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25 de Abril de 2024
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    O caso da Liga dos Comunistas na UFOP e a defesa do Estado Democrático de Direito

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Artigo de coautoria do advogado Paulo Iotti e dos professores Alexandre Bahia, Diogo Bacha e Silva e Bruno Camilloto.

    Em tempos difíceis para a Democracia no Brasil contemporâneo é preciso ter coragem para debater publicamente temas pertinentes às liberdades fundamentais dos cidadãos. Nossas instituições republicanas têm ultrapassado (há muito, diga de passagem) os limites do razoável quando o assunto é a tentativa de criminalização de todo e qualquer gestor público.

    É necessário se disputar publicamente os sentidos normativos possíveis para o exercício da força (violência) institucionalizada pelo Estado de forma que ainda se possa preservar aquilo que o constituinte originário previu, em 1988, como Estado Democrático de Direito. Caso contrário, a ruptura institucional será inevitável e os retrocessos não serão somente àqueles referentes aos direitos sociais, mas também aos direitos fundamentais individuais e à própria estrutura normativa da democracia.

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    Devemos, ainda, salientar que, em tempos de retrocessos, é comum a utilização do próprio Direito como mecanismo de repressão às minorias e aos diferentes. Repressão que assume as mais diversas formas. Portanto, e sabendo que a democracia é o lugar de disputa política pelos sentidos normativos de e da Constituição, as liberdades individuais (mormente as liberdades de expressão e de opinião), são o núcleo importante para o exercício da autonomia pública e, pois, de construção de uma sociedade de membros livres e iguais.

    Partindo-se da ideia de cooriginalidade das autonomias pública e privada (HABERMAS, 1998), uma comunidade que resolve regular sua convivência em comum através do medium do direito pressupõe que os direitos individuais (direitos humanos) sejam concebidos como cooriginários aos direitos políticos (soberania popular), de tal forma que a ruptura com qualquer lado dessa tensão põe abaixo todo o edifício do Estado de Direito.

    Em 2013 a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) foi ré na ação popular da 5ª Vara da Seção Judiciária do Maranhã. A ação foi proposta contra a UFOP e seu ex-reitor Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza. O objeto daquela ação era a anulação do ato administrativo que autorizou o funcionamento do projeto de extensão denominado Centro de Estudos e Difusão do Comunismo, coordenado à época pelo Prof. André Mayer do Departamento de Serviço Social.

    A decisão judicial liminar foi deferida para sobrestar “a execução de toda e qualquer decisão ou ato administrativo tendente a dar seguimento às atividades do Centro de Difusão do Comunismo, como – e não exclusivamente – a contratação de professores, fornecimento de bolsas de estudo, disponibilização dependências, compra de materiais e insumos e divulgação institucional dos objetivos e atividades do Programa”.

    No mérito, a ação foi julgada procedente, “para anular o ato administrativo editado pelos Réus com o objetivo de criar o Centro de Difusão do Comunismo, confirmando, assim, o provimento lançado em sede de antecipação dos efeitos da tutela”.

    Tal como o capitalismo, o comunismo é uma ideia e, portanto, está carreado de valores. Daí que discordamos frontalmente da decisão judicial acima, por violadora do princípio constitucional da autonomia universitária e criminalizadora de ideologia distinta da aprovada pelo Estado-juiz. O processo pende de decisão de recurso junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª região.

    Referida decisão é criticável do ponto de vista hermenêutico-constitucional, já que a sentença realiza uma verdadeira acrobacia hermenêutica para argumentar no sentido de que a realização de atividades de ensino, pesquisa e extensão na temática do comunismo estaria privilegiando partidos políticos específicos em atuação no cenário eleitoral.

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    Ora, a decisão agride e afronta a autonomia universitária e a liberdade acadêmica, ambas, protegidas pela Constituição – arts. 205, 206, II e III, 207 e 213, § 2o, v.g. – isso para não falar do regime geral da liberdade de pensamento/expressão e ciência – art. 5o, IV, IX e XVII.A decisão “pressupõe” – já que o autor não demonstra em momento algum do processo e a sentença se funda apenas nessa suposição – que o Projeto de Extensão estaria beneficiando um/alguns partidos políticos e que isso implicaria em violação de princípios da Administração Pública.

