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19 de Abril de 2024
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    As mais recentes mutações na publicidade da audiência de custódia

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    A visibilidade no exercício do poder estatal é uma exigência própria do Estado Democrático de Direito, pois somente dessa forma é que o controle do soberano, o povo, poderá ser efetivado.

    Não é diverso o entendimento adotado pelo peninsular, e saudoso, professor Norberto Bobbio em texto específico sobre a temática em tela:

    Qualquer forma de poder oculto, ao tornar vão este direito, destrói um dos pilares em que se apoia o governo democrático. De resto, quem promove formas de poder oculto, e quem a elas adere, deseja precisamente isto: excluir suas próprias ações do controle democrático, não se submeter aos vínculos que toda constituição democrática impõe a quem detém o poder de tomar decisões que vinculem a todos os cidadãos. Pretende, eventualmente, controlar o Estado sem poder por ele controlado.”[ii]

    Ainda que um incauto possa adotar postura que ignore a importância da filosofia no direito e, assim, se encante indevidamente pela filosofia do direito, o que é repudiado por André Karam Trindade:

    “(…) apenas através da filosofia no direito é que se torna possível pensar pós-metafisicamente o Direito, superando a afirmação—baseada na diferença entre uma semântica jurídica, que trata dos objetos jurídicos no mundo, e a uma semântica filosófica, que não trata de objetos — de que noDireito não se pensa, uma vez que o Direito não se move no mesmo nível linguístico da Filosofia.”[iii]

    A partir do direito posto, no âmbito do Estado brasileiro, o exercício visível do poder configura um verdadeiro dever dos agentes públicos e, por via de consequência, um direito fundamental de todos.

    No caso privativo do poder jurisdicional, a sua manifestação pública é expressamente prevista no artigo , inciso LX e artigo 93, inciso IX, da Constituição da República. No mesmo sentido, dispõe a norma convencional subscrita pelo Brasil, a saber: artigo 8º, 3, Convenção Americana de Direitos Humanos.

    Com lastro na lógica de superação do modelo autoritário, que perdurou por 21 anos, afirma-se que os referidos dispositivos constitucionais estabelecem a publicidade dos atos processuais como a regra, sendo certo que a restrição deve ser compreendida como medida excepcional e somente pode ser estabelecida mediante a irrestrita observância de prévia disposição legal.

    Ainda sobre a necessidade de rompimento com a mentalidade autoritária, é de suma importância destacar que somente dessa maneira seria possível se afastar do já conhecido fenômeno da interpretação em retrospectiva, que recebeu as seguintes considerações por parte de Rubens Casara:

    “Por interpretação retrospectiva entende-se a insistência dos operadores jurídicos de ‘interpretar o novo de maneira a que ele não inove nada, mas ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo’. Em outras palavras, através da interpretação retiram-se as perspectivas de transformação que vieram encartadas na nova Constituição. É, antes de tudo, uma interpretação covarde, pois prima pelo medo de rupturas”[iv] (destaquei)

    Afastando-se da interpretação retrospectiva e, ainda, considerando a paranoia punitivista auferida na sociedade brasileira, a previsão constitucional que versa sobre a publicidade dos atos processuais, o que inclui a realização das audiências, permite, sem qualquer dúvida, cravar que enquanto vigente o Texto promulgado em 05 de outubro de 1988, não se mostrará possível a realização de juízos ou quaisquer outros atos jurisdicionais de natureza secreta, sendo certo que a imposição do chamado sigilo de justiça não se enquadra nessa situação de segredo absoluto, pois configura uma modalidade restrita de publicidade.

    Apresentado esse cenário, é o momento então de examinar a realidade atual observada na Central de Audiência de Custódia que foi instalada na Cadeia Pública José Frederico Marques.

    É de suma importância destacar que a transferência da Central de Audiência de Custódia até então instalada no prédio do Foro Central para uma unidade prisional representou o término da vergonhosa seletividade que persistia, qual seja, de meados de 2015 até outubro de 2017, somente os presos em flagrante na capital fluminense é que gozavam do direito previsto em normas convencionais e declarado como direito subjetivo pelo STF nos autos da MC da ADPF nº 347. Em outras palavras: era o CEP do local do suposto crime que determinava a realização, ou não, da audiência de custódia/apresentação. É claro que a inauguração das novas instalações da Central da Audiência de Custódia ensejou a realização de pomposa solenidade, que veio a ser indevidamente comemorada por diversos atores jurídicos[v].

    Afora a notória ausência de infraestrutura – a título ilustrativo, menciona-se o fato de que não existem entrevistas reservadas entre o preso e o seu defensor (público ou privado), já que o fato de os interfones não funcionarem impõe a observância de uma dinâmica típica de uma feira, ou seja, só é ouvido quem berra mais – que permitiram questionar o mencionado rejúbilo, as instituições públicas ditas autônomas deveriam publicamente apresentar escusas pelas suas longevas omissões, no que se refere à plena implementação de preceitos convencionais afetos à audiência de custódia/apresentação.

    É necessário prosseguir. A mudança física da Central de Audiência de Custódia foi pautada pelo “princípio da eficiência”. Aliás, o notório avanço desse “fundamento” jurídico se relaciona com a hegemonia do discurso neoliberal, que, pelas mais diversas formas, se pauta unicamente em permitir o máximo desenvolvimento do modo de produção capitalista. Como consequência dessa nova realidade, que, inclusive, instituiu e fomenta o Estado Pós-Democrático, se depara com um cenário de mercantilização de direitos e garantias fundamentais.

