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23 de Abril de 2024
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    Apontamentos críticos sobre a relativização de princípios processuais fundamentais

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    “De um certo ponto adiante não há mais retorno.

    Esse é o ponto que deve ser alcançado.”

    – Franz Kafka

    Não é possível pensar a reforma processual penal sem considerar a sua base principiológica. Desde esse ponto de vista, superar a estrutura inquisitória só será possível a partir do conhecimento e compreensão dos princípios processuais fundamentais, bem como do efetivo respeito às suas disposições.

    Como se sabe, na base de qualquer estrutura processual penal se encontram os princípios fundantes, sendo eles o princípio inquisitivo, regente do sistema inquisitório, e o princípio dispositivo, regente do sistema acusatório. Por elementar, ambos partem de bases epistemológicas completamente distintas, as quais, pelo limite de espaço do presente ensaio, não será possível aprofundar. Contudo, é importante considerar que estes princípios irão iluminar e direcionar tudo o que acontecerá no processo, e, por esta razão, são demais importantes.[1]

    A partir da leitura sistemática da Constituição da República (de 1988), pode-se verificar que foi acolhido no Brasil o sistema acusatório. Assim, desde a matriz constitucional, o princípio fundante da estrutura processual penal é o princípio dispositivo, do qual decorrem diversos direitos e garantias processuais fundamentais.

    Não obstante, a realidade processual penal demonstra estar longe, muito longe disso. Tal situação se dá em virtude de que se permite a prevalência de institutos e disposições do Código de Processo Penal (de 1941, pasmem!), que é demasiadamente inquisitorial, em detrimento dos postulados constitucionais, o que é um absurdo. Infelizmente se trata daquela complexa relação entre ser e dever ser, ou seja, entre a realidade e o que se espera dela.

    A atual conjuntura vivida no Brasil, sobretudo no que se refere à utilização do processo penal como mecanismo de vingança, de controle social, de gerenciamento de riscos[2] e de manutenção do poder, demonstra que vivemos tempos de insegurança jurídica e, por esta razão, precisamos estar de sobreaviso.

    Tem-se assistido a uma crescente e preocupante onda de relativização e flexibilização de princípios processuais fundamentais e de afastamento dos limites impostos pela Constituição da República. Tal ocorrência evidencia a opção pelo autoritarismo e pela malfadada estrutura inquisitória, demonstrando um total desrespeito aos preceitos constitucionais. Assim, desde a práxis processual penal, percebe-se que o princípio fundante é o inquisitivo, o que tem sido constantemente denunciado por parcela da doutrina comprometida com a democracia processual.

    Não raras vezes, a dita flexibilização (não seria maldita?) vem justificada pela ideia de eficiência (que pode ser sinônimo de exclusão[3]) que, em uma estrutura inquisitória, nada mais é do que a supressão ou redução desses mesmos direitos e garantias constitucionais.

    Aqui é preciso lembrar do princípio reformador “Auflockerung” do regime nazista, o qual permitiu a flexibiliação das formas do processo penal, reduzindo ao mínimo indispensável os freios, as preclusões e os obstáculos da atividade jurisdicional, com o fim de se decobrir a “verdade” (qual?) e alcançar a justiça material (mesmo que essa ela consistisse em exterminar pessoas).[4]

    Como se sabe, a Constituição, além de ser o elo que une a política e o Direito, é um instrumento de proteção contra as maiorias (ocasionais ou não), e seus mecanismos colocados à disposição de todo e qualquer cidadão devem servir para evitar que os poderes públicos e seus agentes disponham dela (Constituição) como bem queiram.[5]

    Canotilho observa que os direitos fundamentais possuem a função de direitos de defesa dos cidadãos, e têm uma dupla perspectiva: primeiramente num plano jurídico-objetivo, estabelecem normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo as ingerências deles na esfera jurídica individual; segundo, num plano jurídico-subjetivo, importam o poder de exercer positivamente os direitos fundamentais (liberdade positiva), bem como de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte deles (liberdade negativa).[6]

    Ademais, é preciso lembrar que a Magna Carta prevê princípios que visam instituir direta e imediatamente garantias aos cidadãos, sendo-lhes atribuída uma densidade de autêntica norma jurídica e uma força determinante que vinculam o legislador[7] e o intérprete na sua aplicação.