    Ora, a uma, a Universidade possui a garantia constitucional de liberdade de pesquisa e de atividades de extensão; a duas, será que se a UFOP tiver um Grupo de Pesquisa e/ou de Extensão defendendo o liberalismo político se poderia argumentar que o mesmo beneficiaria partidos que comungam com tal orientação? Tendo Grupo de Pesquisa/Extensão sobre meio ambiente estaria promovendo partidos ambientalistas?

    O que se tem, portanto, é uma ilícita (e indefensável) presunção de má-fé da Instituição de Ensino Superior. Viola-se o célebre adágio processual segundo o qual “alegar sem provar é o mesmo que não alegar”. Regras basilares de ônus da prova foram violadas, portanto. Ao passo que a boa-fé se presume, ao passo que a má-fé deve ser provada, segundo célebre princípio geral de Direito, também ignorado por referida decisão judicial.

    Ademais, verifica-se uma restrição injustificável dos direitos fundamentais à liberdade científica e à liberdade de cátedra. Ora, como se pode seriamente dizer que não se poderia promover o estudo de uma ideologia política em uma Universidade, ambiente por excelência de estudos sobre os mais variados temas?

    E como se pode simplesmente presumir a alegada e suposta “intenção” de beneficiar determinados partidos políticos sem robustas provas que isto subsidiem? É claríssimo o efeito discriminatório, portanto, inconstitucional, de referida decisão em qualquer ideologia de esquerda – ou seja, que defenda que o Estado deve intervir no domínio econômico para garantir a igualdade real dos cidadãos.

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    Vale lembrar que em julho de 2017 o Ministério Público Federal recebeu representação para instaurar Ação Civil Pública contra Grupo de Pesquisa da UFMG sob alegações similares ao que motivou a Ação Popular contra a UFOP. A resposta da Procuradoria da República, felizmente, fez valer a Constituição de 1988:

    “Note-se ainda que a vivência educacional democrática supõe a ampla discussão política, nas mais variadas compreensões político-ideológicas, sem o que não se alcança a formação integral do cidadão, missão universitária que, portanto, não pode ser apartada da autonomia constitucionalmente conferida às Universidades (…). É central a consideração de que o pluralismo político constitui fundamento do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo , inciso V, da Constituição da República” (grifos nossos)[1].

    Além de citar dispositivos constitucionais que acima já referidos, a Procuradoria também lembra que a regra da liberdade de ensino/ciência está presente na Declaração Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José), art. 13.1., além de citar doutrinadores consagrados, para, então, concluir:

    “Nada há, portanto, a ser apurado, uma vez que a notícia de fato em referência não demonstrou, minimamente, qualquer irregularidade quanto ao funcionamento do “Grupo de Estudos e Pesquisas Marx, Trabalho e Educação”. Ao contrário, evidencia-se, em geral, que o pluralismo de ideias previsto no projeto constitucional de 1987-988 pressupõe ampla e livre discussão no ambiente universitário, para o que contribuem, inquestionavelmente, as atividades de grupos de estudo universitários. Ausente irregularidade a ser apurada, indefiro a instauração de inquérito civil” (grifos nossos)[2].

    Dito isso[3], vamos concentrar nossa análise será com relação a fatos posteriores que surgiram em decorrência da decisão proferida naquela demanda.

    Em 30 de outubro de 2017 os professores André Mayer e Marcone Souza foram intimados pela Política Federal para prestar esclarecimentos sobre “crime de desobediência”. Segundo a intimação, os professores precisam prestar esclarecimentos sobre os narrados na requisição do inquérito policial da seguinte forma:

    “A notícia informa que o referido professor André Luiz estaria utilizando de recursos públicos da UFOP para divulgação e realização de eventos de cunho comunista, contrariando a ordem judicial proferida pelo juiz federal José Carlos da Vale Madeira, nos autos do processo n. 35410-58.2013.4.01.3700 da 1ª Instância, Seção Judiciária do Maranhã, 5ª Vara.

    Ainda segundo a representação, o professor André, a despeito da ordem descrita acima, continua promovendo, integrando, divulgado e convocando pessoas para o projeto Liga dos Comunistas nas dependências e com recursos da Universidade Federal de Ouro Preto. Não se sabe, porém, se suas ações comprovam o descumprimento da ordem judicial referida, anote-se, dirigida ao então reitor Marcone Jamilson Freitas de Souza e limitada à anulação do ato administrativo que criou o Centro de Difusão do Comunismo, o que carece ser apurado”.

