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19 de Abril de 2024
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    Vi um preso paraplégico ser enviado à prisão em audiência de custódia

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    “Xavier, abandonai toda a esperança!”

    Relato histórico, delírio de um insone ou uma clara construção sensacionalista? O leitor, e somente ele, poderá, ao exercer seu juízo crítico, responder a natureza dos rabiscos que compõem esse texto. O verão na mais que centenária cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro é sufocante, mas não é sensação térmica que causa o maior desconforto. É o vivenciado por um preso que impressiona e, por essa razão, será narrado.

    Xavier, após 18 dias de internação hospitalar, é transportado em uma UTI móvel e, enfim, ingressa no sistema prisional fluminense. A despeito de existir previsão normativa para a realização da audiência de custódia na unidade hospitalar em casos como esse[i], ocorreu despudorado descumprimento do prazo de 24h para a realização da audiência de custódia. Quiçá inspirado na máxima antes tarde do que nunca, trazendo sobre seu colo uma bolsa de colostomia e trajando fraldas, extemporaneamente aquilo que foi considerado como direito subjetivo do preso pelo STF, a sua apresentação diante da autoridade judicial para aferir a legalidade da sua prisão e necessidade de imposição de medidas cautelares, era enfim objeto de fruição.

    Naquele momento, desvelou-se um momento marcante na vida daquele agora cadeirante, qual seja, em razão de um roubo ocorrido em cidade da região metropolitana, Xavier foi alvejado por tiro disparado por policiais militares. Independentemente da veracidade de sua versão que negava a participação no crime, havia, desde já, uma certeza: a sua coluna havia sido atingida por um projétil de arma de fogo e jamais ele poderia se livrar daquela cadeira de rodas.

    Além da versão dos fatos, o Defensor Público no exercício do mais alto espírito burocrático coleta dados que somente servem para divulgação em eventos midiáticos. Em razão de um narcisismo institucional, o que importa são os relatórios e não o enfrentamento dos problemas narrados pelos presos. Eventuais argumentos que poderiam embasar teses defensivas no curso das ações penais são perdidos nos labirintos burocráticos. Em suma, naquele momento ocorre a instrumentalização do ser humano justamente por aquele que integra carreira que deveria promover os direitos humanos e a defesa dos necessitados.

    Após enfadonhas marcações de um formulário, que, até o presente momento, não ensejaram qualquer efeito – a título ilustrativo, é possível destacar o fato de que o estado do Rio de Janeiro, por força de uma decisão judicial, está proibido de fotografar pessoas privadas de liberdade sem o prévio consentimento ou a justificação para esse agir; todavia, rotineiramente, são apresentados relatos por partes dos presos entrevistados na masmorra que eufemisticamente é denominada como parlatório sobre o desrespeito ao direito de imagem e nada se faz – Xavier é levado para a sala de audiência.

    Nova entrevista, agora realizada pelo membro do Poder Judiciário, é feita. Ato contínuo, é assegurada a garantia do contraditório, quando então Estado-acusação e, logo após, o Estado-defesa se manifestam.

    Aquele que deveria fiscalizar o cumprimento da lei não visualiza, e assim se manifesta expressamente, qualquer ilegalidade no fato de alguém se encontrar preso por 18 dias sem que o inquérito tivesse sido encerrado tampouco tivesse sido oferecida denúncia. Assinala, também, que a prisão do paraplégico é necessária para garantir a ordem pública, pois o crime de roubo é grave e afeta o patrimônio e a integridade psíquica da vítima, e para resguardar a conveniência – uma prisão processual nunca pode ser conveniente! – da instrução criminal, uma vez que as vítimas poderiam se sentir constrangidas em saber que Xavier teria sido solto. Arremeta a sua fala apontando que o preso cadeirante não comprovou o seu estado clínico e a incapacidade do sistema penitenciário em fornecer o seu tratamento, o que afastaria a possibilidade de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar.

    A partir da frase “com a palavra a defesa” é chegado o momento de Xavier se insurgir contra o verdadeiro surrealismo argumentativo lançado por quem deveria zelar pelo fiel cumprimento da ordem jurídica brasileira.

    O silêncio foi a primeira forma de expressão defensiva. E não se tratava de um protesto ou uma estratégia, era a mais pura forma de expressar a incredibilidade frente ao que acabara de ser sustentado.

