima Bezerra (PT/RN), que foi instruída com parecer de minha autoria e dirigida pelo brilhante advogado Ademar Costa Filho, por iniciativa do Coletivo #Vote LGBT (com especial atuação de Evorah Cardoso). Na qual contou-se com a especial participação da ativista transexual Luiza Coppieters, que falou em audiência pública pelo TSE, em novembro de 2017[2].

    Ou seja, o TSE reconheceu mulheres transexuais como as mulheres que são e os homens trans como os homens que são. Como apontei em meu parecer, entendimento em sentido contrário geraria a teratológica (extremamente absurda) conclusão de que homens trans, que têm autopercepção e vivência masculinas, concorressem nas vagas destinadas às mulheres. Sem aderir ao método da “vontade do legislador”, nada na pesquisa da história de tramitação parlamentar sequer indicava que se queria usar o termo “sexo” na acepção puramente biológica, denotando proteção à Bancada Feminina, logo, à mulheridade, portanto, ao gênero feminino. Logo, como afirmado pelo TSE, em voto do Relator, Ministro Tarcísio Vieira, seguido à unanimidade, a ação afirmativa em questão visa a proteção da identidade de gênero feminina e não do “sexo biológico” feminino, conclusão absolutamente acertada. Cabendo destacar a bela intervenção do Ministro Roberto Barroso, em sua estreia no TSE, apontando que não só nas urnas eletrônicas, mas qualquer divulgação do nome de candidatas (os) transexuais e travestis deve se dar apenas por seu nome social, nunca por seu nome civil, caso ainda não retificado. Algo apoiado pelo Ministro Luiz Fux, que apontou que o STF se encaminhava para formar maioria para a dispensa de qualquer formalidade judicial e atestados de terceiros para retificar o registro civil das pessoas transgênero.

    No STF, o julgamento dos direitos das pessoas transgênero teve continuidade no dia 28.02.2018, terminando na tarde do dia 01.3.2018, gerando o emblemático reconhecimento do direito à mudança de (pre) nome e sexo de transexuais e travestis, independente de cirurgia de transgenitalização (11×0), de laudos de terceiros (9×2[3]) e de ação judicial (5×4). Com essa história e paradigmática decisão, que tem força de lei pelo efeito vinculante e eficácia erga omnes de ação de controle concentrado de constitucionalidade (art. 102, § 2º, da CF/88), o Brasil se equipara à Argentina, em sua Lei de Identidade de Gênero, ao possibilitar a retificação do registro civil de pessoas transexuais e travestis diretamente em cartório e por soberana autonomia da vontade, obviamente firmada em declaração escrita.

    Creio ser importante rememorar o histórico de tramitação deste julgamento. Dois processos chegaram ao STF sobre o tema. O Recurso Extraordinário (RE) n.º 670.422/RS, recebido pelo STF e com repercussão geral reconhecida em 2014 (Rel. Min. Dias Toffoli), e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4275 (Rel. Min. Marco Aurélio), proposta em 2009, pela Subprocuradora Federal da República Deborah Duprat, no período em que cobriu as férias do então Procurador-Geral da República. Foi um período glorioso esse de Duprat, no qual ela propôs diversas ações progressistas[4]. Na ADI 4275, a PGR pleiteou a mudança de nome e sexo de pessoas transexuais, independente de cirurgia, mas condicionadas a laudos de psicólogo e psiquiatra, atestando sua transexualidade. Sobre o tema, é preciso compreensão histórica para entender esse condicionamento com justiça. Em 2009, não havia sido aprovada a Lei de Identidade de Gênero da Argentina, nem a Espanhola. No Brasil, não se falava (ou quase não se falava) em despatologização das identidades trans. A tese de dispensa de cirurgias, mas com laudos, era a vanguarda da época. Não à toa, Deborah Duprat sempre atuou como importante aliada do respeito aos direitos fundamentais da população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos). No RE 670.422/RS, recurso interposto pela brilhante e histórica Maria Berenice Dias, discutia-se a desnecessidade de cirurgia de transgenitalização para mudança de sexo no registro civil, bem como o descabimento de se colocar a expressão “transexual” na certidão de nascimento deste (algo tão discriminatório e tão violador da dignidade humana das pessoas trans que sequer investirei tempo repudiando essa nefasta posição[5]).

