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23 de Abril de 2024
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    O macartismo judicial avança: quem serão os próximos?

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    “Tu sabes,

    conheces melhor do que eu

    a velha história.

    Na primeira noite eles se aproximam…”

    (Eduardo Alves da Costa, Fragmento de “No Caminho com Maiakóvski”)

    Os tempos no Brasil são obscuros. O hiato institucional, causado por um controvertido processo de afastamento da Presidenta da República, parece ter rompido também as fronteiras da civilidade, a ponto de permitir que um Governo sem legitimidade popular e sustentado por interesses aristocráticos, violasse flagrantemente os poucos avanços sociais de nossa combalida história.

    A moldura constitucional encontrada para aquele ato foi a senha utilizada para que saíssem das profundezas os mais abjetos propósitos, talvez envergonhados pela aparente estabilidade democrática do pós-ditadura.

    Dentro desse contexto excepcional, não bastaram as articulações de setores dos mais conservadores da sociedade com personagens historicamente críticos ao modelo regulatório trabalhista, que resultaram em uma “reforma” da CLT completamente artificiosa, desconectada de preceitos constitucionais e princípios basilares do Direito do Trabalho.

    Esses mesmos setores agora lançam mão de outra estratégia para tentar impor um único sentido de interpretação e aplicação dessas regras. Trata-se de uma prática marcada pela ameaça, pela coação e pelo constrangimento, perpetrada contra os juízes do trabalho quem “ousaram” externar – de forma direta ou indireta – suas opiniões não apenas críticas à “reforma” mas também enunciando outras possibilidades de sua aplicação concreta.

    Essas reflexões vêm a propósito de algumas afirmações que têm percorrido os veículos de imprensa, e que dão conta de uma necessidade inconteste de que os Juízes do Trabalho “cumpram incondicionalmente a lei”, referindo-se, naturalmente, à Lei 13.467/2017, concretizadora da maléfica “reforma trabalhista.

    O discurso tem se aprimorado com a invocação da possibilidade de serem produzidas reclamações disciplinares no âmbito das corregedorias dos tribunais ou perante a Corregedoria Nacional de Justiça, a fim de buscar a imposição de sanções administrativas aos juízes do trabalho.

    Ameaças dessa ordem foram expressas em manifestações significativas, professadas por conhecidos advogados e líderes empresariais e chegou a compor parte de editorial do insuspeito jornal O Estado de São Paulo. Mais ostensiva, ainda, é a atuação da Confederação Nacional do Transporte, entidade sindical de grau superior que não apenas está recomendando a seus associados a apresentação de denúncia ao CNJ, caso juízes do trabalho não apliquem a nova legislação, como também elaborou um manual de instruções, com o respectivo modelo de reclamação disciplinar.

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    Não nos espanta a autoria desses ataques, dada a matriz ideológica assumida por essas organizações, o que condiz com a lógica autoritária e repressiva do seu discurso. Para ficar apenas na entidade associativa, vale lembrar que ela é fruto direto da mesma legislação trabalhista que critica, e é beneficiária histórica do modelo estático de representação sindical, que impede o exercício da liberdade constitucional e arrecada compulsoriamente contribuições de todos os integrantes de sua categoria, mesmo os que não lhe são associados. E, apesar do fim da obrigatoriedade dessa contribuição, prevista na mesma Lei 13.467, a entidade continuará a engordar seus cofres com as contribuições destinadas ao Sistema S, que não foram extintas.[1]

    Impossível não relacionar esse discurso com práticas como as que decorreram do Ato Institucional no. 05, criador de uma legislação imunizada da apreciação jurisdicional. Como disse o Ministro Celso de Mello, em certa ocasião:

    “O bill de indenidade [imunidade] estabelecido pela legislação de exceção, verdadeiro manto protetor das iniquidades cometidas com fundamento nos atos institucionais, impedia que o Judiciário revisse os atos excepcionais e, desse modo, contivesse a prática expansiva do abuso do poder.”

    Não é casual o fato de que a mesma ditadura militar que produziu o AI-5, também tenha promovido a aposentadoria compulsória de três dos mais brilhantes Ministros do STF – Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva -, que sinalizavam seu inconformismo com aquela anomalia institucional. O regime de exceção, que já havia ampliado artificialmente o STF pelo AI-2, para assegurar a maioria de integrantes da Corte simpáticos aos seus atos, produz uma lei castradora de direitos e ceifa do Supremo os ministros de matriz mais democrática.

    E que ora se pretende reproduzir, com requintes de sofisticação, visto que, ao menos pelo na teoria, estamos em pleno Estado Democrático de Direito.