    Os princípios processuais estão, na sua maioria, assegurados no artigo da Constituição. São disposições previstas no rol dos direitos e garantias fundamentais, e, portanto, não devem ser violadas, relativizadas ou flexibilizadas. São direitos positivados como normas principiológicas de categoria prevalente, visto que são intangíveis e autoaplicáveis[8], logo impassíveis de deliberação.[9]

    São normas de aplicabilidade imediata[10], vez que dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua executoriedade, e de eficácia plena, pois incidem diretamente sobre os interesses a que o constituinte pretendeu dar expressão normativa. A condição geral para essa aplicabilidade é somente a existência do aparato jurisdicional, o que significa que se aplicam apenas pelo fato de serem normas jurídicas, que pressupõem a existência do Estado e de seus órgãos.[11]

    Por elementar, para além do critério formal, as garantias fundamentais devem ter materialmente eficácia plena e aplicabilidade imediata, sempre que algum cidadão estiver sofrendo (ou na iminência de sofrer) alguma medida que venha a afetar o seu status dignitatis. Assim, é fundamental a tutela destas garantias, visando sua completa concretização, pois plenamente factível.[12]

    Como se pode notar, os princípios processuais fundamentais (v.g. devido processo legal, contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, proibição de provas ilícitas, etc.), para além de garantir direitos aos cidadãos, funcionam como limitadores da intervenção do Estado na esfera individual, ou seja, são mecanismos de proteção contra o arbítrio estatal. Desde esse ponto de vista, pode-se afirmar que o processo penal nada mais é do que direito constitucional aplicado.[13]

    Não bastasse isso, a utilização desenfreada de institutos processuais que, desde a matriz constitucional, deveriam servir como medidas excepcionais acabam servindo como uma espécie de regra padrão, demonstrando o total desrespeito aos preceitos constitucionais, bem como o descontrole do Judiciário brasileiro na prestação jurisdicional.

    São exemplos os arbitrários e usuais empregos de medidas cautelares (reais e pessoais), conduções coercitivas, interceptações telefônicas, delações premiadas, prisões para forçar delações e confissões (não seria uma espécie de tortura?), quebras de sigilos bancários e fiscais, entre muitos outros. Ou seja, busca-se abreviar, simplificar, reduzir e remover as formas processuais penais em busca de uma rápida resposta penal.[14]

    Estas práticas, aliadas a chegada massiva de novos diplomas legais (legislações especiais) comandados pela urgência, pela eficiência, etc. fazem surgir deformações na estrutura processual penal e, consequentemente, acarretam um completo estado de suspensão do Direito pelo próprio Direito[15], em uma evidente deformação da lógica.

    No atual cenário de constante e crescente relativização de princípios processuais fundamentais, crescem as arbitrariedades, multiplicam-se as ilegalidades, aumenta-se a insegurança jurídica. Esquece-se que o processo penal, embora deva servir como instrumento a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais[16], acarreta diversas consequências negativas ao acusado, sendo elas de caráter social, jurídico, psíquico, etc., quando não ocasiona algo pior: a sua morte. Diria Jesus: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!”[17]

    É preciso lembrar que o processo penal possui um conjunto de regras que representa o nível de evolução democrática e civilizátória, razão pela qual deve ser interpretado a partir da Constituição, como um instrumento de efetivação das garantias constitucionais dos cidadãos, e não como um instrumento a serviço do poder punitivo do Estado.

    Desde esse ponto de vista, pode-se concluir que os direitos e as garantias fundamentais, uma vez conquistados, não podem ser supridos, violados, relativizados ou flexibilizados. Logo, processo penal sem respeito aos direitos e garantias fundamentais não deve ser considerado Democrático.