    As primeiras sustentações orais realizaram-se no dia 20.4.2017 (a minha, em nome de GADvS e ABGLT[6], a do Defensor Público da União, Carlos Eduardo Barbosa Paz, e a do advogado Leonardo Almeida Lage, pela ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, todas favoráveis à plena cidadania das pessoas trans). O julgamento não iria começar, mas como advogados (as) estavam presentes, a Ministra Cármen Lúcia (Presidente) autorizou as sustentações orais no RE 670.422/RS. O julgamento iria ser retomado no dia 07.6.2017, mas, novamente, o fim da sessão se aproximava, então, novamente, a Ministra Presidente autorizou as sustentações orais,a gora na ADI 4275 – por Maria Berenice Dias, Wallace Corbo e Gisele Alessandra[7], a primeira advogada transexual a realizar sustentação oral na história do STF. Estava presente nesse dia, sendo possível perceber o quão sensibilizados (as) ficaram os (as) Ministros (as) do STF pela presença de uma advogada trans em sua sustentação oral, muito elogiada pelo Ministro Roberto Barroso (visivelmente tocado pela histórica fala da advogada Gisele).

    Finalmente, no dia 22.11.2017, iniciou-se o julgamento do RE 670.422/RS. Colheram-se cinco votos favoráveis à retificação do registro civil de pessoas trans, independente de cirurgia (Ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso e Ministra Rosa Weber). Tudo se desenhava para uma maravilhosa unanimidade, quando ocorreu algo inesperado. Havia somente oito Ministros (as) presentes (ausentes os Ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski) e o Ministro Toffoli estava impedido de votar na ADI 4275, por ter atuado nela como Advogado Geral da União. Então, como não havia quórum para o julgamento da ADI 4275, o Ministro Marco Aurélio, dela Relator, protestando contra o atraso do início da sessão plenária do STF e a ausência dos demais colegas, bem como apontando a importância do julgamento da ADI 4275 (por ter objeto mais amplo que o do RE 670.422/RS), pediu vista do julgamento, frustrando a militância LGBTI presente na sessão. Embora tecnicamente compreensível, faltou a rotineira sensibilidade ao normalmente sensível e progressista Ministro Marco Aurélio, pois desenhava-se ali uma importantíssima vitória, por 8×0, à cidadania trans, que poderia perfeitamente ser retomada depois, no julgamento da ADI 4275, que tinha um tema a mais que o RE 670.422/RS, a saber, a (des) necessidade de laudos de profissionais de saúde para retificação do registro civil das pessoas trans. E a dispensa da cirurgia certamente já ajudaria muito nos processos judiciais país afora, onde muitos (as) juízes (as) e Tribunais continuavam exigindo-a para retificação de registro civil de pessoas transexuais e travestis, havendo até quem, de forma descabida, estivesse suspendendo os processos até o julgamento do STF (um grave equívoco, pois na sistemática do art , 1.035, § 5º, do CPC/2015, somente determinação expressa do STF, que não é automática, poderia isto ensejar, algo inexistente neste caso).

    Ainda no dia 22.11.2017, fato interessante e muito importante ocorreu. Embora com fundamentação progressista sobre o conceito de transexual, inclusive honrando-me com citação de minha doutrina[8], na evolução conceitual do termo transexual (de “disforia de gênero”, uma patologia, para uma questão puramente identitária), o Ministro Dias Toffoli, em sua tese de repercussão geral, falou apenas em transexuais (sem abarcar travestis) e exigiu a via judicial (expressamente vedando a retificação administrativa[9], que não era objeto de nenhum dos processos e, por isso, não foi objeto de debate com as partes e “amici curiae”).

