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19 de Abril de 2024
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    A imprescritibilidade do crime de tortura

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    O art. , inciso XLIII, da CF, diz que “a lei considerará crimes inafiançáveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evita-los, se omitirem”.

    Assim, em atenção ao mencionado mandado de criminalização, o legislador ordinário cuidou de tipificar o crime de tortura com a edição da Lei 9.455 de 1997.

    Seguindo os esforços internacionais, o Brasil ainda incorporou em seu ordenamento jurídico, por meio do Decreto-Legislativo nº 4.388, de 2002, o Estatuto de Roma, o qual, de acordo com o posicionamento então adotado pelo Supremo Tribunal Federal, teria status de lei ordinária[1].

    Posteriormente, com a Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, foram acrescentados dois parágrafos ao artigo da Constituição Federal, in verbis:

    § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

    § 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.

    Diante disso, o Supremo Tribunal Federal consolidou novo entendimento, traduzido no Habeas Corpus 88.240, no sentido de que os tratados sobre direitos humanos que não foram submetidos ao procedimento do artigo 5º, § 3º, teriam status normativo infraconstitucional e supralegal:

    A esses diplomas internacionais sobre direitos humanos é reservado o lugar específico no ordenamento jurídico, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil, torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.”[2]

    Atribuiu-se ao Estatuto de Roma, a partir de então, status normativo supralegal, mas infraconstitucional, já que sua aprovação seguira procedimento comum, utilizado para a aprovação de leis ordinárias e antes mesmo da edição da Emenda Complementar nº 45.

    Deixou-se, contudo, de avaliar a imprescritibilidade (ou não) do crime de tortura, questão relevante que nos propomos a pensar.

    Entre as questões controversas trazidas à baila pelo Estatuto de Roma está a imprescritibilidade dos crimes da competência do Tribunal Penal Internacional, prevista pelo Artigo 29 do aludido Estatuto, nos seguintes termos: “os crimes da competência do Tribunal não prescrevem”.

    Noutra esteira, uma análise superficial do ordenamento jurídico brasileiro levaria à conclusão de que o crime de tortura está, sim, sujeito à prescrição, nos termos do artigo 109 do Código Penal, pois a Constituição Federal previu, de forma taxativa, os crimes imprescritíveis, quais sejam, o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (artigo 5º, incisos XLII e XLIV). No tocante à tortura, limitou-se o legislador constituinte a afirmar ser crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (inciso XLIII).

    Ademais, no plano da legislação ordinária, a prescrição, tratada no artigo 109 do CP, nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt[3], é questão de direito material, já existindo, no direito interno, completa regulamentação da questão prescricional na esfera criminal.

    Além disso, naquilo que concerne ao suposto conflito em relação à Constituição Federal, há entendimento de que o rol de crimes imprescritíveis, contido no artigo , incisos XLII e XLIV, seria taxativo, de modo que a inclusão de outros crimes a ele encontraria óbice no artigo 60, § 4º do texto constitucional[4], em razão da natureza de garantia individual intrínseca ao instituto da prescrição.

    Contudo, com estes argumentos, apesar de respeitá-los, não podemos concordar.

    Mais do que isso, o Decreto-Legislativo 4.388 (Estatuto de Roma) permite concluir que seu status é de norma infraconstitucional e supralegal, estando abaixo da Constituição Federal e acima dos demais diplomas legais.

    Assim, por gozar de supralegalidade, a imprescritibilidade dos crimes descritos no Tratado de Roma acabaria por se sobrepor à regra insculpida no artigo 109 do Código Penal Brasileiro.

    Para João Irineu de Resende Miranda, a Constituição não apresenta nenhum dispositivo que qualifique o instituto da prescrição como garantia fundamental (e, inclusive, porque sequer expressa a alegada taxatividade do rol de crimes elencados nos incisos XLII e XLIX do artigo 5º):

    “(…) o que o legislador busca, nos incisos XLII e XLIX do artigo 5º, é resguardar valores como a igualdade jurídica de todos os brasileiros e o Estado Democrático de Direito, e não estabelecer o instituto penal da prescrição como garantia fundamental. Logo, não existe nenhum artigo constitucional proibindo a adoção de crimes imprescritíveis ou afirmando que a enumeração dos crimes imprescritíveis, presente no artigo 5º, incisos XLII e XLIX, é taxativa. Além disso, se considerarmos o fim objetivado pelo texto constitucional, veremos que existe concordância entre as duas normas. Se o crime de racismo é imprescritível para a Constituição, o crime de genocídio também o será pela similitude dos objetos jurídicos protegidos pelos tipos penais.”[5]

    Soma-se a isto o art. , inciso II, da CF, que determina que o Brasil deverá reger suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos.

    Assim, à luz do princípio da proibição da proteção deficiente, a incorporação do Estatuto de Roma com status supralegal se sustenta, inclusive, pelo fato de que a nossa legislação não proporcionava a efetiva proteção do bem jurídico.

    Configurava, de acordo com o Min. Gilmar Mendes, aquilo que o Direito Alemão denomina Untermassverbote:

    Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente”.

    Desta feita, entendemos, independentemente da discussão acerca do status infraconstitucional do Estatuto de Roma, que o reconhecimento da imprescritibilidade para o crime de tortura é inegável. Contudo, apenas para fatos praticados após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, ou seja, julho de 2002, conforme esclarece Christiano Jorge Santos:

    Primeiramente, vale saudar a adoção do princípio da legalidade e da irretroatividade de suas normas, corrigindo-se, portanto, os mais criticados dos aspectos das regras do Tribunal de Nuremberg (arts. 11 e 24). Vale dizer, somente para os crimes praticados a partir da entrada em vigor do Estatuto (1º de julho de 2002) valem as previsões penais, ou seja, as condutas tipificadas e também a regra da imprescritibilidade”[6].

    É possível concluir, portanto, que apenas os fatos praticados posteriormente à incorporação do Estatuto, em julho de 2002, são imprescritíveis, inclusive à luz do seu caráter de complementariedade e irretroatividade.

    Luis Gustavo Veneziani Sousa é Mestrando em Direito e Processo Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – 2015/2017; pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas em 2012; graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em 2010; professor assistente no curso de Processo Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo desde 2010; advogado criminalista associado ao escritório Kauffmann, Soares e Rebehy.

    Referências

    [1] STF, ADI 1480 MC, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997, DJ 18/05/2001.

    [2] STF, HC 88.240, Relator (a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 07/10/2008, DJ 23/10/2008.

    [3] BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 672.

    [4] “Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…)

    IV – os direitos e garantias individuais.”

    [5] O Tribunal Penal Internacional Frente ao Princípio da Soberania. Londrina: Eduel, 2011, P. 147.

    [6] SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 130.

    BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, volume 1. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 672.

    MIRANDA, João Irineu de Resende. O Tribunal Penal Internacional Frente ao Princípio da Soberania. Londrina: Eduel, 2011, P. 147.

    PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 14ª ed., ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013, p. 113.

    SANTOS, Christiano Jorge. Prescrição penal e imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. p. 130.

    __________ “O § 2º do art. da Constituição Federal. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, P. 25/26.

    __________ “Anotações sobre o Seminário Internacional: a implementação do Estatuto de Roma no direito interno e outras questões de direito penal internacional”, “in” Boletim IBCCRIM, Ano 12, nº 139/2-3, junho de 2004.

    STF, ADI 1480 MC, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/1997, DJ 18/05/2001.

    STF, HC 88.240, Relator (a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 07/10/2008, DJ 23/10/2008.

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