    Veja-se, o Ministério Público Federal (MPF) recebe uma denúncia de que duas pessoas estão descumprindo uma determinada ordem judicial. A decisão judicial, ainda pendente de recurso em segunda instância, anulou o ato administrativo que autoriza o funcionamento do projeto de extensão. Sendo assim, a única forma do projeto retornar ao funcionamento é através de um novo ato administrativo emanado pela Universidade Federal de Ouro Preto.

    A requisição de instauração do inquérito policial, por si só, demonstra que a notícia ofertada ao MPF é vazia de conteúdo, uma vez que não é capaz de indicar em qual momento a ordem judicial foi descumprida e quem a descumpriu.

    Como transcrito acima, tanto a decisão liminar quanto a decisão de mérito da ação popular determinaram a anulação do ato administrativo que autorizava o funcionamento do projeto de extensão Centro de Difusão do Comunismo.

    Na decisão de mérito, o juiz de primeira instância relatou:“Comprovação do cumprimento da decisão proferida em sede de antecipação dos efeitos da tutela (fls. 101/116v).”

    A sentença relata ainda: “… e por não ter havido qualquer modificação no quadro fático sobre o qual o exame do pedido de antecipação dos efeitos da tutela se realizara, tenho por hígidos os argumentos apresentados por ocasião de sua concessão…”

    Conforme se denota da sentença, a medida de antecipação de tutela foi cumprida e, com a superveniente sentença, o ato administrativo foi anulado. Logo, não há nos autos da ação popular qualquer indício, mínimo que seja, de que a ordem legal foi desobedecida. Ao contrário, a própria decisão de mérito assevera que as partes cumpriram a decisão judicial.

    Por falar em parte, tem-se que a ação popular que fundamenta o inquérito policial foi proposta contra a Universidade Federal de Ouro Preto e o seu ex-reitor Marcone Jamilson Freitas Souza. Na ação o nome do Prof. André Mayer é citado como coordenador do projeto de extensão cuja ação pretende extinguir. Contudo, o referido Professor-coordenador não é parte não se submetendo, assim, aos efeitos daquela decisão.

    Desse quadro fático-jurídico conclui-se que:

    a) o Prof. André Mayer não pode ser autor de “crime de desobediência”, uma vez que não descumpriu nenhuma ordem legal oriunda da ação popular n. n. 35410-58.2013.4.01.3700. As ordens legais proferidas nos autos daquela ação foram dirigidas à UFOP e ao seu ex-reitor Marcone Souza.

    b) o objeto da ação popular é a anulação do ato administrativo que autorizou o projeto de extensão Centro de Estudos e Difusão do Comunismo, logo, considerando que esse ato administrativo é proferido pelo Pró-Reitor de Extensão, com vínculo direto ao Reitor, o “réu” Prof. André Mayer não pode ser responsabilizado, uma vez que é parte completamente ilegítima para desfazer o ato administrativo.

    Tem-se, portanto, que a notícia ofertada ao MPF que gerou a instauração de inquérito policial padece de qualquer relação com os fatos devidamente comprovados pelos autos da ação popular, uma vez que indica uma pessoa ilegítima para responder pelo crime de desobediência.

    Somente por isso, já seria possível que o MPF determinasse o arquivamento da notícia-crime porque ela somente deve (pode) ser admitida quando fundada elementos mínimos que apontem a materialidade e autoria de fato criminoso, violando, portanto, o artigo 506 do Código de Processo Civil que dispões sobre os limites subjetivos da sentença e da coisa julgada.[4]

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    Segundo o art. 330 do Código Penal, o crime de desobediência consiste em “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”. O crime só pode ser praticado mediante a existência de dolo, ou seja, é necessário o réu tenha praticado ato intencional de desobedecer uma ordem legal. Em questão, portanto, a vontade livre e consciente do sujeito em não cumprir ordem legal.

    No caso, a instauração do inquérito visa apurar os fatos sobre o descumprimento da ordem emanada na ação n. 35410-58.2013.4.01.3700, que determinou a suspensão das atividades do Centro de Estudos e Difusão do Comunismo. Entretanto, no relatório da sentença de mérito, o próprio juiz da causa atesta a suspensão das atividades do referido projeto de extensão quando do deferimento da medida de antecipação de tutela.

    Logo, para configuração do crime de desobediência seria necessário haver, minimamente, configuração de prática de atos referentes ao desenvolvimento das atividades do projeto de extensão denominado “Centro de Estudos e Difusão do Comunismo”.

