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26 de Abril de 2024
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    Carta-branca para PM apreender objetos de crime de policial contra civil é injustificável

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Com o advento da Constituição Federal de 1988, muitos problemas históricos do Brasil foram “resolvidos”, ao menos no campo normativo-constitucional. Nossa Constituição assegurou explicitamente uma série de direitos e garantias fundamentais (art. 5º), bem como de direitos sociais (art. 6º e 7º). Porém, uma questão central não foi resolvida por falta de consenso na Assembleia Constituinte: a segurança pública.

    A proposta do texto original era de extinção das Polícias Militares e a estruturação de um aparato de segurança pública integralmente civil. No entanto, nos debates constituintes – por razões sobejamente conhecidas – esse sonho democrático não se concretizou em virtude de forte resistência e influência exercida por forças conservadoras, que mantiveram o país sob uma ditadura civil-militar por mais de duas décadas.

    Assim, na questão da segurança pública, não se verificou uma alteração substancial. Foram mantidas duas estruturas policiais, a saber: uma polícia civil e uma polícia militar. A primeira, responsável pelas investigações de infrações penais e respectiva autoria (com carreira civil e de cogente formação jurídica); a segunda, responsável pelo policiamento ostensivo (plasmada no regime e formação militares).

    Essa distinção no tratamento constitucional às duas polícias trouxe problemas de ordem prática que ainda são verdadeiros gargalos na política de segurança pública.

    Na prática, tem-se o seguinte: a polícia militar é responsável, em princípio, pelo policiamento ostensivo e mantém, como se sabe, o contato direto com o cidadão. Normalmente, é a primeira a atender às ocorrências de natureza criminal que não raro resultam nas prisões em flagrante. A polícia civil, por sua vez, exerce as funções de polícia judiciária, intervém, como regra, quando o delito já foi praticado e é justamente a responsável pelas investigações criminais. Sua função precípua, portanto, é a de buscar informações para o esclarecimento de infrações penais por meio dos inquéritos policiais e, para tanto, deve efetivar todas as diligências necessárias a tal desiderato, notadamente aquelas prescritas pelo artigo , incisos I, II e III, do Código de Processo Penal.

    O ponto de encontro entre as duas dá-se especificamente quando a polícia militar, que está nas ruas, captura alguém em estado de flagrância e tem de apresentá-lo à autoridade competente para a lavratura de eventual auto de prisão, que vai analisar a legalidade da medida e verificar a necessidade de se iniciar uma investigação criminal. Já aqui surgem, não raro, alguns conflitos, pois os policiais militares nem sempre concordam com o tratamento jurídico dispensado pelo Delegado de Polícia ao caso que lhe é apresentado, acentuando as diferenças entre as instituições.

    Fácil seria se os problemas se resumissem a este desentendimento entre uma polícia militar que trabalha ostensivamente na prevenção dos crimes e uma polícia civil que trabalha investigando crimes que já aconteceram.

    O problema mais sério – e que justifica este artigo – decorre do aparente e suposto conflito entre as polícias civil e militar para investigar os crimes de homicídio doloso praticados por militares contra civis.

    Como se sabe, a Constituição Federal, além de manter uma estrutura própria de Polícia Militar, ainda atribuiu a Tribunais Militares a competência para o processo e julgamento de delitos militares próprios e impróprios, dentre estes últimos, aqueles praticados por policiais militares no exercício de suas funções. Deu-se, portanto, um grande campo de cognição para os Tribunais Militares, de tal forma que por longo período de tempo, mais especificamente até o ano de 1996, tinham competência para o processo e julgamento de policiais militares que, mesmo fora do exercício das funções, perpetrassem delitos com emprego de arma da corporação.

    Com o advento da Lei nº 9299/96, depois de intenso debates parlamentares, operou-se expressiva alteração do Código Penal Militar e do Código de Processo Penal Militar. Referida lei revogou expressamente o artigo , inciso II, alínea f, do CPM e inseriu o parágrafo único no dispositivo, estabelecendo que os crimes dolosos contra a vida de civil perpetrados por policiais militares (mesmo no exercício das funções) não seriam mais considerados crimes militares impróprios e, como consequência, estariam sujeitos à competência da Justiça Comum Estadual, mais especificamente o Tribunal do Júri.

    Essa alteração, como não poderia deixar de ser, repercutiu diretamente no Código de Processo Penal Militar. Com efeito, os crimes dolosos contra a vida, excluídos do rol das infrações penais militares, não poderiam (e não podem) ser objeto de investigação pela Polícia Militar e tampouco apurado por meio de inquérito policial militar. Em outras palavras, as medidas previstas nos artigos 8º, alínea a; e 12, alíneas a, b e d, do Código de Processo Penal Militar, não são aplicáveis, por exemplo, a homicídios perpetrados por policiais militares no exercício das funções.

    A consequência, no campo do processo penal é que a polícia militar é responsável, tão somente, pela investigação dos crimes militares – e dos policiais militares – que serão submetidos à justiça militar.

    Na prática, portanto, reiteramos: quando um policial militar matar um civil, é o Delegado de Polícia que tem a obrigação legal de se dirigir até o local do crime e preservar todas as provas que poderão ser úteis à investigação e ao processo criminal, até a chegada dos peritos, que são capacitados para colher as evidências e outros elementos de prova da maneira mais segura.

