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20 de Abril de 2024
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    Em casos de inimputabilidade psiquiátrica no Júri, advocacia precisa estar alerta

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Tribunal do Júri em Brasília. Foto: TJDFT/Flickr

    O presente texto tem como intuito tecer algumas considerações voltadas aos operadores do direito, militantes nos casos em que esteja configurada a inimputabilidade psiquiátrica dos réus em relação aos delitos “dolosos” contra a vida. O primeiro esclarecimento reside nas aspas do vocábulo dolosos, justamente por ser paradoxal reconhecer a inimputabilidade do indivíduo e processá-lo como se tivesse agido com o animus necandi. A contradição acima explanada está longe de ser mero preciosismo, tecnicismo, pois, caracterizada a inimputabilidade em razão de enfermidade psiquiátrica, estará ausente o elemento subjetivo maior dos crimes dolosos, o próprio dolo, bem como a capacidade de culpabilidade[1].

    Antes de adentrarmos no cerne desse ensaio, o qual foi mencionado no título, é necessário trazer alguns dados no tocante ao cumprimento das Medida de Segurança no Brasil, os quais apontam para um cenário extremamente delicado, quiçá perverso para com os enfermos psiquiátricos internados nos “Hospitais”[2] de Custódia e Tratamento Psiquiátricos. O censo[3] de 2011, coordenado pela pesquisadora Debora Diniz, sobre pacientes internados nestes Hospitais, visitou 26 estabelecimentos prisionais em 19 estados, analisou documentos de 3.989 internos em cumprimento de medida de segurança de internação. O primeiro número absurdo reside no fato de diversos pacientes estarem internados de forma indevida, conforme constatou a pesquisa, eis:

    Pelo menos 741 indivíduos não deveriam estar em restrição de liberdade, seja porque o laudo atesta a cessação de periculosidade, seja porque a sentença judicial determina a desinternação, porque estão internados sem processo judicial ou porque a medida de segurança está extinta. Isso significa que um em cada quatro indivíduos internados não deveria estar nos estabelecimentos de custódia.”[4] (grifou-se)

    Este número estarrecedor ao ser dissecado pela equipe de pesquisa se torna ainda mais alarmante ao constatar que, em quase cinqüenta por cento dos casos dos pacientes analisados, não foi possível comprovar a suposta necessidade da internação, bem como a pertinente fundamentação médica e jurídica justificadora para as internações, observe-se:

    “O censo encontrou algo muito mais atroz: pelo menos um em cada quatro indivíduos não deveria estar internado; e para um terço deles não sabemos se a internação é justificada. Ou seja, para 1.866 pessoas (47%), a internação não se fundamenta por critérios legais e psiquiátricos. São indivíduos cujo direito a estar no mundo vem sendo cotidianamente violado.”

    Infelizmente, para finalizar os exemplos ruins deste “teatro dos horrores”, temos o exemplo do Estado do RJ, onde ocorreu falta de medicação para controle das doenças mentais dos pacientes no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Roberto Medeiros, conforme veiculado em jornal televisivo.

    Concernente à temática central do presente trabalho, temos a “armadilha” do parágrafo único do artigo 415 do Código de Processo Penal que pode surpreender o “jogador” desprevenido atuante no árduo jogo do processo penal[5]. Analisemos a redação do artigo supramencionado, sua repercussão; e a estratégia adotada por muitos membros do Ministério Público, quando a defesa do réu realiza uma “jogada processual” açodada. Eis o dispositivo do CPP:

    Art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando

    I – provada a inexistência do fato

    II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato

    III – o fato não constituir infração penal

    IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

    Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caputdo art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva. (grifou-se).

    A atenção dos defensores atuantes nos casos de inimputabilidade psiquiátrica que tramitem no Tribunal do Júri deve se voltar com acuidade para o trecho do parágrafo único do artigo 415 CPP, o qual dispõe não aplicar a isenção de pena e, por conseguinte, não poderá ser determinada a absolvição sumária, nos casos de inimputabilidade dispostos no artigo 26 do Código Penal, salvo quando a inimputabilidade defensiva for a única tese alegada durante a instrução do processo penal. Ou seja, não poderá o defensor alegar concomitantemente uma excludente de ilicitude e a inimputabilidade psiquiátrica, p.ex., legitima defesa, haja vista a competência constitucional de julgamento, prevista no artigo 5º, XXXVIII, alínea d, estabelecida para o corpo de jurados do Tribunal do Júri julgar qualquer defensiva diversa da inimputabilidade.