    Segundo a requisição de instauração do inquérito policial: “Levando em conta a necessidade da realização de diligências para demonstrar a materialidade e a autoria delitivas, determino o encaminhamento destes autos à Polícia Federal (Delegacia de Política Federal com atribuição sobre o Município de Ouro Preto).”

    A decisão do MPF já demonstra que a notícia crime não é factível, uma vez que não traz os mínimos elementos de materialidade e autoria para o prosseguimento de qualquer investigação sobre o crime de desobediência. Ora, se o descumprimento da decisão implica na realização de atividades do projeto; especialmente aquelas que envolvam a alocação de recursos públicos, como, por exemplo, o pagamento de bolsas; todas essas atividades são praticadas por meio de atos administrativos conforme a regência do princípio da legalidade pertinente à administração pública.

    Logo, quem afirma que há atos de desobediência sendo praticados, deve, minimamente, indicar quais atos e quem os praticou, sob pena da notícia de fato criminoso configurar-se como vazia e apócrifa, além da possível prática do delito de denunciação caluniosa, caso identificado o denunciante.Sendo apócrifa, como deixa transparecer a decisão do MPF, imperioso seria que o MPF estabelecesse investigações preliminares para saber configurar, minimamente, a materialidade e a autoria nos exatos termos já decididos pelo STF no RHC 117988.[5]

    Entretanto, se a notícia crime está fundada única e exclusivamente na ação popular n. 35410-58.2013.4.01.3700, bastaria que o MPF verificasse o conteúdo da decisão de mérito ali proferida para rejeitar a notícia por duas razões absurdamente simples:

    I) o Prof. André Mayer não foi réu naquela ação não podendo, portanto, ser autor de fato que configure crime de desobediência referente àquelas ordens legais (decisão liminar e sentença de mérito) e

    II) a sentença de mérito constatou que a decisão que antecipou a tutela foi cumprida, ou seja, o ato administrativo que autorizou o desenvolvimento das atividades do Centro de Estudos e Difusão do Comunismo foi anulado e o projeto foi suspenso em sua integralidade, logo, para que a notícia tivesse qualquer plausibilidade, seria necessário que viesse instruída de novo ato administrativo que desafiasse a sentença proferida nos autos.

    Esse não é o caso, simplesmente porque a própria decisão do MPF deixa claro que não há indícios suficiente para configuração da materialidade do crime de desobediência, ou seja, a notícia crime não indica qual ato foi praticado que possa configurar desobediência nos termos da legislação penal.

    Ademais, ainda que instaurada a investigação, ante a completa ausência de indícios mínimos de autoria e materialidade delitivas, melhor sorte não resiste ao exame da justa causa para a persecução penal. A justa causa é requisito de admissibilidade da persecução criminal, conforme o art. 395, III do CPP.

    É que, como se sabe, a abertura de investigação criminal, por si só, causa um sério abalo do status dignitatis. O mero fato do indivíduo ter o status de réu ou investigado ocasiona-lhe uma pena.

    Como reconhece, por exemplo, o Tribunal Constitucional Espanhol na STC. 166/1995, há uma dimensão extraprocessual da presunção de inocência como valor constitucional inerente à presunção de inocência em que a persecução criminal deve ter lastros mínimos, sob pena de afligir de per si uma pena ao jurisdicionado, conhecida como pena del banquillo.

    A justa causa, assim, configura um requisito processual-penal básico como garantia de efetivação da dimensão extraprocessual do princípio constitucional da presunção de inocência.

    Como condição da ação penal, a justa causa apenas foi prevista textualmente com a reforma processual penal da Lei 11.719/2008. Entrementes, o art. 648, I do CPP já previa a justa causa como hipótese de admissibilidade para a impetração de Habeas Corpus.

    Mesmo antes da reforma processual, o STF considerava a possibilidade de trancamento excepcional de inquérito policial ou investigação criminal quando não houvesse a justa causa presente (STF, HC 71466/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 16/08/1994).

    Em verdade, a ausência de justa causa para a instauração de investigação criminal e o consequente arquivamento excepcional do inquérito policial eram entendidos na hipótese de atipicidade da conduta do paciente, ou seja, o fato de que a conduta descrita não corresponderia ao tipo penal (STJ, 5ª Turma, RHC 19420/RO, rel. Min. Gilson Dipp, j. 20/06/2006).

    A dogmática processual-penal, portanto, caracteriza a justa causa com “a existência de uma causa jurídica e fática que legitime e justifique a acusação (e a própria intervenção penal)”[6]. Vale dizer, é o sopesamento entre a existência de lastros probatórios mínimos no caso concreto e os custos que representam a abertura de uma persecução criminal, incluindo a pena processual ou pena del banquillo.