    Legalidade da prisão? Qual é o Código de Processo Penal – quiçá somente a versão elaborada Francisco Campos e unicamente em vigor para o acusador de plantão – que permite que um indiciado preso aguarde indefinidamente o término de um inquérito? Qual foi a lei que revogou o artigo 10, caput, CPP? E o prazo para o oferecimento da denúncia no caso de preso não mais subsiste? Na realidade líquida, a ânsia punitivista somente extravasa o gozo pelo sofrimento do outro e faz tudo isso sob a roupagem de que assim será alcançada a paz social. Prazos peremptórios se tornam elásticos, pois são medidos por aquela lógica própria do Leito de Procusto. Afinal, o que importa mesmo é prender!

    O sofrimento suportado pela vítima do roubo que é imputado a Xavier não é ignorado pela defesa. Porém, a crítica que se faz ao comportamento do acusador, já que fiscal da lei não o é, se pauta na concepção constitucional do processo penal, isto é, mecanismo racional de controle do exercício do poder punitivo. Daí, porque, no processo penal, o foco deverá ser naquele que sofre a persecução. Não será a solução penal que diminuirá as dores da vítima e quem assim pensa é movido por má fé ou pela mais pura ingenuidade.

    Legalidade, portanto, não havia naquela prisão. O mesmo destino é aferido quanto à necessidade do cárcere cautelar. O uso performático de um conceito jurídico indeterminado, a ordem pública, somente demonstra a falta de argumento. Aliás, o manejo da ordem pública como um verdadeiro salvo-conduto decisório para a imposição de prisões nada mais é do que a realidade do desconhecimento sobre aquilo que se fala. Zeca Baleiro, muito embora tenha outro pano de fundo, apresenta em versos o que é o uso de algo que não se sabe do que se fala:

    Eu não sei dizer

    o que quer dizer

    o que vou dizer”[ii]

    Chega a ser constrangedor apontar para um risco à instrução criminal como razão de ser da prisão preventiva. Afora a ausência de qualquer lastro para essa assertiva, há de se indagar como um cadeirante que necessita de apoio de terceiros para se locomover, pois não consegue mexer seus braços, poderia ameaçar a vítima. Talvez da sua existência, por si só, consiga se responder esse questionamento.

    A maior aberração reside na ausência de comprovação do quadro clínico de Xavier e das condições do sistema prisional, o que impediria, em último caso, a prisão domiciliar. O preso em questão ingressou na Cadeia, tal como já dito, em uma UTI móvel. Nessa mesma unidade prisional, conforme noticiado por renomado veículo da mídia[iii], o médico que atende a população carcerária é um ex-secretário estadual de saúde que se encontra privado de liberdade. E o faz com consentimento da Secretaria de Administração Penitenciária, já que a carência de recursos é notória. O que seria preciso trazer mais para sensibilizar o acusador? Levantar Xavier da cadeira de rodas e mostrar que estava de fraldas? Deixá-lo de pé e sem qualquer apoio aguardar o tombo para acreditar na paraplegia? Derramar todo o conteúdo existente na bolsa de colostomia e por meio da escatologia comprovar o seu estado? O Defensor Público, em nome da dignidade de Xavier, não quis adotar nenhuma dessas posturas, pois a situação em si já apontava para o cabimento da prisão domiciliar nos moldes previstos no artigo 318, inciso II, CPP.

    Xavier teve todos os seus pedidos indeferidos e aquela medida, a prisão processual, que deveria ser excepcional, portanto, com uso parcimonioso, foi mais uma vez utilizada. Não resta dúvida de que se trata de mais um caso abusivo da resposta encarceradora. Em sede de habeas corpus, o Poder Judiciário manteve a decisão e negou os pedidos liminares apresentados pela defesa de Xavier. Quem sabe, um dia, algum magistrado reveja esse tenebroso cenário. Enquanto isso, inspirado no pórtico do inferno descrito por Dante, restará a Xavier transformar-se em um ser mutante que para sobreviver, desde já, deverá extrair do seu DNA qualquer esperança de que determinados atores jurídicos primem pelo cumprimento da lei.

    Eduardo Januário Newton é Mestre em direito pela Universidade Estácio de Sá. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).

    [i]Artigo 1º, § 4º, Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça – Estando a pessoa presa acometida de grave enfermidade, ou havendo circunstância comprovadamente excepcional que a impossibilite de ser apresentada ao juiz no prazo do caput [24h], deverá ser assegurada a realização da audiência no local em que ela se encontre e, nos casos em que o deslocamento se mostre inviável, deverá ser providenciada a condução para a audiência de custódia imediatamente após restabelecida sua condição de saúde ou de apresentação.

    [ii] BALEIRO, Zeca, Lenha

    [iii]https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/preso-ex-secretario-de-saúde-do-rj-assina-documento-oficial-de-pasta-do-governo.ghtml

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/vi-um-preso-paraplegico-ser-enviado-a-prisao-em-audiencia-de-custodia/535934302

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