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20 de Abril de 2024
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    Intervenção federal irregular na segurança pública no Rio de Janeiro

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    O Presidente da República decretou, em 16/02/2018, intervenção no Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”[2], o que se enquadra na hipótese de intervenção do art. 34, III, da Constituição da República. A intervenção circunscreve-se “à área de segurança pública”[3] e afeta, portanto, os direitos fundamentais.

    Embora a intervenção seja um ato eminentemente político, trata-se de instituto clássico do federalismo, que está disciplinado na Constituição. Existem, assim, parâmetros jurídicos que pautam a intervenção e autorizam modalidades de controle social, político e judicial. O Presidente da República tem uma grande margem de apreciação discricionária na intervenção, mas que não é ilimitada.[4]

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    Controle social é exercido pelo Conselho da República[5] e pelo Conselho de Defesa Nacional[6], que têm de ser ouvidos[7] e com antecedência (a menos que a urgência da situação não permita essa oitiva prévia), embora o pronunciamento deles não vincule o Presidente. Compõem o Conselho da República, por exemplo, os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, e seis cidadãos brasileiros[8]; têm assento no Conselho da República, por exemplo, os Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal[9].

    Colher a opinião desses Conselhos, então, é uma exigência democrática, que envolve o direito de participação popular. Por isso, é inválido o decreto de intervenção que não tenha sido precedido da convocação e reunião dos Conselhos da República e de Defesa Nacional. Não se tem notícia de que o decreto de intervenção no Rio de Janeiro tenha atendido a essa condição básica.

    Controle político é exercido pelo Congresso Nacional[10], que deverá “apreciar” o decreto em 24 horas[11]. O decreto precisa ser aprovado pelo parlamento.

    Controle judicial, que é inafastável quando houver lesão ou ameaça a direito[12], abrange também a verificação dos estritos requisitos para a intervenção, que estão estabelecidos em normas jurídicas constitucionais.

    O conteúdo mais importante de um decreto interventivo são as medidas a serem adotadas, que definirão a natureza e extensão da intervenção. Esses são aspectos imprescindíveis, pois revelarão o quanto da autonomia estadual será limitado. A Constituição determina expressamente que sejam especificados “a amplitude, o prazo e as condições de execução”[13]. Como afirma Michel Temer, a intervenção não é uma “carta branca” que confere poderes ilimitados.[14] Não é necessário – e talvez não haja tempo hábil para – o detalhamento das medidas, mas elas devem ser minimamente indicadas. Sem essa definição, não é possível realizar qualquer dos controles previstos. As medidas adotadas na intervenção, especialmente no campo da segurança pública, tem grande possibilidade de afetar direitos fundamentais, cuja proteção requer um controle rigoroso dos atos interventivos.

    Ocorre que o decreto de intervenção no Rio de Janeiro nem sequer esboça as medidas a serem adotadas, limitando-se a mencionar, muito genericamente, que as atribuições do interventor serão “aquelas previstas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro necessárias às ações de segurança pública, previstas no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro”.[15] O art. 145 da Constituição estadual disciplina toda a competência privativa do Governador e o Título V (art. 183 a 191) trata da segurança pública.

    Dentre os dispositivos sobre segurança pública, consta que “[o]s municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei” (art. 183, § 1º, da Constituição estadual); o que tem isso a ver com a intervenção? Tão descuidada e genérica é a formulação do decreto, que, ao invés de apontar medidas, contenta-se com a técnica da remissão.

    Por outro lado, o decreto interventivo não pode ser mera delegação geral para a adoção de medidas inespecíficas. Isso deporia contra a competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo para decretar a intervenção.[16]

    Os dispositivos do decreto de intervenção em comento tratam apenas dos modos de execução e a rigor são despiciendos. O interventor poderá “requisitar, se necessário, os recursos financeiros, tecnológicos, estruturais e humanos do Estado do Rio de Janeiro afetos ao objeto e necessários à consecução do objetivo da intervenção”[17], e “exercerá o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição e no Título V da Constituição do Estado do Rio de Janeiro”[18]; para tanto, poderá requisitar “os bens, serviços e servidores afetos às áreas da Secretaria de Estado de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro e do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro”[19].

    Sabemos, enfim, quais as competências genéricas que o interventor terá: as mesmas que já estão previstas no âmbito estadual. Mas, afinal, que tipo de medidas interventivas ele deverá adotar? Essa formulação elementar não consta do decreto interventivo.

    Para executar a intervenção, está prevista a figura do interventor. Essa designação é natural no processo interventivo, conquanto nem sempre necessária. Trata-se de uma designação exclusiva do Presidente da República. O interventor atuará como autoridade federal substituinte e como autoridade estadual substituída. O Presidente pode nomear qualquer pessoa de sua confiança, inclusive um militar.

    Todavia, a natureza da intervenção não é militar e sim civil. Aqui, o critério da topografia constitucional ajuda a esclarecer: as Forças Armadas estão previstas no Capítulo II do Título V da Constituição (“Da defesa do Estado e das instituições democráticas”), enquanto a segurança pública está prevista no Capítulo III.