    É exatamente esse o quadro que se desenha com as ameaças que maculam um dos principais atributos da magistratura, que é a sua independência. Desde a formulação dos Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial, as Nações Unidas estabeleceram diretrizes universais e concretas sobre seu exercício. Nesse contexto, a dita declaração assinala que:

    “La independencia judicial es un requisito previo delprincipio de legalidad y una garantía fundamental de la existenciade un juicio justo. En consecuencia, un juez deberá defender yejemplificar la independencia judicial tanto en sus aspectosindividuales como institucionales.”

    A sistematização desse princípio não constitui um arremedo corporativo, senão a afirmação, no plano internacional, de uma garantia do cidadão e da sociedade contra os arbítrios do Estado. Afinal, “toda mención de la independencia judicial debe en última instanciagenerara una pregunta: ¿independencia de qué? La respuesta más obviaes, por supuesto, independencia frente al gobierno. Me resulta imposibleconcebir una forma en que los jueces, en su función de sentenciar, nodeban ser independientes del gobierno.” (Lord Bingham of Cornhill, Lord Chief Justice of England, “Judicial Independence”).

    Dito de outro modo:

    Não é por outra razão que o Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado na 68ª Sessão Ordinária do CNJ, estabelece que:

    “Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos.” (art. 5º)

    Embora pareça redundante, o Conselho Nacional de Justiça, em duas oportunidades recentes, reafirmou a importância do exercício independente da magistratura. No primeiro caso, manteve o arquivamento de uma reclamação disciplinar contra um magistrado que proferiu quatro sentenças absolutórias de usuários de maconha. O Ministério Público o havia representado junto ao Tribunal de Justiça pedindo a punição do juiz em razão de adotar “entendimento diametralmente oposto ao quedetermina a lei para fundamentar decisões e sentenças, passando a considerar quemaconha e seusderivados não são drogas”, mas o tribunal arquivou a representação, por incabível.

    Na decisão unânime do CNJ, foi afirmado que os juízes não podem ser punidos pelos seus entendimentos, porquanto “o ensejam punição disciplinar os julgamentos que decorram doentendimento livremente manifestado pelo magistrado (livreconvencimento motivado), sem nenhum indício de desvio ético ou deconduta, sob pena de chancelar “infração disciplinar de opinião”.[2]

    Em caso de maior repercussão, uma juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo havia sido punida com censura, sob acusação de descumprir deveres funcionais ao conceder liberdade a presos que já tinham cumprido sua pena. A despeito dos argumentos formais usados pelo Tribunal, a Revisão Disciplinar que tramitou no CNJ evidenciou que se tratava de uma punição injusta e motivada pelo conteúdo das decisões por ela proferira, que estava em desacordo com o entendimento de parte dos integrantes do Tribunal que a sancionou.

    Na decisão do CNJ, o voto prevalecente pontificou: “Punir o magistrado por sua compreensão jurídica é maior violência à sua liberdade e à sua independência. A própria Ministra Cármen Lúcia, que presidiu o julgamento, afirmou que, “nesse caso, com todo o respeito ao grande TJSP, parece que a magistrada tenha sido censurada pela sua conduta e compreensão de mundo incidindo sobre os fatos por ela examinados, e isto é grave.”[3]

    Como se nota, é recorrente na compilação de decisões administrativas do CNJ – órgão correicional de cúpula do Poder Judiciário – a afirmação de que não pode haver controle disciplinar das decisões judiciais, salvo em casos explícitos de motivações extraprocessuais ou práticas abusivas e violadoras de direitos fundamentais, como a ofensa à privacidade das partes. Disso se extrai a mais completa impropriedade das providências que estão sendo articuladas por entidades classistas ou defendidas por profissionais da advocacia e órgãos de imprensa, no sentido de constranger os juízes a “aplicar” a lei em ou outro sentido.

    Não se ouviu de nenhum juiz do trabalho a afirmação categórica de que deixará de cumprir a lei, como um simples ato de sua vontade. Mas, ainda que isso tivesse sido dito, jamais configuraria infração disciplinar. Um juiz pode deixar de cumprir a lei se, por exemplo, ela violar a Constituição. A própria Constituição, no mais das vezes, só é eficaz se for interpretada.

    Em certos casos, aliás, sua “interpretação” nulifica o sentido da norma que nela está inscrita, como fez o Supremo Tribunal Federal, em polêmica decisão: ao dar significado peculiar ao inciso LVII do art. 5o., relativizou um importante princípio civilizatório, que é o da inocência presumida. Pode-se dizer que o STF teria “descumprido” a Constituição, a ensejar a possibilidade de punição disciplinar aos seus integrantes?