    Aqui reside o punctum pruriens do presente artigo. É que a polícia militar paulista vem subvertendo essa regra processual e realizando investigações paralelas desde há muito tempo, mas sempre de maneira subsidiária à Polícia Civil, e sob a escusa de apurar infrações militares e administrativas do policial militar investigado.

    A pretexto de regulamentar essa matéria – que, como se viu, já foi suficientemente exaurida no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar, sem nenhum lacuna colmatável – a Presidência do Tribunal de Justiça Militar expediu a inusitada Resolução 54/2017, que, ao arrepio da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, atribui à “autoridade policial militar” o poder de apreender os instrumentos e todos os objetos que tenham relação com a apuração dos crimes militares definidos em lei quando dolosos contra a vida de civil (cf. art. 1º, in fine, da Resolução54/2011 TJM).

    Cumpre observar – desde logo – que esse procedimento, ao fim e ao cabo, tem por finalidade declarada impedir que a Polícia Civil instaure a competente investigação criminal, que, segundo a referida resolução, deverá ser feita exclusivamente pela polícia militar.

    Para se dizer o mínimo, há aqui um evidente equívoco exegético e hermenêutico. Com efeito, o artigo 82, § 2º, do Código de Processo Penal Militar (incluído pela Lei nº 9.299/96) tem um nítido caráter transitório, ou seja, aqueles inquéritos que estavam em trâmite pela Justiça Militar à época da entrada em vigor da lei deveriam ser encaminhados à Justiça Comum Estadual. Em nenhum momento a Lei nº 9299/96 previu atribuição investigatória concorrente entre as Polícias Civil e Militar.

    Além disso, como se disse anteriormente, crime doloso contra a vida praticado por militar contra civil deixou de figurar no rol dos crimes militares impróprios, sendo subtraído da competência do Tribunal Castrense, voltando ao seu juiz natural que é o Tribunal do Júri.

    Aliás, talvez por descuido, a resolução da Presidência do Tribunal de Justiça Militar deixou de fazer alusão ao caput do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar, que estabelece, in litteris: Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz […].

    A injustificável resolução da Presidência do Tribunal de Justiça Militar, além de pretender regulamentar matéria inteiramente tratada – e sem lacunas colmatáveis – por leis Federais (Código de Processo Penal, Código Penal Militar e Código de Processo Penal Militar), ainda usurpou competência legislativa privativa da União (artigo 22, I, da Constituição Federal).

    A questão, entretanto, transcende a mera discussão acadêmica. Na prática, a apreensão de objetos, armas, alteração do estado das coisas etc. causará enorme gravame às investigações criminais que tenham por objeto crimes dolosos (especialmente os homicídios) perpetrados por policiais militares, acarretando natural sensação de desconfiança, impunidade e descrédito da própria Justiça Criminal.

    Não é demais recordar que, no Estado de São Paulo, a Resolução nº 05/2013 da Secretaria de Segurança Pública, denotando conhecimento intrínseco da prática criminal, vedou expressamente que policiais militares – a pretexto de prestar assistência a vítimas feridas em confronto – alterassem o estado das coisas, aguardando o concurso do socorro especializado, impondo, ainda, o dever de preservar o local até a chegada da perícia, isolando-o e zelando para que nada fosse alterado, em especial, o cadáver e objetos relacionados ao fato (cf. art. 2º, Resolução nº 05/2013 da Secretaria de Segurança Pública de SP).

    Ficou consignado no referido texto, que ela tinha por escopo, dentre outros motivos, a apuração isenta e escorreita de eventuais crimes contra a pessoa ou que atinjam o patrimônio, com evento morte, depende de pronta atuação das Polícias Civil, Militar e da Superintendência da Polícia Técnico-Científica.

    Após a elaboração dessa resolução – que, diga-se, tinha o aval de entidades internacionais e nacionais que atuam na defesa dos direitos humanos, e também de organismos federais, como a Secretaria Especial de Direitos Humanos – o número de mortos decorrentes de intervenções policiais caiu quase 40%. Enquanto isso, a produtividade da polícia aumentou. A Resolução nº 05 da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo foi, infelizmente, revogada na troca de comando operada pelo Governo do Estado de São Paulo. Esse retrocesso agora se solidifica com a ilegal e inconstitucional Resolução do Tribunal de Justiça Militar que terá, não se duvida, efeito imediato na impunidade de crimes específicos contra a vida perpetrados por policiais militares, em face do notório e evidente prejuízo para as investigações e, em especial, para os levantamentos técnicos e periciais tão importantes para a solução dessa modalidade específica de criminalidade.

    É preocupante esse retrocesso – pautado em ato ilegal e inconstitucional que dificultará sobremaneira a investigação e punição de homicídios perpetrados por policiais militares – ocorrer notadamente quando as estatísticas mostram que o número de homicídios praticados por policiais militares na cidade de São Paulo foi maior do que os praticados por não-policias e, que o recém empossado comandante da ROTA deliberou, por conta própria, estabelecer na mesma cidade, de acordo com a sua idiossincrasia e sem nenhuma preocupação acadêmica, estatística, metodológica etc., uma peculiar política de segurança que deliberou chamar impropriamente de “tolerância zero”. Acreditamos, sinceramente, que tudo não passa de uma grande coincidência.

    Humberto Barrionuevo Fabretti é Advogado Criminalista. Professor Doutor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    Pedro Henrique Demercian é Procurador de Justiça Criminal. Professor Assistente-doutor nos cursos de Graduação e Pós-graduação da PUC/SP.

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