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19 de Abril de 2024
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    A investigação pelo Ministério Público é uma questão permeada de hipocrisia e perigos

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    O imbróglio envolvendo os poderes de investigação do Ministério Público parecia ter se tornado uma tollitur quaestio com a decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 593.727, mas na verdade a questão continua a suscitar sérias discussões.

    Como já foi dito pelo eminente professor Guilherme Nucci[1], o primeiro grande problema é o maniqueísmo:

    Sabemos que não é bem assim. Mas penso que não é esse que deveria ser o cerne da discussão. Creio que a pergunta que realmente deveria ser feita não é tanto se “o Ministério Público pode investigar”, mas sim uma mais precisa: consegue o Ministério Público investigar? Explico. Quando se falar em investigar, imediatamente o pensamento se volta ao artigo do CPP e seguintes, vale dizer, imediatamente se imagina autoridades indo ao local do delito, tirando fotos, buscando provas, fazendo uma varredura no local e todos os demais atos necessários à conservação da cena do crime e a colheita de todos os elementos de informação. E é aí que surge a pergunta: os membros do Ministério Público têm formação técnica, física e intelectual para esse tipo de trabalho? Para me fazer mais claro, transcrevo as palavras de Carnelutti, que era escorreito em suas considerações:

    “Recorde-se que, em primeiro lugar, os membros do Ministério Público, dotados, como estão e devem estar, para o desempenho de sua função em juízo, de uma preparação predominantemente jurídica, não poderiam ser capazes de levar a cabo uma série de atividades materiais, necessárias para a acusação (vigilância de pessoas, registros, capturas, e assim sucessivamente); e, em segundo lugar, o êxito da repressão penal depende amiúde da rapidez das ações, a qual pressupõe a presença in loco de pessoas idôneas a levar a cabo as primeiras investigações e tomar as primeiras providências. (…). Compreende-se assim como aqueles oficiais e agentes, os quais por seu objetivo de polícia estão copiosamente distribuídos pelo território e têm em face da luta contra o delito conhecimentos e aptidões particulares, proporcionem uma preciosa rede de auxiliares ao Ministério Público.”[2]

    Eis o busílis! Por mais que a Suprema Corte afirme e reafirme a constitucionalidade dos poderes de investigação do Parquet, tal declaração não altera o fato de que os promotores não têm condições materiais, tampouco conhecimento e aptidões particulares, para realizarem investigações. A polícia é treinada e preparada pra isso. Ademais, é ela chefiada por um Delegado de Polícia, que, assim como o promotor, é uma pessoa formada em Direito e com capacitação técnica, física e psicológica para exercer o mister específico de coordenar investigações policiais.

    E mais: não só não têm os promotores as aptidões particulares para realizar as investigações, mas também não terão o interesse em fazê-las. Ou algum promotor ousaria dizer que tem interesse em sair nas ruas para apurar os roubos, furtos, estupros, lesões corporais e estelionatos? E aqui acaba por se descobrir uma certa hipocrisia por parte dos ilustres promotores, que foi muito bem registrado por um antigo promotor de Justiça, o Prof. Tourinho Filho:

    “Somos de opinião que, a prevalecer o entendimento ministerial, deverá o Ministério Público não apenas proceder a certas investigações que fazem a mídia agitar e delirar, mas também investigar todas as infrações: furto, estelionato, lesão corporal, estupro, tráfico etc. Mas…aí seria demais…para tais investigações existe a Polícia. Para os fatos mais importantes da vida nacional e envolvendo pessoas de projeção, afasta-se a polícia e passa a atuar Sua Excelência o membro do Ministério Público. Além da presunção de “intocabilidade”, “intangibilidade”, surgiria uma inarredável capitis diminutio para aquelas autoridades que diuturnamente, cara a cara, com o risco de vida, enfrentam o crime, qualquer tipo de crime.

    É muito cômodo, do gabinete, proceder às requisições… O difícil mesmo é ir ao locus delicti, procurar saber quem foi o autor do crime. Enfrentar o crime organizado, os roubos de carga, os homicídios, o narcotráfico, os furtos, os estupros, os contrabandos, os estelionatos, os pequenos peculatos será tarefa da Polícia. Mas, se o envolvido for pessoa abastada, integrante dos grupos socioeconômicos mais elevados e, na política, o das pessoas mais representativas, então a tarefa de investigar será entregue aos torquemadescos da vida…”[3]

    Trata-se de uma verdade intragável para alguns promotores, mas que deve ser dita. E foi dita por um ex-integrante da instituição, diga-se de passagem. Registro esse fato para que não se entenda essa crítica como um ataque à instituição do Ministério Público. Trata-se de uma crítica para fazer com que os próprios promotores entendam essa realidade incontornável: não têm eles preparação técnica, física ou intelectual para realizar investigações motu proprio.

    Por fim, cabe registrar que, investigações eventualmente feitas sponte sua pelo Parquet acabarão sempre por degenerar em grave ofensa ao contraditório e a ampla defesa, e, por consequência, ao devido processo legal, que pressupõe sempre a ainda não alcançada, mas fundamental, paridade de armas. “É precisamente no campo da instrução”, bem observou Carnelutti, “que mais se faz sentir aquela disparidade entre acusação e defesa, que, como já se disse no livro precedente, constitui ainda o sinal da pouca evolução, quanto ao processo de cognição, de nossa civilização penal.”[4]

    Acentuar-se-ia, sem dúvida nenhuma, essa disparidade, se fosse confiado ao Ministério Público não só a propositura da ação penal, mas o controle da investigação que lhe precede, pois nessa temível hipótese, a chamada “procura orientada de prova” tornar-se-ia um risco ainda maior, em prejuízo aos direitos da defesa.

    E se faz tudo isso passando a imagem de que é feito com base exclusivamente na virtude inabalável da instituição, na sua ânsia insaciável de combater a corrupção. Mas mesmo os (supostos) virtuosos devem ser temidos, como alertou Montesquieu:

    “… é uma experiência eterna a de que todo homem que tem poder é levado a abusar dele; ele vai em frente até encontrar limites. Quem diria! A própria virtude precisa de limites.”[6]

    Nadir Mazloum é advogado.

    [3] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, V. 1, Editora Bookseller, p.249, 250.

    [4] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Processo Penal, V.1, 34ª Edição, Saraiva, 2012, p. 336.

    [5] CARNELUTTI, Francesco. Lições sobre o processo penal, V. 2, Editora Bookseller, p. 127.

    [6] Ver aqui: http://www.conjur.com.br/2017-set-11/regra-permite-mp-ignorar-ação-penal-gera-controversias.

    [7] MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis, Marin Claret, 2ª Edição, p. 229.

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