    A justa causa, num sentido técnico-processual, estaria ligada ao interesse de agir da pretensão punitiva, à utilidade da persecução criminal[7].Nesta medida, a justa causa não é utilizada apenas como requisito processual, tem uma dimensão jurídica mais ampla e extensa de que possibilitar a rejeição da ação ausência de pressupostos.

    Podemos dizer que a justa causa é uma garantia do próprio Estado Democrático de Direito de que ninguém se verá diante da pretensão punitiva do Estado se não houver provas de uma conduta, em tese, considerada delituosa. É, na verdade, uma baliza mínima para que o direito penal não seja instrumento de controle, dominação ou vingança sobre os cidadãos – lawfare[8].

    No caso em questão, a abertura da investigação criminal foi realizada sem qualquer prova de que o Prof. André Mayer desobedeceu à ordem legal do juiz de primeira instância. Aliás, o mesmo nem mesmo participou da demanda originária e, portanto, a ordem foi emanada para os réus daquela oportunidade, tanto a UFOP quanto o ex-reitor Marcone Jamilson, razão pela qual o mesmo sequer teria como desobedecer à ordem do juiz, uma vez que não é a autoridade responsável pelo desfazimento do ato administrativo de criação Centro de Estudos e Difusão do Comunismo – e, portanto, também não é autoridade competente para a produção de novo ato criador.

    É evidente que, por essa razão, não teria como realizar uma conduta dolosa consistente em desobedecer, livre e espontaneamente, a ordem dada pela autoridade judiciária. Deste modo, e seguindo a jurisprudência do STJ, a investigação em questão constitui em evidente constrangimento ilegal, apta a ser trancada pela via da garantia do habeas corpus[9].

    No Estado de Direito Constitucional o Estado não pode agir na persecução criminal de forma leviana e irresponsável. A persecução criminal atinge, diretamente, o status de cidadania e a liberdade dos indivíduos. Como fundamento legal e legítimo das iniciativas estatais da investigação é necessário a mínima existência de elementos indiciários que apontem para a autoria, materialidade e justa causa da ação estatal.

    Ausentes esses requisitos, tem-se que a ação estatal configura constrangimento ilegal do cidadão que acaba se submetendo à uma investigação criminal injusta, ilegal e inconstitucional. Ao velho argumento de combate o comunismo, as instituições responsáveis pelo uso da força em nossa estrutura normativa praticam verdadeira perseguição política contra os cidadãos Marcone Souza e André Mayer.

    Paulo Roberto Iotti Vecchiatti éMestre e Doutor em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru e Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP. Escreve este artigo junto dos professores Alexandre Bahia, Diogo Bacha e Silva e Bruno Camilloto.

    Referências

    LISBÔA, Natália Souza. 50 anos após o golpe – ainda temos medo da ameaça comunista? Um estudo de caso do Centro de Difusão do Comunismo da Universidade Federal de Ouro Preto. In: Samantha Ribeiro Meyer Pflug; Rogerio Dultra dos Santos. (Org.). Memória, verdade e justiça de transição. 1ed.Florianópolis: CONPEDI, 2014, v. , p. 52-69.

    [1] Disponível em: .

    [2] Disponível em: .

    [3] Sobre as possibilidades de compreensão daquela decisão judicial ver o texto de autoria da Dra. Natália Lisbôa “50 anos após o golpe ainda temos medo da ameaça comunista: um estudo de caso do centro de difusão do comunismo da Universidade Federal de Ouro Preto. (disponível em: https://www.academia.edu/35081165/50_ANOS_AP%C3%93S_O_GOLPE_AINDA_TEMOS_MEDO_DA_AMEA%C3%87A_COMUNISTA_UM_ESTUDO_DE_CASO_DO_CENTRO_DE_DIFUS%C3%83O_DO_COMUNISMO_DA_UNIVERSIDADE_FEDERAL_DE_OURO_PRETO).

    [4] AGRAVO REGIMENTAL. NOTÍCIA CRIME. ARQUIVAMENTO.

    (AgRg na Sd 293/TO, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 07/05/2012, DJe. 22/05/2012).