    É surpreendentemente grosseira, portanto, a menção de que “[o] cargo de Interventor é de natureza militar”[20], apenas porque o interventor nomeado é um General de Exército[21]. Se assim fosse, o cargo de secretário estadual da segurança pública seria de natureza policial, sempre que um delegado fosse nomeado para ele!

    A pretensa natureza militar do cargo de interventor – cujas funções abrangem atos de natureza eminentemente civil – tende a atrair, indevidamente, o rígido regime jurídico próprio da atuação militar, inclusive quanto à competência para julgamento dos atos de intervenção, o que atinge severamente os direitos fundamentais.

    A intervenção caracteriza-se por afastar e substituir, episodicamente, a autonomia estadual.[22] No mais, o Estado sob intervenção mantém-se e o interventor assume as funções estaduais que estão sendo substituídas. Por isso, o interventor é uma autoridade federal, sob o ângulo do Governo Federal que intervém, e é uma autoridade estadual, sob o ângulo do Governo estadual sob intervenção. Se, por exemplo, o interventor nomeia ou demite alguém da organização administrativa do Estado, no exercício da gestão ordinária da autoridade substituída, ele age, por substituição, no desempenho de uma competência estadual e não federal. Causa estranheza, então, a determinação contida no decreto sob análise, de que o interventor “não está sujeito às normas estaduais que conflitarem com as medidas necessárias à execução da intervenção”.[23]

    Se as medidas necessárias à execução da intervenção disserem respeito a competências (tanto materiais, quanto legislativas) federais, o interventor ficará sujeito à legislação federal. Porém, se as competências desempenhadas forem estaduais e o interventor atuar na qualidade de autoridade estadual substituída, então ele estará sujeito, sim, às normas estaduais e o desrespeito a elas implicará invasão de competência federativa, uma inconstitucionalidade que está prevista na Constituição – ó paradoxo! – como causa de intervenção para “garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação”.[24] Ao determinar o desrespeito às normas estaduais, o decreto de intervenção no Rio de Janeiro viola uma das mais importantes cláusulas constitucionais, que é o princípio federativo, e pode configurar crime de responsabilidade.[25]

    A opção pela intervenção cabe, discricionariamente, ao Chefe do Poder Executivo. Mas, no Estado de Direito, essa não pode ser uma atitude arbitrária. A excepcionalidade da intervenção reclama uma interpretação estrita, conforme adverte Pontes de Miranda.[26]

    A Constituição atribui caráter excepcional à intervenção, seja porque estabelece, no quadro dos princípios fundamentais, a “união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”[27]; seja porque consagra a autonomia dos entes federativos[28]; seja porque formula o regime de intervenção de forma negativa (“A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para…”[29]); seja porque dispõe que “a forma federativa de Estado” é cláusula pétrea, relativamente imune à reforma constitucional[30]; seja porque inibe emendas à Constituição[31]; seja porque configuram crime de responsabilidade do Presidente da República os atos que atentem contra a existência da União e o livre exercício dos Poderes constitucionais das unidades da Federação[32].

    Embora não se questione a efetiva ocorrência de grave comprometimento da ordem pública, o pressuposto material da intervenção deve estar presente com gravidade, evidência e, sobretudo, urgência suficientes, quando não houver outro meio disponível e eficaz[33], visto que ela representa um “trauma” e deve ser utilizada somente “como recurso final…, depois de exauridos os meios menos drásticos” (Hely Lopes Meirelles).[34]

    Nesse aspecto, a intervenção no Rio de Janeiro não se mostra indispensável, pois estão previstos e são efetivamente utilizados outros meios adequados – e prioritários – para enfrentar a crise de segurança pública. E, sendo crônica essa crise de segurança pública, também não houve um episódio específico que justificasse a urgência.

    Por exemplo, a “cooperação federativa no âmbito da segurança pública”[35], que enseja a mobilização da Força Nacional de Segurança Pública[36] e que já esteve mais de uma vez no Estado. Ela baseia-se num acordo entre a União e o Estado ou Distrito Federal.[37] Na atual crise fluminense, não houve oposição do Governo estadual, que tem aceito e aproveitado a colaboração da União.

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    Intervenção federal é cortina de fumaça para reais problemas da segurança pública

    O Governador do Rio de Janeiro participou da reunião com o Presidente da República e sua equipe, em que se decidiu pela intervenção federal, e concordou com ela publicamente. Ora, se houve consenso, a intervenção não era necessária no âmbito da segurança pública, visto que há um meio alternativo previsto em lei e que vem sendo utilizado. A União tem como colaborar efetivamente no enfrentamento da crise de segurança pública do Rio de Janeiro sem que fosse preciso adotar a medida drástica da intervenção federal.

    De forma semelhante, dão-se com certa frequência operações militares provisórias de atuação com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade, também por decreto do Presidente da República. É a chamada “garantia da lei e da ordem” (GLO).[38] Essa possibilidade de atuação militar na segurança pública por decreto do Presidente torna a intervenção federativa muito excepcional.