    Nesse momento, brilhou a estrela da advogada Maria Berenice Dias. Logo após o voto do Ministro Toffoli, Berenice subiu à Tribuna e, em questão de ordem, requereu que a tese de repercussão geral falasse em transgênero, por ser termo que abarca tanto transexuais quanto travestis, destacando haver decisões judiciais em favor de travestis retificarem seu registro civil, da mesma forma que transexuais. Posteriormente, o Ministro Roberto Barroso disse, antes de iniciar seu belíssimo voto, que talvez o Tribunal não estivesse preparado para essa questão conceitual, sobre o significado do termo transgênero. Por isso, após o Ministro Marco Aurélio pedir vista, subi à Tribuna, para apontar questão de fato, a saber, o conceito de transgênero, na definição da Associação de Psicologia Americana (APA), porque citada pelo voto do Ministro Toffoli (e utilizada no Projeto de Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero, que protocolamos na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, no dia seguinte[10]). Contudo, após explicar isso e quando ia começar a explica-lo, fui interrompido pela Ministra Cármen Lúcia, que não permitiu que eu terminasse, aparentemente entendendo que não seria o momento para tanto (do que, com todo o respeito., discordo, já que o art. , X, do Estatuto da Advocacia permite ao advogado realizar questões de ordem e de fato durante o julgamento, sem especificar momento para tanto, donde o juízo discricionário é do advogado, embora, obviamente, sem interromper o voto de nenhuma/a julgador/a). Nesse momento, o Ministro Dias Toffoli, percebendo a importância da questão que eu queria apontar, teve a sensibilidade de sugerir a apresentação de memorial que isto explicasse, que consegui protocolar (superando estafa física do fim de 2017) apenas no dia 10.2.2018, sabedor que o julgamento estava marcado para ser retomado no dia 22.2.2018 (pela pauta ter sido divulgada em dezembro).

    Neste memorial, aproveitei para informar importante e paradigmático fato novo, a saber, o histórico e paradigmático julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva 24/17, na qual ela afirmou, na síntese do essencial, que o direito humano (e constitucional) ao livre desenvolvimento da personalidade das pessoas transgênero resta violado ao se condicionar a mudança de seu nome e sexo no registro civil à realização de cirurgia de transgenitalização, bem como de laudos de terceiros. Bem como afirmou a Corte IDH que identidade de gênero não se prova, devendo ser reconhecida pelo Estado consoante soberana autonomia da vontade da pessoa transgênero (travesti ou transexual). Daí ela ter afirmado que o procedimento que melhor atende esta determinação é o materialmente administrativo, ou seja, independente de ação judicial[11]. Por ter sido divulgada só em janeiro/2018, temi que os (as) Ministros (as) do STF dela não tivessem conhecimento, por isso a trabalhei em meu memorial[12]. No mesmo sentido, em anexo ao citado memorial (embora sem ele protocolar), citei decisão do Tribunal Constitucional Alemão, do final de 2017, sobre tema análogo, a saber, direitos das pessoas intersexos. Com base no mesmo direito humano e fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade (daí o link com a decisão da Corte IDH), disse que não se devem realizar operações em bebês intersexo (caso não seja estritamente necessário à sua saúde clínica, evidentemente, o que ocorre em raros casos), pelo direito humano à autodeterminação de gênero, daquele decorrente (registrando-se o bebê com “gênero neutro” até que, com a devida maturidade, pudesse se autoidentificar como pertencente a um gênero ou a outro)[13].

    Em razão disso, desloquei-me a Brasília e, nos dias 20 e 21.2.2018, despachei com as onze assessorias dos (as) Ministros (as) do STF[14]. Ocorre que o julgamento não se iniciou no dia 22, pois o STF não conseguiu terminar o julgamento das ações relativas ao (não mais tão novo) Código Florestal, iniciados no dia 21.2.2017, o qual, consoante histórica praxe da Corte[15], teve continuidade no dia 22, como primeiro julgamento da pauta (os processos sobre direitos da população transgênero eram os únicos da pauta de quinta-feira, antes disso). Mas nem no dia 22 o STF terminou de julgar o Código Florestal. Restou colher o voto do Ministro Celso de Mello, o que ficou para o dia 28.2.2018, sendo a nós (advogados/as e militantes LGBTI presentes) informado pela Ministra Cármen Lúcia que o julgamento dos direitos da população transgênero se daria imediatamente em seguida. O que ocorreu após o intervalo da metade da sessão do dia 28.2.2018.

