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18 de Abril de 2024
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    Inconstitucionalidade da revogação do decreto do DF contra discriminação por orientação sexual

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Foi amplamente divulgada a nefasta aprovação, pela Câmara Legislativa do Distrito Federal, do Projeto de Decreto Legislativo 300/2017, “que susta os efeitos do Decreto 38.293, de 23 de junho de 2017, que regulamenta a Lei 2.615/2000, que determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas no Distrito Federal, e dá outras providências”[1]. Decisão esta, da Câmara Legislativa, já criticada pelo Governador do Distrito Federal, que informou que recorrerá à Justiça[2], e repudiada pela OAB/DF[3].

    Cabe lembrar, inicialmente, que em maio de 2013, o então Governador do Distrito Federal havia regulamentado referida lei, pelo Decreto 34.350/2013, mas, no dia seguinte, revogou seu próprio decreto regulamentador[4], também por pressão da autoproclamada “Bancada Evangélica” (leia-se: Bancada Fundamentalista), a qual, agora, embora por diferentes integrantes, foi a responsável pela propositura e aprovação do Decreto Legislativo fruto do Projeto de Decreto Legislativo 300/2017.

    Os “fundamentos” utilizados pela Bancada Fundamentalista foram a proteção da família e da liberdade religiosa. Ocorre que, além de serem improcedentes esses argumentos de mérito[5], na medida em que a lei se limitava a, somente, punir a discriminação contra pessoas LGBTI, algo que, de forma alguma, prejudica nenhuma espécie de família e crença não-totalitária (ao contrário, ajuda a proteger as famílias homoafetivas e a liberdade religiosa destas)[6], fato é que referido decreto legislativo é formalmente inconstitucional, pois utilizado para hipótese distinta daquela do seu cabimento.

    Com efeito, o decreto legislativo tem uma função constitucional específica, bem delimitada, a saber, sustar (suspender) atos do Poder Executivo que usurpem competência do Poder Legislativo (art. 49, V, da CF/88). Ocorre que, longe de usurpar competência do Legislativo, o Decreto 38.923/2017 atendia, e com muito atraso, a imposição legal de regulamentação da Lei Distrital 2.615/2000. A qual, expressamente, demandava sua regulamentação pelo Poder Executivo do Distrito Federal (art. 5º).

    Logo, não foi atendido o pressuposto constitucional de validade do decreto legislativo, a saber, a usurpação, pelo Executivo, da competência do Legislativo. Pois não se pode seriamente dizer que um Decreto do Executivo que regulamenta uma lei[7], especialmente uma lei que conclama sua regulamentação pelo Executivo, teria ultrapassado as competências deste, para “invadir” a competência do Legislativo.

    Isso porque a Lei Distrital 2.615/2000, regulamentada pelo Decreto 38.923/2017, ora sustado, exigia sua regulamentação pelo Poder Executivo do Distrito Federal (art. 5º). Aliás, o Executivo Distrital encontrava-se em omissão ilegal, e mesmo inconstitucional, há 17 anos, justamente porque a lei exigia tal regulamentação, a qual, de maneira completamente arbitrária, não tinha sido efetivada. Tanto que o Ministério Público do Distrito Federal propôs, em janeiro de 2017, ação civil pública[8], para o fim de condenar o Governo do Distrito Federal a cumprir esse dever de regulamentação, oriundo de imposição legal – e, indiretamente, imposição constitucional, nos termos do art. , II, da CF/88, que impõe a todas e todos fazer aquilo que a lei impõe, já que, obviamente, o Executivo é obrigado a fazer o que a lei lhe impõe[9].

    Ação esta, aliás, cuja belíssima petição inicial, após relatar a série de cobranças e respostas evasivas, por vezes contraditórias, do Governo do Distrito Federal, após a revogação do decreto regulamentador de 2013[10], bem aduz que o parágrafo único do art. 5º da Lei Distrital 2.615/2000 já prevê sua aplicabilidade imediata, enquanto não aprovada a regulamentação, por intermédio de sua Secretaria de Governo[11]. Algo que, inexplicavelmente (leia-se, arbitrariamente), nunca foi efetivado pelo Executivo Distrital, em mais uma omissão ilegal e, ainda, inconstitucional (cf. art. , II, da CF/88), de sorte que, nesse contexto, afigura-se ainda mais urgente referida regulamentação – que, quando finalmente veio, não podia ter sido, simplesmente, extirpada do ordenamento jurídico, ainda mais por meio normativo inidôneo para tanto.