    O fato de ter sido efetivada a tantas vezes mencionada transferência da Central de Audiência de Custódia não deveria afastar a publicidade dos atos processuais; porém, não é essa a realidade. Há, portanto, uma fragilização do patrimônio cívico das pessoas presas em flagrante, no que se refere especificamente à publicidade dos atos processuais realizados na Central de Audiência de Custódia, que é evidente.

    Essa restrição, além de representar comportamento inconstitucional, desnuda uma incoerência. O Código de Processo Penal, especificamente ao disciplinar o interrogatório, vide o disposto no artigo 185, § 1º, afirma textualmente que ainda que o ato venha a ser realizado em unidade prisional deverá ser assegurada a publicidade.

    Justamente pelo preço de se cumprir o Texto Constitucional é que as audiências de custódia devem ser públicas, pois, conforme dito no início deste texto, a visibilidade do exercício do poder estatal é exigência inafastável do Estado Democrático de Direito.

    Todavia, não é isso que se verifica na agora famosa unidade prisional localizado no carioca bairro de Benfica. Se não bastasse o reduzido espaço de cada uma das 6 (seis) salas de audiência – nenhuma pessoa que não esteja envolvida com a audiência de custódia pode acompanha-la, pois o acesso popular à unidade prisional é impossibilitado.

    A restrição indevida da publicidade, que se materializa no restritíssimo acesso às audiências de custódia, sequer possui amparo no artigo 792, Código de Processo Penal:

    Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados.

    A inaplicabilidade do transcrito dispositivo se dá porque a atual proibição de acesso se pauta um dado a priori desprovido de qualquer lastro fático, qual seja, de antemão se presume que o ingresso de qualquer pessoa representaria um perigo de perturbação da ordem.

    Diante desse cenário de restrição da publicidade, não resta dúvida de que todas as audiências de custódia realizadas na Central de Audiências de Custódias localizada na Cadeia Pública José Frederico Marques são nulas.

    Por outro lado, não se pode perder de vista o fato de que uma diversa publicidade não sofre qualquer restrição e se vincula à sociedade do espetáculo, sendo certo que não traz qualquer insurgência; ao contrário, não só é incentivada, como ainda gera aplausos por parte de considerável parcela dos integrantes do concerto comunitário.

    A depender de quem foi privado de sua liberdade, mesmo que a audiência de custódia se mostre inacessível para as pessoas que não realizem o ato, há o foco exclusivo dos diversos canais midiáticos para mostrar o seu ingresso na unidade prisional e, caso sobrevenha liberdade, a sua saída da masmorra medieval.

    As considerações sobre a criminologia midiática apresentadas por Augusto Jobim do Amaral se mostram pertinentes, pois nada mais são que um novo desdobramento desse fenômeno:

    Sendo assim, o roteiro de uma ‘criminologia midiática’ dinamizadas por um autoritarismo ‘cool’ é bem conhecido por todos. A pornografia penal terá duplo e complementar cenário: para a patuleia, costumeira clientela do sistema penal, ela será ambientada por vasto cardápio de programação de alguma televisionada ‘polícia em ação’ (…)”[1]

    A notícia é um produto e a sua comercialização depende da forma como torna-lo mais atrativo, sendo certo que em uma lógica sensacionalista, nada mais apropriado do que retratar esses poucos momentos de visibilidade do preso.

    O repúdio à publicidade publicitária não pode ser compreendido como defesa do abominável instituto da censura, até mesmo porque a divulgação da prisão de alguém não é objeto de questionamento, mas sim da exposição indevida daquele que goza do estado de inocência, ainda mais quando as audiências de custódia, ao contrário do que determina as normas convencionais sobre o tema, se restringem aos casos de prisão em flagrante.

    As duas situações aqui narradas – realização das audiências de custódia que despreza a publicidade constitucional e o desenvolvimento da publicidade publicitária – não podem ser entendidas como fenômenos desassociados. Na verdade, esse cenário somente vem a demonstrar a fragilidade do Estado Democrático de Direito, que decorre de uma incompreensão da sociedade em superar a autoritária ditadura civil-militar.

    Por fim, o que mais choca disso tudo é que essa debilidade democrática é promovida ou assentida pelos mais diversos atores jurídicos. De acordo com o posicionamento de Zizek[vi], a violência é um fenômeno complexo, sendo certo que nesse panorama o aspecto simbólico é desprezado: a selvageria contra a legalidade constitucional.

    Post scriptum: a publicidade publicitária teve uma recente e impactante manifestação. Após intensa campanha midiática, renomado traficante foi preso. O evidente gozo dos policiais foi objeto de diversas fotos divulgadas pela imprensa.

    Eduardo Newton é Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Foi Defensor Púbico do estado de São Paulo (2007-2010).

    [1] AMARAL, Augusto Jobim & ROSA, Alexandre Morais. Cultura da punição. A ostentação do horror. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 82.

    [i] Mestre em direito pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).

    [ii] BOBIO, Norberto. Democracia e segredo. São Paulo: Ed. Unesp, 2015. p. 41.

    [iii] TRINDADE, André Karam. A filosofia no Direito e as condições de possibilidade do discurso jurídico.

    [iv] CASARA, Rubens R. R. Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. P. 110-111)

    [v] Vide as seguintes informações obtidas em páginas eletrônicas oficiais: http://site.dpge.rj.gov.br/noticia/detalhes/5003-Central-de-Audiencias-de-Custodiaeinaugurada-em-Benfica http://www.mprj.mp.br/pt/home/-/detalhe-noticia/visualizar/48420http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/49424

    [vi] ZIZEK, Slavoj. Violência. Seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.

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