    O que nos parece razoável é supor que, dentro da matriz hermenêutica constitucionalmente estabelecida, é legítimo ao aplicador concreto da lei buscar-lhe o verdadeiro sentido e fazê-la incidir a partir do exame da sua compatibilidade com os princípios próprios daquele ramo jurídico.

    Além disso, como já enunciado, não se pode afastar do magistrado o exame da constitucionalidade de uma norma nem tampouco sua harmonia com os tratados internacionais ratificados pelo Brasil, sobretudo em razão do seu caráter normativo (de legalidade, de supralegalidade ou de constitucionalidade, conforme o caso).

    Qualquer proposição que elimine essa possibilidade, além de fugir à lógica da atividade jurisdicional, representa séria violação da independência do juiz, que não pode ser colocado em uma posição defensiva, com afirmações sugestivas capazes obstruir seu livre convencimento. Parafraseando a Ministra Presidente do STF e do CNJ, é muito grave o estado de coisas quando se usam artifícios retóricos para coartar o exercício da jurisdição, pois isso sempre pode ser compreendido como uma vedação prévia ao direito elementar da sociedade antes enunciado: a de ter um juiz imparcial e independente julgando sua causa.

    A bem da verdade, quem usa essa falsa retórica para tentar “enquadrar” os juízes do trabalho a apenas um tipo de interpretação que lhes interessa e favorece é que despreza a Democracia. Brandindo argumentos dessa ordem, não apenas desinformam como violam uma das principais garantias que o regime democrático outorga ao cidadão.

    Há muito se afirmou que não existe “crime de hermenêutica”. Os deveres funcionais da magistratura estão previstos na Constituição, na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e no Código de Ética, e em nenhum deles está expressa a proibição de que um magistrado aplique a lei segundo sua convicção. Não há vedação à interpretação, e nem tampouco ocorre infração disciplinar quando um juiz manifesta entendimento contrário àquele expresso por um tribunal superior.

    Não se situa dentre os deveres do juiz o de abdicar de seu livre convencimento. Portanto, não vemos nenhum espaço institucional legítimo para que se permita a transformação de uma decisão judicial, proferida nos limites próprios da jurisdição, em uma questão disciplinar, que venha a acarretar punição administrativa a magistrado.

    Não é de hoje que juízes criminais garantistas são perseguidos por parte da imprensa e por setores do Ministério Público, que não se conformam com julgadores que não assimilam incondicionalmente o punitivismo. Os dois casos citados são exemplos relevantes desse quadro, que se repete periodicamente nas corregedorias dos tribunais estaduais e regionais. Desta feita, uma vez instituído o “Direito do Trabalho do Inimigo”, é a vez dos juízes do trabalho que com ele não se conformam.

    Como mencionam os já citados Princípios de Bangalore, “al cumplir sus obligaciones judiciales, un juez será independiente de sus compañeros de oficio con respecto a decisiones que esté obligado a tomar de forma independiente”.

    Da mesma sorte, o Código de Ética da Magistratura exige do magistrado “que seja eticamente independente e que não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro colega, exceto em respeito às normas legais” (art. 4o) e estabelece como “dever do magistrado denunciar qualquer interferência que vise a limitar sua independência (art. 6º).

    Cabe aos tribunais e ao Conselho Nacional de Justiça zelar pela autonomia e pela independência dos seus magistrados. Se assim não agirmos, seremos apenas uma metáfora brechtiana: Primeiro perseguiram os juízes garantistas, mas não me importei com isso, pois não era garantista. Em seguida perseguiram alguns juízes do trabalho. Mas não me importei com isso, porque eu também não era juiz do trabalho. Quem serão os próximos?

    Carlos Eduardo Oliveira Dias é Juiz do Trabalho em Campinas e Doutor em Direito pela USP. Foi Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (2015-2017).

    [1] A CNT comanda o Serviço Social do Transporte e o Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SEST e SENAT), que arrecadam contribuições sociais com base na Lei nº 8.706, de 14-9-1993, e cujo produto não integra o orçamento fiscal da União (art. 165, § 5º, I, II e III da CF), ficando apenas para essas instituições.

    [2] Revisão Disciplinar 0003127-82.2014.2.00.0000, julgado em outubro de 2016, Relator Carlos Eduardo Dias

    [3] Revisão Disciplinar 0002474-75.2017.2.00.0000, julgado em agosto de 2017, Relator Conselheiro Gustavo Alkmim.

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