    O julgamento se iniciou de forma surpreendentemente negativa

    O Relator da ADI 4275, Ministro Marco Aurélio, um dos mais sensíveis e progressistas do STF, após iniciar com bela fundamentação sobre respeito à identidade de gênero das pessoas trans, estava piorando a situação atual delas! Pois, para mudança de prenome e sexo no registro civil, estava exigindo todos os requisitos da Resolução CFM 1955/2010, que exige laudo de equipe multidisciplinar, por no mínimo dois anos, para que seja válida a cirurgia de transgenitalização, além de idade mínima de 21 anos. Sua Excelência claramente confundiu requisitos para realização da cirurgia (que ele, felizmente, dispensava para mudança de nome e sexo) com requisitos para retificação do registro civil! Duas questões absolutamente autônomas e sem relação necessária, cabe destacar. Isso piorava a situação da população transgênero porque, em geral, a Justiça aceitava apenas um laudo (de psicólogo ou psiquiatra) e o voto do Ministro Marco Aurélio acabava, na prática, exigindo laudos de cirurgião, psiquiatra, psicólogo, endocrinologista e assistente social (a citada equipe multidisciplinar, cf. art. 3º da Resolução CFM 1955/2010). Sem falar da histórica decisão do caso Neon Cunha, sentença transitada em julgado em primeira instância, que retificou nome e sexo da citada ativista transexual independente de cirurgia e de laudos (tal pedido de dispensa de laudos ainda quase não foi judicializado no Brasil[16]).

    O voto do Ministro Alexandre de Moraes foi um pouco melhor. Aceitando estender o julgamento para transgêneros e não só transexuais, Sua Excelência dispensava quaisquer laudos, embora exigisse ação judicial. Chegou a afirmar que isso seria benéfico às pessoas trans, porque na via administrativa elas teriam que levar a nova certidão de nascimento em todos os órgãos que tivesse cadastro, aparentemente presumindo que na via judicial isso não ocorreria. Nesse momento, Maria Berenice Dias subiu à Tribuna para esclarecer, como questão de fato, que se equivocou o Ministro Alexandre de Moraes, pois, na prática, a decisão judicial ordena ao Cartório de Registro Civil a retificação da certidão de nascimento, cabendo à pessoa levar a nova certidão a todos os órgãos que tenha cadastros a ser alterados. O Ministro Moraes não mudou de opinião, mas certamente foi um esclarecimento importante aos demais Ministros e às Ministras da Corte.

    Foi somente no terceiro voto, do Ministro Edson Fachin, que a Justiça começou a ser plenamente feita no dia 01.3.2018. Com fundamentação emancipatória em todos os sentidos, Sua Excelência dispensou cirurgia, laudos e ação judicial, com base na histórica decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, supra explicitada. No mesmo sentido votaram o Ministro Roberto Barroso, a Ministra Rosa Weber e o Ministro Luiz Fux. Cabendo anotar e agradecer ao Ministro Roberto Barroso, que, da mesma forma que no dia 22.11.2017, apontou a revolução jurídica que as decisões do STF têm promovido na temática dos direitos LGBTI e, antes disso, fez questão de apontar a presença a Maria Berenice Dias, de Toni Reis e a minha, elogiando-nos como históricos militantes da causa LGBTI, destacando histórica e notória luta doutrinário-jurisprudencial de Maria Berenice Dias e de meu trabalho jurídico na Litigância LGBTI perante o STF. Sua Excelência elogiou e adotou, ainda, como tese de repercussão geral e parte dispositiva (conclusão) da ADI 4275, a tese que propus em nome do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero e da ABGLT, no meu citado memorial, a saber:

    “A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer, por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade, dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil, pela via administrativa (art. 110 da Lei 6.015/73) ou judicial, independente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade”[17].

    Embora quem vá redigir o acórdão seja o Ministro Edson Fachin (cf. infra), foi basicamente esta a conclusão do Tribunal, como se verá.

    O Ministro Lewandowski votou pela dispensa de cirurgia e laudos, mas condicionando o direito de retificação de registro civil de transexuais à ação judicial. Como os Ministros Marco Aurélio e Dias Toffoli, limitou seu voto a transexuais, sem incluir travestis, sob o fundamento de que a ADI 4275 (e mesmo o RE 670.422/RS) se limitavam a tratar de transexuais. Embora isso seja verdade, em suas teses de repercussão geral e mesmo em controle concentrado de constitucionalidade, não é incomum o STF ampliar o escopo da decisão para questões análogas (equivalentes, idênticas no essencial) ao objeto do julgamento.