    Logo, temos aqui uma situação de inconstitucionalidade formal, na medida em que a Câmara Legislativa do Distrito Federal aprovou ato normativo fora de suas competências. Com efeito, utilizou-se de ato normativo (decreto legislativo) para além de seu âmbito constitucional de competência – na medida em que o decreto legislativo somente pode sustar atos do Executivo que usurpem a competência do Poder Legislativo, o que não é o caso, já que a própria Lei Distrital 2.615/2000 demandava pela regulamentação do Executivo Distrital, efetivada pelo Decreto 38.923/2017. Daí a flagrante inconstitucionalidade formal do Decreto Legislativo em questão.

    Por outro lado, temos, ainda, flagrante inconstitucionalidade material, na medida em que a Constituição Federal exige a aprovação de leis que punam discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI), e era somente isso que visava a regulamentação ora sustada pelo Decreto Legislativo em questão. A saber, coibir as discriminações por orientação sexual e por identidade de gênero – ou seja, punir as discriminações contra a população LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos). Os princípios da vedação do retrocesso social e da proibição da proteção insuficiente tornam inconstitucionais normas que pura e simplesmente revoguem (ou “sustem” a eficácia de) legislações antidiscriminatórias, pois isso gera o retorno à situação inconstitucional de proteção insuficiente, em claro retrocesso social, relativamente à legislação ora sustada.

    Felizmente, tanto o Governador do Distrito Federal, quanto PSOL[12], PPS[13] e PT[14], já informaram que ingressarão, no Judiciário, contra referido Decreto Legislativo. Mais uma vez, a cidadania das minorias sexuais e de gênero dependerá do Poder Judiciário – cujas decisões contramajoritárias fazem parte da democracia, ao imporem o respeito aos direitos fundamentais e humanos mesmo contra a vontade das maiorias, já que a própria maioria social impôs o respeito de tais direitos a todas e todos, ao positivá-los em nosso ordenamento jurídico.

    Lamentável que os Legislativos país afora menosprezem tanto as minorias sexuais e de gênero, seja por quase nunca agirem para protegê-las, seja por, neste caso, quererem derrubar parcas proteções legais que se conseguiu aprovar em seu favor. Esquecem-se que democracia, enquanto governo do povo, pelo povo e para o povo, também abarca minorias e grupos vulneráveis em geral, já que, obviamente, também fazem parte do povo. Enquanto essa consciência democrática não chega a nossos Legislativos nacional, estaduais e municipais, continuaremos dependendo da democrática função contramajoritária do Judiciário para termos nossa cidadania respeitada. O Judiciário como a última trincheira da cidadania, como bem lembra o Ministro Marco Aurélio, do STF. Pelo visto, ela é e continuará sendo a nossa única esperança, em tempos de recrudescimento do conservadorismo moral e do fundamentalismo religioso em nosso país.

    Paulo Iotti é Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.

    [1] Cf., v.g.: (acesso em 27.06.2017).

    [2] Cf. (acesso em 27.06.2017).

    [3] Cf. (acesso em 27.06.2017).

    [4] Cf. (último acesso em 27.06.2017).

    [5] Pois em nenhum momento se disse qual dispositivo da regulamentação e da lei regulamentada isto fariam, tratando-se de discurso genérico, despido de comprovação de sua pertinência, portanto.

    [6] Basta ler as situações consideradas como discriminatórias e, assim, puníveis, para concluir que em nada prejudicam a crença ou a família de ninguém: Art. 2º Para os efeitos desta Lei são atos de discriminação impor às pessoas, de qualquer orientação sexual, e em face desta, entre outras, as seguintes situações: I – constrangimento ou exposição ao ridículo; II – proibição de ingresso ou permanência; III – atendimento diferenciado ou selecionado; IV – preterimento quando da ocupação de instalações em hotéis ou similares, ou a imposição de pagamento de mais de uma unidade; V – preterimento em aluguel ou aquisição de imóveis para fins residenciais, comerciais ou de lazer; VI – preterimento em exame, seleção ou entrevista para ingresso em emprego; VII – preterimento em relação a outros consumidores que se encontrem em idêntica situação; VIII – adoção de atos de coação, ameaça ou violência”. Cf. (acesso em 27.06.2017).

    [7] Até porque a função basilar de um Decreto do Executivo é a regulamentação de uma lei.

    [8] Cf. (último acesso em 27.06.2017). Íntegra da ação disponível em: (acesso em 27.06.2017).