    [5] EMENTA: “HABEAS CORPUS” – RECURSO ORDINÁRIO – MOTIVAÇÃO “PER RELATIONEM” – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL – DELAÇÃO ANÔNIMA – ADMISSIBILIDADE – CONFIGURAÇÃO, NO CASO, DOS REQUISITOS LEGITIMADORES DE SEU ACOLHIMENTO – DOUTRINA – PRECEDENTES – PRETENDIDA DISCUSSÃO EM TORNO DA ALEGADA INSUFICIÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS – IMPOSSIBILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO “HABEAS CORPUS” – PRECEDENTES – RECURSO ORDINÁRIO IMPROVIDO. PERSECUÇÃO PENAL E DELAÇÃO ANÔNIMA

    – As autoridades públicas não podem iniciar qualquer medida de persecução (penal ou disciplinar), apoiando-se, unicamente, para tal fim, em peças apócrifas ou em escritos anônimos. É por essa razão que o escrito anônimo não autoriza, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração de “persecutio criminis”.

    – Nada impede que o Poder Público, provocado por delação anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas.

    – Diligências prévias, promovidas por agentes policiais, reveladoras da preocupação da Polícia Judiciária em observar, com cautela e discrição, notadamente em matéria de produção probatória, as diretrizes jurisprudenciais estabelecidas, em tema de delação anônima, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DA MOTIVAÇÃO “PER RELATIONEM”

    – Reveste-se de plena legitimidade jurídico-constitucional a utilização, pelo Poder Judiciário, da técnica da motivação “per relationem”, que se mostra compatível com o que dispõe o art. 93, IX, da Constituição da República. A remissão feita pelo magistrado – referindo-se, expressamente, aos fundamentos (de fato e/ou de direito) que deram suporte a anterior decisão (ou, então, a pareceres do Ministério Público, ou, ainda, a informações prestadas por órgão apontado como coator)– constitui meio apto a promover a formal incorporação, ao ato decisório, da motivação a que o juiz se reportou como razão de decidir. Precedentes. INADMISSIBILIDADE DE EXAME DE MATÉRIA FÁTICO- -PROBATÓRIA EM SEDE DE “HABEAS CORPUS”

    – O processo de “habeas corpus”, que tem caráter essencialmente documental, não se mostra juridicamente adequado quando utilizado com o objetivo (a) de promover a análise da prova penal, (b) de efetuar o reexame do conjunto probatório regularmente produzido, (c) de provocar a reapreciação da matéria de fato e (d) de proceder à revalorização dos elementos instrutórios coligidos no processo penal de conhecimento. Precedentes.

    (RHC 117988, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Relator (a) p/ Acórdão: Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 16/12/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-037 DIVULG 25-02-2015 PUBLIC 26-02-2015)

    [6] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade Constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 363.

    [7] OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de Processo Penal. 10ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 103.

    [8] Sobre o conceito de lawfare, cf. MARTINS, Cristiano Zanin. Lawfare representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política. Justificando, 17 de novembro de 2016. Disponível em: ; KEARNEY, Michael. Lawfare, Legitimacy and Resistance: the weak and the law. The Palestine Yearbook of International Law, Vol. XVI, 2010, p. 79-130; FAY, Derick. Neoliberal conservation and the potential for lawfare: New legal entities and the political ecology of litigation at Dwesa. Geoforum, Vol. 44, p. 170-181, 2013; WERNER, Wouter G. The curious career of lawfare. Case Western Reserve Journal of International Law, Vol. 43, p. 61-72, Spring/Fall 2010. Especificamente sobre a intromissão do Judiciário na liberdade de cátedra vale a pena conferir: CYNARA Monteiro Mariano; LIMA, Martonio Mont’alverne Barreto Crítica à expansão do controle judicial sobre os atos administrativos e a nova ameaça à liberdade de cátedra. In: GUIMARÃES, Juarez (et al.) (orgs.). Risco e futuro da democracia brasileira: direito e política no Brasil contemporâneo. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2016, p. 329-346.

    [9] “O trancamento da ação penal por ausência de justa causa é uma medida excepcional, somente cabível em situações, nas quais, de plano, seja perceptível o constrangimento ilegal. Reputa-se inepta a denúncia que não trata do elemento volitivo necessário à configuração do delito de desobediência, qual seja, o dolo, limitando-se à narrativa de uma conduta eminente culposa, decorrente de obstáculos burocráticos, e da negligência de funcionários subordinados. Ordem concedida” (STJ – 5ª T. – HC 82.589 – rel. Laurita Vaz – j. 09.10.2007 – DJU 19.11.2007).

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