    Em seguida, votou o decano, o Ministro Celso de Mello. Em erudito voto, afirmou a necessária proteção de minorias e grupos vulneráveis contra ações e omissões de maiorias que prejudiquem seus direitos fundamentais, no exercício da função contramajoritária inerente à jurisdição constitucional, em uma compreensão substantiva da democracia. Ratificou os Princípios de Yogyakarta, sobre aplicação dos tratados internacionais de direitos humanos nas questões atinentes à orientação sexual e à identidade de gênero, os quais repudiam procedimentos cirúrgicos e médicos em geral para mudança do registro civil das pessoas transgênero (3º Princípio[18]). Homenageando a doutrina de Saul Tourinho Leal[19], afirmou que o direito fundamental à felicidade, implícito ao princípio da dignidade da pessoa humana, resta prejudicado relativamente às pessoas transgênero quando o Estado exige-lhes cirurgia e/ou laudos para retificação de seu registro civil. Aderiu à corrente da via administrativa, bem destacando que, caso o Oficial de Registro tenha alguma perplexidade no caso concreto, pode perfeitamente suscitar procedimento de dúvida ao Juízo de Registros Públicos competente (algo tradicional e basilar nessa seara). Bem como, e isso é muito importante, afirmou que “Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser discriminado em razão de sua identidade de gênero ou orientação sexual”, repudiando assim quaisquer manifestações transfóbicas, contrárias aos direitos e à plena cidadania das pessoas transgênero. Fundou-se nos direitos fundamentais à liberdade, à autodeterminação, à alteridade, ao pluralismo, à intimidade e, sobretudo, à busca da felicidade e ao princípio da dignidade da pessoa humana para dispensar cirurgia, laudos e ação judicial para a retificação do registro civil das pessoas transexuais e travestis.

    Ato contínuo, votou o Ministro Gilmar Mendes. Em breve voto, concordou com a dispensa de cirurgia e laudos, com base no direito humano e constitucional ao livre desenvolvimento da personalidade, mas exigiu ação judicial. Seguindo o Ministro Toffoli, rejeitou a possibilidade de retificação via administrativa, com base no art. 110 da Lei de Registros Publicos (objeto de Pedido de Providências n.º 0005184-05.2016.2.00.0000, proposto pela Defensoria Pública da União, no CNJ, para possibilitar a mudança na via administrativa, o qual ficou suspenso até o julgamento do STF nos processos em questão).

    Nesse momento, já tínhamos largas maiorias para dispensa de cirurgia e laudos. Mas tínhamos empate (5×5) na questão da dispensa ou não de ação judicial para retificação do registro civil das pessoas trans.

    Em seu voto de minerva sobre o tema, a Ministra Cármen Lúcia fez histórica e emocionante manifestação. Disse que mulheres em geral sofrem uma infinidade de discriminações e opressões por pertencerem ao gênero feminino (pela lógica machista, evidentemente), mas que se impressionou quando uma pessoa transgênero, sem isso desmerecer, lhe disse que a população LGBTI tem um agravante relativamente a isso. Pois as minorias e grupos vulneráveis em geral têm o apoio de suas famílias contra as opressões que sofrem na sociedade, mas a população LGBTI em geral tem, em casa, o primeiro lugar de opressão. Por agressões e mesmo expulsões do lar, por sua mera orientação sexual não-heteroafetiva ou identidade de gênero transgênera. Em belíssima analogia, afirmou que ninguém é efetivamente livre quando terceiros podem definir suas identidades e seus modos de ser em geral. Em outra bela comparação, citou Cecília Meirelles, quando esta escreveu: “Já fui loira, já fui morena, já fui Margarida e Beatriz, já fui Maria e Madalena, só não pude ser como quis”, belíssima metáfora sobre a transfobia cissexista que nega às pessoas trans serem como querem ser, negando-lhes o direito à diferença para vivenciarem a identidade de gênero que sentem, em seu íntimo, como sua. Disse fundar seu voto nos direitos fundamentais à dignidade, à igualdade material, à honra, à imagem, à intimidade e à liberdade, para, com isso, julgar procedente o pedido, para a retificação do registro civil de pessoas transgênero, independente de cirurgia, de laudos e de ação judicial.

    Foi um dia histórico, de verdadeira libertação da população de travestis, mulheres transexuais e homens trans no Brasil.