    O leitor deve estar se perguntando onde está a tal “armadilha” do título ou qual seria a dificuldade de interpretação do parágrafo único do artigo 415 do CPP. Pois bem, o quase xeque-mate está nas frases genéricas comumente empregadas na resposta do réu prevista nos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal, tais como: “O descrito na Denúncia do Parquet, não guarda ressonância com a realidade fática, conforme será demonstrado na instrução processual”, “Os fatos atribuídos ao denunciado são improcedentes e restarão provados durante audiência de instrução”, dentre outros exemplos de frases manejadas nas Respostas do réu.

    Finalmente chegamos ao ápice deste ensaio, pois tais frases muitas vezes servem de arcabouço argumentativo aos membros do Ministério Público para tentar afastar em sede recursal a aplicação da parte final do artigo 415 do CPP quando o réu é absolvido sumariamente pelo juiz singular. Entretanto, há no Superior Tribunal de Justiça precedentes no sentido de não serem as alegações genéricas da Resposta razão sólida para afastar a absolvição sumária e levar o réu ao julgamento pelo corpo de jurados do Tribunal do Júri, eis o julgado representativo da jurisprudência:

    RHC 39920 / RJ RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2013/0260552-4

    Relator (a) Ministro JORGE MUSSI (1138)

    Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA

    Data do Julgamento 06/02/2014

    Data da Publicação/Fonte DJe 12/02/2014

    Ementa RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. INIMPUTABILIDADE. MEDIDA DE SEGURANÇA. TESE DISTINTA DA CAUSA DE ISENÇÃO DE PENA. INEXISTÊNCIA. ALEGAÇÃO GENÉRICA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL.

    1. Nos termos do artigo 415, parágrafo único, do Código de Processo Penal, o juiz poderá absolver desde logo o acusado pela prática de crime doloso contra a vida se restar demonstrada a sua inimputabilidade, salvo se esta não for a única tese defensiva.

    2. A simples menção genérica de que não haveria nos autos comprovação da culpabilidade e do dolo do réu, sem qualquer exposição dos fundamentos que sustentariam a tese defensiva, não é apta a caracterizar ofensa à referida inovação legislativa.

    SENTENÇA ABSOLUTÓRIA IMPRÓPRIA. IMPOSIÇÃO DE MEDIDA DE SEGURANÇA. PRESCRIÇÃO. APLICABILIDADE. INTERNAÇÃO. MARCO TEMPORAL. PENA MÁXIMA ABSTRATAMENTE PREVISTA PARA O DELITO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE INOCORRÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO.

    1. O Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o instituto da prescrição é aplicável na medida de segurança, estipulando que esta “é espécie do gênero sanção penal e se sujeita, por isso mesmo, à regra contida no artigo 109 do Código Penal” (RHC n. 86.888/SP, Rel. Min. Eros Grau, Primeira Turma, DJ de 2/12/2005).

    2. Sedimentou-se nesta Corte Superior de Justiça o entendimento no sentido de que a prescrição nos casos de sentença absolutória imprópria é regulada pela pena máxima abstratamente prevista para o delito. Precedentes.

    3. Na hipótese, não se verifica o transcurso do prazo prescricional aplicável entre os marcos interruptivos.

    4. Recurso improvido.

    Acórdão

    Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Os Srs. Ministros Marco Aurélio Bellizze, Moura Ribeiro, Regina Helena Costa e Laurita Vaz votaram com o Senhor Ministro Relator (Acesso em 31/07/2017 – grifou-se).

    Indo ao encontro dos precedentes do STJ, temos, como exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, veja-se:

    “APELAÇÃO CRIMINAL. TENTATIVA DE HOMICÍDIO. RÉU PORTADOR DE DOENÇA MENTAL. ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA. SUBMISSÃO AO TRIBUNAL DO JÚRI. INVIABILIDADE. Restando reconhecida, através de provas incontroversas, a autoria e materialidade do delito, além, ainda, de não existir qualquer tese excludente de ilicitude e de culpabilidade, correta é a sentença que, diante da presença de laudo pericial conclusivo da inimputabilidade do réu, o absolve sumariamente, aplicando-lhe medida de segurança. Inteligência dos artigos 97 do Código Penal e 415 do Código de Processo Penal. Precedentes do STJ. Ademais, não foi arguida qualquer tese da Defesa, durante a instrução criminal, pleiteando a absolvição do réu em razão de qualquer causa excludente, quer seja da ilicitude ou da culpabilidade. Na hipótese, houve, tão somente, por ocasião das alegações finais, a insurgência quanto ao pedido de absolvição sumária elaborado pelo órgão ministerial, o que não é capaz de ensejar a realização do Júri, diante da incontrovérsia das provas constantes dos autos. DESPROVIMENTO DO RECURSO.” – TJRJ – Ap. n. 0000864-29.2014.8.19.0071 – Des. Joaquim Domingos de Almeida Neto – – Julgamento: 10/05/2016 – 7ª Câmara Criminal (grifou-se)