    [9] Obviamente, não desconheço a torrencial jurisprudência do STF, no sentido de não aceitar “inconstitucionalidades reflexas/indiretas”, no sentido de violação direta da lei, mas apenas indireta, da Constituição. Ocorre que deixar de aplicar uma lei quando a mesma tem incidência sobre o caso, sem explicar as razões de sua suposta não incidência, efetivamente viola o art. , II, da CF/88. De qualquer forma, sem entrar agora no mérito da cogniscibilidade de uma ação pelo citado fundamento, a própria menção a inconstitucionalidade reflexa/indireta não deixa de caracterizar hipótese de inconstitucionalidade, entenda ou não o STF ter competência para apreciá-la sob este fundamento. Ao passo que o fundamento da inconstitucionalidade do Decreto Legislativo que sustou a regulamentação da lei estadual anti-LGBTIfobia, como visto, é outro, a saber, a ausência de usurpação de competência do Legislativo pelo Executivo, pressuposto formal de validade constitucional do uso do decreto legislativo.

    [10] Vejamos trecho importante desta importante ação: Veja que o GDF está correto ao reconhecer que a não aplicação da Lei Distrital n. 2.615/2000 configura uma grave violação dos direitos fundamentais da população LGBTTI. Todavia, equivoca-se ao exigir prévio decreto regulamentador, quando a própria lei prevê expressamente que na sua ausência a legislação deve ser aplicada por órgão já designado, aplicando-se a legislação ordinária do processo administrativo. […] O próprio GDF [Governo do Distrito Federal] reconheceu com o Ofício n.1644/2014 da Consultoria Jurídica do Distrito Federal (fls. 131, DOC. 4) que a lei é autoexecutável independentemente de regulamentação, pois a disciplina referente ao procedimento administrativo em geral para aplicação de sanções está previsto na Lei Distrital n.2.8344/2001, que determina a aplicação da Lei Federal n.9.7844/1999. Com efeito, referida lei federal prevê os direitos e deveres dos administrados, regras de início do processo, competência, regras de impedimento e suspeição, comunicação dos atos, instrução, dever de decidir, motivação das decisões administrativas, anulação, revogação e convalidação dos atos, recursos, prazos, e inclusive a imposição de sanções e processo sancionatório. Referida lei rege todo o processo administrativo sancionatório na esfera federal, sendo plenamente aplicável no âmbito do Distrito Federal. Ainda que seja conveniente eventual regulamentação da Lei Distrital n. 2.615/2000, fato é que a Lei Federal n. 9.784/1999 é perfeitamente abrangente para permitir a imediata aplicação das sanções administrativas previstas na referida Lei Distrital, com a necessária proteção dos direitos do administrado, a quem se imputar a prática do ilícito administrativo. Se o GDF deseja que a lei seja aplicada por outra secretaria, ou tenha alguma regra processual distinta da prevista na Lei Federal n. 9.784/1999, então que edite oportunamente decreto regulamentando de forma diversa. O que não se permite é que o Poder Legislativo Distrital edite uma lei, destinada a proteger os direitos fundamentais de um grupo populacional minoritário, historicamente submetido a discriminações, a quem o Estado possui o dever de proteção, derivado de inúmeras normas constitucionais (CF/1988, art. , I e IV, e art. , caput e III) e o Poder Executivo permita que se passem 16 anos sem regulamentar a lei, ao pseudoargumento de que são necessários mais estudos, quando tão longo transcurso de tempo dá claramente a entender que, na realidade, não há vontade política de se aplicar a lei. Verifica-se que o GDF procura não aplicar uma lei pelo subterfúgio de não regulamentá-la, quando a própria lei estabelece que ela é autoexecutável. A omissão do Governo do Distrito Federal em aplicar a Lei Distrital n. 2.615/2000 configura, em verdade, uma perpetuação institucional dos preconceitos e discriminações contra a opulação LGBTTI” (pp. 09 e 23). Ação disponível em: (acesso em 27.06.17)

    [11] Art. 5º. O Poder Executivo do Distrito Federal regulamentará esta Lei no prazo de sessenta dias, observando obrigatoriamente os seguintes aspectos: I – mecanismo de recebimento de denúncias ou representações fundadas nesta Lei; II – formas de apuração das denúncias; III – garantia de ampla defesa aos infratores. Parágrafo Único. Até que seja definido pelo Poder Executivo o órgão ao qual competirá a aplicação dos preceitos instituídos por esta Lei, fica sob a responsabilidade da Secretaria de Governo do Distrito Federal a sua aplicação, na forma do que dispõe a Lei n. 236, de 20 de janeiro de 1992, com as alterações introduzidas pela Lei n. 408, de 13 de janeiro de 1993, e modificações posteriores” (grifos nossos).

    [12] Cf. página do Deputado Federal Jean Wyllys (PSOL/DF): (acesso em 27.06.2017).

    [13] Cf. (acesso em 27.06.2017).

    [14] Cf. (acesso em 27.06.2017).

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