    Um dia de uma felicidade ímpar, só equiparável ao também histórico julgamento das uniões homoafetivas, nos dias 04 e 05.5.2011. Em 2011, o STF reconheceu o direito à diversidade sexual. Em 2018, reconheceu o direito à diversidade de gênero. Nossa Suprema Corte tem se mostrado uma firme defensora do direito à igualdade e não-discriminação e do direito à diferença de minorias e grupos vulneráveis, consoante a célebre máxima de Boaventura de Souza Santos, pela qual “Temos o direito à igualdade quando a diferença nos inferioriza e temos o direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza”[20] – e descaracteriza a identidade de gênero das pessoas transgênero trata-las como se cisgêneras fossem (por nome civil atribuído no nascimento), sem atentar-se à sua peculiar identidade de gênero e respeitá-la enquanto tal (o que demanda a retificação de seu registro civil e, até lá, do respeito a seu nome social, tratando-a socialmente de acordo com sua identidade de gênero autopercebida). Em tempos nefastos de reacionarismo social e político, o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado uma importante luz na defesa da população LGBTI contra o heterossexismo e o cissexismo compulsórios (estruturais, sistemáticos e institucionais que são), que proclamam (absurdamente) a “superioridade” da heterossexualidade e da cisgeneridade sobre as distintas orientações sexuais e identidades de gênero. Outras minorias e grupos vulneráveis também têm sido protegidas (os) pelo STF, que tem, assim, cumprido muito bem seu importante papel de proibir opressões pretendidas por maiorias[21]. Como há anos diz o Ministro Roberto Barroso, não é porque você tem oito católicos e dois muçulmanos que o primeiro grupo pode deliberar jogar o segundo pela janela[22]. Direitos fundamentais e direitos humanos não podem ser dispensados por mero voluntarismo majoritário. Isso é algo da essência do constitucionalismo e, nesse ponto, pelo menos quanto a direitos individuais de autonomia privada, tem sido exemplar nossa Suprema Corte, que merece muitos aplausos por resistir ao reacionarismo social e político na proteção destes.

    Paulo Iotti é Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.

    [1] Processo n.º 0604054-58.2017.6.00.0000.

    [2] Cf. , onde há acesso à íntegra da Consulta, do parecer de minha autoria, o depoimento de Luiza e a decisão. Para apenas o parecer, vide: . Para apenas a Consulta, vide: . Para síntese da decisão, com link ao voto do Relator (que cita que a Consulta foi embasada no meu citado parecer), vide: . Para ir diretamente ao voto do Relator, vide: (acessos em 02.3.2018).

    [3] Os votos ainda não estão disponíveis. Enunciou placares porque estava presente nas sessões de julgamento. O Ministro Toffoli não mencionou, em sua fala, sobre a (des) necessidade de laudos, mas presumo que assim entende, já que adotou o viés puramente identitário, e não patologizante, das identidades trans.

    [4] Como a da liberação da Marcha da Maconha, em respeito à liberdade de expressão para legalização de drogas (ADPF 187) e a segunda ação pleiteando o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar e união estável constitucionalmente protegida (uma primeira ação havia sido proposta, em 2008, pelo então Governador do Rio de Janeiro, a ADPF 132, que atacava lei estadual fluminense. Para evitar discussões de puro formalismo, pois se estava começando a discutir se eventual decisão positiva do STF seria vinculante apenas no Estado do Rio de Janeiro (!), por ser ação contra lei estadual fluminense, Duprat propôs a ADPF. 178, em face do art. 1.723 do Código Civil, que acabou convertida em ADI 4277).

    [5] Algo já denunciado na clássica obra, do ano 2000, de ARAUJO, Luiz Alberto David. A Proteção Constitucional do Transexual, São Paulo: Ed. Saraiva, 2000. Uma obra que é uma ode ao direito à felicidade, aplicado às pessoas transexuais. O Ilustre Professor bem aponta que designar alguém como “transexual” no registro civil somente aumenta o estigma social, transfóbico, contra tal pessoa, defendendo, com base no direito fundamental à intimidade, o direito ao esquecimento do passado da pessoa transexual, após a retificação de seu registro civil. Era uma época em que havia polêmica na retificação de nome e sexo de transexuais mesmo após a cirurgia de transgenitalização, daí o foco do autor nesse tema.

    [6] Para acesso à minha sustentação oral, vide: . Para breve explicação de trechos de nossas falas, vide: https://www.conjur.com.br/2017-abr-21/entidades-defendem-stf-mudanca-registro-civil-transexuais (acessos em 02.3.2018).

    [7] Para a histórica sustentação oral da advogada Gisele Alessandra, vide: . Para a arrepiante sustentação oral do advogado Wallace Corbo, vide: . Para a sustentação oral da sempre sensível advogada Maria Berenice Dias, vide: (acessos em 02.3.2018).

