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25 de Abril de 2024
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    Apertem os cintos: o fiscal da lei sumiu!

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Diversas foram as gerações marcadas por filmes que rotineiramente eram exibidos na Sessão da Tarde, Temperatura Máxima, Domingo Maior, entre outros programas televisivos. Quem sabe a próxima coluna se inspire no blockbuster Curtindo a vida adoidado, mas para essas linhas outra obra cinematográfica é que serve de inspiração “Apertem os cintos: o piloto sumiu”.

    Naquele filme, foi retratado o caos estabelecido em uma aeronave após toda a tripulação, o que incluiu os pilotos, passarem mal durante o voo em razão de uma comida estragada servida a todos. Em determinado momento, o piloto automático é acionado, vale dizer, um boneco inflável, mas que não se mostrava capaz de aterrar o avião. Dentre os passageiros, havia um traumatizado piloto veterano de guerra que acabou sendo o responsável pelo pouso em um aeroporto que se encontrava em estado de atenção. Esse é o pano de fundo.

    A viagem agora é outra e o avião deve decolar e aterrissar sempre sob a ótica constitucional, sendo certo que o fiscal da lei, em razão de legítima opção realizada pela Assembleia Nacional Constituinte, defenderá a ordem jurídica.

    No entanto, conforme será demonstrado a seguir, não é esse o papel desempenhado atualmente por determinado órgão inserido na Seção Constitucional que versa sobre o Ministério Público.

    No cenário crítico que ora se apresenta, é imprescindível assinalar que a análise é de natureza jurídica e tem como referencial teórico a Crítica Hermenêutica do Direito.

    Lenio Luiz Streck afirma, e de maneira insistente, exemplar e veemente, que nenhum ator jurídico pode se despir do discurso jurídico e pautar a sua atuação por argumentos de outra natureza, o que implica, por exemplo, no recurso à moral ou mesmo em uma lógica finalista.

    Daí, se mostra perfeitamente possível realizar uma censura ao encantamento, que se associa à existência de uma sanha punitivista que ganha cada vez mais força, ao chamado “princípio” da eficiência na persecução penal.

    O titular da ação penal possui no cenário normativo vigente, ainda mais quando se leva em consideração o regime democrático, uma posição inusitada. A rigor, é imparcial e, ao mesmo tempo, é a parte acusadora. Rubens Casara apresenta pertinentes considerações sobre essa situação:

    Em um processo de partes, verdadeiro ‘duelo intelectual’ entre acusação e a defesa, apenas uma crença desassociada da teoria democrática do processo penal, das regras do jogo própria do sistema acusatório (isonomia, ‘paridade de armas’, equidistância do órgão judicial, contraditório, etc.), justifica a conclusão de que o Ministério Público, órgão estatal com a atribuição constitucional de atuar como parte-acusadora, é um sujeito imparcial.”[ii]

    ***

    Prosseguindo na análise. No dia 07 de agosto de 2017, o órgão que tem por missão o controle administrativo e financeiro do Ministério Público, bem o controle pelo cumprimento dos deveres funcionais dos membros ministeriais, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), decidiu adotar o caminho da ilegalidade e colocar em risco o avião que deveria seguir os ditames constitucionais.

    E que não seja entendido como exagero retórico o apontamento que indica a escolha pela ilegalidade, uma vez que se pauta no contido no artigo 18, Resolução nº 181 do CNMP cujo teor é o seguinte:

    “Art. 18. Nos delitos cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, não sendo o caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor ao investigado acordo de não-persecução penal, desde que este confesse formal e detalhadamente a prática do delito e indique eventuais provas de seu cometimento, além de cumprir os seguintes requisitos, de forma cumulativa ou não:

    I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima;

    II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos artigos 91 e 92 do Código Penal;

    III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail;

    IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público.

    V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito.

    VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.

    I – for cabível a transação penal, nos termos da lei;

    II – o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de coordenação;

    III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei n. 9.099/95;

    IV – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal.

    A despeito de transparecer truísmo, não se pode olvidar o fato de que na ordem jurídica constitucionalmente estabelecida em 05 de outubro de 1988, toda e qualquer perda de direitos ou bens deverá observar o devido processo legal, sendo certo que, por mais nobres que venham a ser as intenções de quem quer que seja, não se mostra possível realizar qualquer ponderação ou restrição dessa verdadeira conquista civilizatória que visa a limitação e o controle do poder estatal.

    Logo, o CNMP não poderia prever requisitos para a concessão do acordo de não-persecução penal, ainda mais quando a privação de direitos e bens se realiza ao arrepio do controle do Poder Judiciário.