    Desta forma, fica o alerta aos operadores do direito, nos casos de competência do Tribunal do Júri, em que a defesa ventile a inimputabilidade como tese defensiva, para não alegarem argumentos defensivos diversos da inimputabilidade, pois há risco de o paciente, muitas vezes, ainda fragilizado pela atuação da enfermidade psiquiátrica, ser levado à plenária do Júri, experimentando injustamente doloroso processo de julgamento.

    Bom, nunca é demais lembrar ser necessário efetivar a aplicação da Lei 10.216/01, “Lei da Reforma Psiquiátrica”, no processo penal, desconstruir o imaginário negativo de violência que permeia os enfermos psiquiátricos, promover a desospitalização dos pacientes dos “Hospitais” de Custódia Tratamento Psiquiátrico e acabar com os manicômios judiciários, como já o fez o Estado de Goiás, mediante o visionário e humanizado Programa de Atenção ao Louco Infrator – PAILI, idealizado pelo Promotor Haroldo Caetano[6]. Todos pela Efetividade da Lei da Reforma Psiquiátrica no Processo Penal, Avante sempre.

    Marcelo Masô é Advogado, Professor de Direito da Universidade Cândido Mendes no RJ e Membro da Comissão de Direito Tributário – da OAB/RJ da Subseção Barra da Tijuca.

    * Dedico este texto ao querido Francisco, carinhosamente chamado pelos outros internos e servidores do HCTP Roberto Medeiros de “Chiquinho”, que está, ou esteve, internado naquele nosocômio (desconheço sua atual situação processual). A dramática história deste paciente foi motivo de reportagem em um jornal televisivo, no ano de 2016. Chiquinho até àquela época, contava 15 anos de internação provisória. Convivi com ele e sua mãe pouco mais de um ano e meio em razão de minha atuação profissional em prol de alguns internos do HCTP Roberto Medeiros, Complexo de Gericinó, Bangu RJ. Como todo e qualquer ser, não merecia aquele tratamento desumano. Chiquinho, sempre tão dócil, educado e excelente funcionário da cantina. Desejo dias melhores a ele e a todos os pacientes que estão cumprindo medida de segurança encarceradora.

    Amém!

    Bibliografia:

    DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011, Brasília: Letras Livres: Editora Universidade de Brasília, 2013.

    ROSA, Alexandre de Morais. Guia Compacto do Processo Penal, 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

    SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC; Lumen Iuris, 2007.

    [1] Sobre o conceito de capacidade de culpabilidade ler SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC; Lumen Iuris, 2007, pp. 288-289.

    [2] As aspas no vocábulo Hospitais decorrem da constatação das condições degradantes vivenciadas pelos pacientes nestes locais, condições estas divulgadas amplamente nos veículos de comunicação. A título de exemplo segue link do Jornal “Extra” o qual circula no estado do RJ comprovando a situação deplorável do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Roberto Medeiros.

    [3] DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011 [recurso eletrônico] / Debora Diniz, Brasília: Letras Livres: Editora Universidade de Brasília, 2013.

    [4] DINIZ, Debora. A custódia e o tratamento psiquiátrico no Brasil: censo 2011 [recurso eletrônico] / Debora Diniz, Brasília: Letras Livres: Editora Universidade de Brasília, 2013, p.16.

    [5] A colocação faz menção ao estudo do Professor Alexandre Morais da Rosa sobre a aplicação da teoria dos jogos no processo penal. Ver ROSA, Alexandre de Morais. Guia Compacto do Processo Penal, 3ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.

    [6] Haroldo Caetano da Silva é promotor de justiça do MP-GO, mestre em Direito e doutorando em Psicologia Social na Universidade Federal Fluminense.

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