    [8] VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 2ª Ed., São Paulo: Ed. Método, 2014, p. 83. VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Minorias Sexuais e Ações Afirmativas. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues (org.). Minorias Sexuais. Direitos e Preconceitos, Brasília: Ed. Consulex, 2012, p. 37.

    [9] Eis a tese proposta por Sua Excelência: “O transexual, comprovada judicialmente sua condição, tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, independentemente de realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo”. Cf. (acesso em 10.2.2018).

    [10] Sugestão 61/2017. Ajudei na redação inicial e final do referido Projeto de Lei, que teve como entusiástica liderança fundamental a sempre brilhante e histórica Maria Berenice Dias. Disponível em: (acesso em 02.3.2018).

    [11] Para breve artigo de minha autoria sobre essa histórica decisão, cuja primeira nota de rodapé traz links do press release e da íntegra da decisão, vide VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O arco-íris coloriu as Américas! In: Justificando, 12.01.2018. Disponível em: (acesso em 02.3.2018).

    [12] Íntegra disponível como peça 154 da ADI 4275. Também disponível em: (acesso em 02.3.2018).

    [13] Cf. . Acesso em 12.11.2017. Explicação por paráfrase, em tradução livre (este link remete ao press release da decisão, em inglês, que resume seus principais fundamentos).

    [14] É impossível marcar audiência diretamente com Ministro (a) sem pelo menos um mês de antecedência. Mas despachar com assessorias normalmente também é bem frutífero em nossa Suprema Corte.

    [15] Critiquei a histórica praxe de pauta do STF em: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Críticas Construtivas e Propostas: pauta do STF e desrespeito à advocacia e aos movimentos sociais. In: Justificando, 26.2.2018. Disponível em: (acesso em 02.3.2018).

    [16] Tenho processo aguardando sentença no momento da publicação desse artigo, onde isto requeiro. O parecer de mérito do Ministério Público mostra como o tema ainda não é problematizado. Não conseguiu a Promotoria conceber como uma pessoa transexual poderia ter retificado seu registro civil sem laudos de profissionais da saúde. Contraditoriamente, reconheceu a não-patologia das identidades trans (algo correto), mas exigiu laudos (algo incorreto e que, na prática, patologiza tais identidades ou, no mínimo, as condiciona à opinião de terceiros). Sequer concebeu tal parecer o direito humano e constitucional ao livre desenvolvimento da personalidade, tal como afirmado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (cf. supra, no corpo do texto). Menciono essas questões para mostrar como o tema não era objeto de debates nas instâncias ordinárias até este histórico julgamento do STF, o que mostra, ainda mais, a importância histórica do mesmo.

    [17] Como se vê, por fins estratégicos, parti da redação da tese de repercussão geral do Ministro Dias Toffoli (vide nota 5, supra), apenas adequando-a às pretensões do Movimento de Transexuais e Travestis. Os grifos referem-se às minhas modificações. Esclareça-se que falei em “via administrativa ou judicial” usando a mesma lógica de inventários e divórcios consensuais, nos quais a jurisprudência amplamente dominante permite a escolha discricionária de uma via ou outra pelos (as) interessados (as), sem aplicar falta de interesse de agir à judicial mesmo sendo possível a via administrativa.

    [18] Cf. . Esses são os Princípios Originais, de 2006, dos quais foi extraído o 3º Princípio, citado pelo Ministro Celso de Mello. Eles foram atualizados em 10.11.2017, cf.: (acessos em 02.3.2018).

    [19] LEAL, Saul Tourinho. Direito à Felicidade, São Paulo: Ed. Almedina Brasil, 2017. Esse mesmo livro foi citado, pelo TSE, no citado julgamento dos direitos das pessoas trans, no voto do Relator.

    [20] Grifos nossos.

    [21] Nesse sentido, vide: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. STF: um Tribunal amigo “apenas” de liberdades individuais de autonomia privada? In: Justificando, 28.10.2016. Disponível em: (acesso em 02.3.2018).

    [22] Cf. BARROSO, Luís Roberto. Ano do STF: Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. In: Revista Consultor Jurídico, 22.12.2008. Disponível em: (acesso em 02.3.2018).

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    Por favor, qual deve ser a tramitação legal para regulamentar a decisão do STF junto aos Cartórios? A decisão tem aplicação imediata? continuar lendo