    “É necessário, a cada dia mais, recuperar o dom de surpreender-se. É necessário, a cada manhã, assistir, com a mais profunda emoção, ao nascer do sol e, a cada tarde, ao seu poente. É necessário sentirem-se, a cada noite, aniquilados ante a infinita beleza do céu estrelado. É necessário permanecer atônito ao perfume de um jasmim ou ao canto de um rouxinol. É necessário cair de joelhos frente a cada manifestação desse indecifrável prodígio, que é a vida.”

    – Francesco Carnelutti

    Camilin Marcie de Poli é Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Graduada em Direito. Graduada em História. Advogada, Professora e Escritora. Autora da obra “Sistemas Processuais Penais” e de diversos artigos na área jurídica.

    REFERÊNCIAS

    BÍBLIA SAGRADA. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 11. ed. trad. CNBB. São Paulo: Canção Nova, 2011.

    CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.

    _____. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002.

    CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. 1. ed. Campinas: Russel, 2008.

    COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In:

    WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 139-147.

    DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. 1. ed. São Paulo: Expressão popular, 2007.

    GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

    HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: ESMP, 1993, p. 47.

    LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014.

    MAIA NETO, Cândido Furtado. Respeito as cláusulas pétreas e as garantias constitucionais-judiciais no processo penal. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 867, a. 97, p. 482-503.

    NEGRI, Daniele. Agli albori di un paradigma dell’Italia repubblicana: il processo penale come “diritto costitucionale applicato”. In: NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michelle. Diritti individuali e processo penale nell’Italia repubblicana. Milano: Giuffrè, 2010.

    POLI, Camilin Marcie de. Sistemas processuais penais. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

    SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

    STRECK, Lenio Luiz. Decisionismo e discricionariedade judicial em tempos pós-positivistas: o solipsismo hermenêutico e os obstáculos à concretização da Constituição no Brasil. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coords). O direito e o futuro – o futuro do direito. Coimbra: Almedina, 2008.

    [1] Sobre o tema ver: POLI, Camilin Marcie de. Sistemas processuais penais. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

    [2] Sobre o tema ver: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco e processo penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2015.

    [3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do processo e golpe de cena: um problema às reformas processuais. In: WUNDERLICH, Alexandre (Org.). Escritos de direito e processo penal em homenagem ao Professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 139-147, p. 145.

    [4] NEGRI, Daniele. Agli albori di un paradigma dell’Italia repubblicana: il processo penale come “diritto costitucionale applicato”. In: NEGRI, Daniele; PIFFERI, Michelle. Diritti individuali e processo penale nell’Italia repubblicana. Milano: Giuffrè, 2010, p. 26.

    [5] STRECK, Lenio Luiz. Decisionismo e discricionariedade judicial em tempos pós-positivistas: o solipsismo hermenêutico e os obstáculos à concretização da Constituição no Brasil. In: NUNES, António José Avelãs; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Coords). O direito e o futuro – o futuro do direito. Coimbra: Almedina, 2008, p. 100-101.

    [6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 551.

    [7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 1131.

    [8] MAIA NETO, Cândido Furtado. Respeito as cláusulas pétreas e as garantias constitucionais-judiciais no processo penal. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 867, a. 97, p. 482-503, 2008, p. 484.

    [9] O artigo 60, § 4º, IV da Constituição da República, dispõe que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais”, uma vez que constituem cláusula pétrea.

    [10] A própria Constituição prevê, em seu artigo , § 1º, que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

    [11] Como observa SILVA, as normas constitucionais possuem três formas de eficácia: eficácia plena (aquela que produz efeitos imediatos, ou seja, são autoaplicáveis); eficácia contida (aquela que produz efeitos imediatos, porém permite que outra norma restrinja os seus efeitos); eficácia limitada (aquela que não produz efeitos imediatos, uma vez que depende de outra norma regulamentadora para produzir efeitos). SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

    [12] Sobre os critérios formal, material e da factibilidade ver: DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. 1. ed. São Paulo: Expressão popular, 2007.

    [13] HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: ESMP, 1993, p. 70.

    [14] Ibidem, p. 47.

    [15] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Risco… Op. cit., p. 84-86.

    [16] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 56.

    [17] BÍBLIA SAGRADA. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. 11. ed. trad. CNBB. São Paulo: Canção Nova, 2011, p. 1306.

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