    Mas, não é só!

    O caos na aeronave se agrava ainda mais quando se depara com a mais completa discricionariedade gozada pelo titular da ação penal, no que se refere ao oferecimento de acordo não-persecução penal, uma vez que não há qualquer mecanismo de controle interno ou externo na hipótese de recusa da proposta.

    Dito de outra forma: ainda que o investigado se enquadre nas hipóteses infralegais, o mero capricho do titular da ação penal é que determinará, ou não, a possibilidade de avença extraprocessual.

    E o pior: mesmo que aceite e cumpra todo o acordo, subsiste o risco de que não seja arquivado o procedimento preparatório, já que o artigo 18, § 8º, Resolução nº 181, CNMP, apesar de estabelecer uma vinculação interna, não elide o controle judicial.

    O magistrado pode discordar do arquivamento e, eis que surge o paradoxo, pois independentemente do posicionamento do Chefe Institucional do Ministério Público deverá ser reiterado o arquivamento, pois já existe vinculação de entedimento.

    Duas outras questões devem ser observadas. A primeira delas consiste na usurpação de competência legislativa, mais especificamente o previsto no artigo 22, inciso I, Constituição da República, pois matéria processual veio a ser disciplinada por ato infralegal, a segunda se relaciona com o mais completo esvaziamento do princípio da obrigatoriedade, uma vez que o artigo 18, caput, Resolução nº 181, CNMP trata da possibilidade de celebração de acordo quando não for hipótese de arquivamento do procedimento prévio à ação penal, sendo certo que a superação do princípio da obrigatoriedade se mostra nesse caso mais gravosa do que aquela denunciada por Afrânio Silva Jardim a partir do previsto na Lei 12.850/13:

    “Se bem refletirmos, vamos perceber que, de forma indireta, este prêmio de não oferecer denúncia importa na adoção do princípio da oportunidade da ação penal pública para qualquer crime, de qualquer gravidade, desde que praticado no âmbito de uma determinada organização criminosa.

    Desta forma, sem maiores mecanismos de controle, abandona-se o princípio da legalidade ou da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública em prol de obtenção de provas contra alguns outros suspeitos de prática delitivas.

    Não foi por outro motivo, que sustentei, em estudo anterior publicado nesta coluna do site Empório do Direito, que o parágrafo 4º. do art. 4º. da citada lei n.12.850/13 está em dissonância com o nosso sistema constitucional, por dois motivos: 1) A Constituição Federal só admite a chamada justiça pactuada em se tratando de crimes de menor potencial ofensivo, (art. 98, inc.I); 2) Violação do princípio que veda a proteção deficiente para bens constitucionalmente tutelados.

    (…)

    Disso tudo se pode tirar uma lição: é muito perigoso para o Ministério Público, como instituição, a chamada justiça pactuada. É indesejável que membros do Ministério Público, em todo este nosso imenso território, possam dialogar com criminosos e combinar com eles penas e outros prêmios. A discricionariedade, em nosso sistema de justiça criminal, vai – como já está – levantar, perante a opinião pública, sérias e graves suspeitas sobre o atuar dos órgãos desta importante instituição. A discricionariedade legitima tais suspeitas, sejam procedentes ou não.

    Desta forma, somos pela ampla e irrestrita adoção do sistema de legalidade em nosso sistema de justiça criminal. Aqui também vale a “palavra de ordem”: não ao negociado sobre o legislado.”[iii]

    O espaço disponibilizado para esta coluna não permite que outros tópicos venham a ser aprofundados, sendo certo que outros e melhores críticos apresentarão as suas pertinentes e apropriadas considerações. É preciso, portanto, concluir.

    No filme, um veterano de guerra salvou o avião. Aqui é necessário se afastar da arte, prescindível que um personagem messiânico surja e venha restabelecer a ordem, basta resistir à sedução por argumentos morais, utilitaristas e, principalmente, inconstitucionais.

    O céu se mostra turbulento, o fiscal da lei sumiu e deve a comunidade jurídica resistir.

    Eduardo Januário Newton é mestre em Direito pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010).

    [ii] CASARA, Rubens. Processo penal do espetáculo. Ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 171.

    [iii] JARDIM, Afrânio Silva. Acordo de cooperação premiada. Prêmio de não ser denunciado. Eficácia de arquivamento. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/acordo-de-cooperacao-premiada-premio-de-nao-ser-denunciado-eficacia-de-arquivamento-por-afranio-silva-jardim/ Acesso em 13 de setembro de 2017.

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