    Tem de ser temporária a intervenção e considerar a evolução da situação de crise que pretende resolver. Ainda que não esteja previsto na Constituição ou em lei um prazo determinado para a intervenção, e outro decreto possa ser editado para prorrogar ou voltar a decretar a intervenção, é preciso que o decreto contenha um prazo e que seja ele razoável.

    O decreto agora lançado pelo Presidente da República estabelece o longo prazo de 31 de dezembro de 2018. Como estamos em fevereiro, a intervenção poderá estender-se por todo o ano, sem considerar a eventual evolução da situação. Outrossim, este será um ano de eleições para Presidente da República, Deputados Federais e Senadores, bem como – sintomaticamente – para Governadores. Medidas impactantes como uma intervenção federal tendem a influenciar as eleições e, portanto, precisam estar sobejamente justificadas inclusive quanto à sua atualidade. Estipular apenas o fim do ano como prazo, sem levar em conta os desdobramentos da intervenção em tempo real, mostra-se escandalosamente desproporcional.

    Ademais, o prazo estimado tem de estar devidamente fundamentado. Sendo certo que o Presidente da República tem competência para fixar a duração da intervenção, desde que razoável, ele deve, porém, justificá-la. A explicitação das medidas a serem adotadas é um aspecto importante para fundamentar o prazo previsto. Contudo, o decreto sob apreciação não aponta as medidas, o que por si compromete a validade do decreto, além de deixar sem base de avaliação a duração da intervenção.

    A segurança é um direito fundamental[39], que tem como uma de suas projeções institucionais a segurança pública. A garantia da segurança das pessoas e bens deve ser feita, no entanto, de acordo com a Constituição e demais normas jurídicas. O governo da sociedade pelas autoridades legitimamente constituídas e eleitas também é um direito fundamental de feitio político.

    Quando ocorre uma intervenção federal, é preciso respeitar todas essas dimensões dos direitos fundamentais. A repressão às agressões à ordem pública que comprometem a segurança pública não deverá jamais, por sua vez, provocar insegurança e enfraquecer as franquias constitucionais.

    Se estiverem efetivamente presentes razões que justifiquem uma intervenção federal, mereceremos, no contexto da defesa do Estado e das instituições democráticas, um exemplo melhor de decretação.

    Walter Claudius Rothenburg é Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II. Procurador Regional da República. Professor do Centro Universitário de Bauru (CEUB).

    [2] Art. 1º, § 2º, do Decreto.

    [3] Art. 1º, § 1º, do Decreto.

    [4] SLAIBI Filho, Nagib. Anotações à Constituição de 1988. Aspectos fundamentais. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 166.

    [5] Lei 8.041/1990.

    [6] Lei 8.183/1991.

    [7] Constituição da República, art. 90, I, e art. 91, § 1º, II; Lei 8.041/1990, art. , I; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 807; FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre poderes. O poder congressual de sustar atos normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 32-33; TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 910; MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 303.

    [8] Constituição da República, art. 89, IV, V e VII.

    [9] Constituição da República, art. 91, II e III.

    [10] Constituição da República,art. 49, IV.

    [11] Constituição da República, art. 36, § 1º.

    [12] Constituição da República, art. , XXXV; LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Comentários aos art. 34 a 36. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2. tir., 2014, p. 816.

    [13] Constituição da República, art. 36, § 1º.

    [14] Elementos de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros,1993, p. 77-78.

    [15] Art. 3º do Decreto.

    [16] Constituição da República, art. 84, X.

    [17] Art. 3º, § 2º, do Decreto.

    [18] Art. 3º, § 5º, do Decreto.

    [19] Art. 4º do Decreto.

    [20] Art. 2º, parágrafo único, do Decreto.

    [21] Art. 2º do Decreto.

    [22] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 485.

    [23] Art. 3º, § 1º, do Decreto.

    [24] Constituição da República, art. 34, IV.

    [25] Constituição da República,art. 85, I.

    [26] Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda n. 1, de 1969). t. II. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 244.

    [27] Constituição da República, art. 1º.

    [28] Constituição da República, art. 18.

    [29] Constituição da República, art. 34

    [30] Constituição da República, art. 60, § 4º, I.

    [31] Constituição da República, art. 60, § 1º; ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito constitucional. São Paulo: Verbatim, 2010, p. 161-162.

    [32] Constituição da República, art. 85, I e II.

    [33] WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 75.

    [34] Direito municipal brasileiro. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 111.

    [35] Lei 11.473/2007, art. , parágrafo único: O Governo Federal, “por intermédio do Ministério da Justiça, poderá colocar à disposição dos Estados e do Distrito Federal, em caráter emergencial e provisório, servidores públicos federais, ocupantes de cargos congêneres e de formação técnica compatível”.

    [36] Lei 11.473/2007, art. , § 1º.

    [37] Lei 11.473/2007, art. , parágrafo único.

    [38] Constituição da República, art. 142; Lei Complementar 97/1999; Decreto 3.897/2001.

    [39] Constituição da República, art. e 6º.

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