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16 de Abril de 2024
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    Perspectivas do Estatuto da Pessoa com deficiência em face da experiência internacional

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    A recente promulgação da Lei 13.146 de 2015 instituiu o Estatuto da Pessoa com Deficiência texto que regulamenta a Convenção da ONU sobre direitos da pessoa com deficiência no país, alterando a redação de incisos dos artigos e do Código Civil em vigor, relativos aos institutos da incapacidade no ordenamento jurídico pátrio.

    O artigo 12 da Convenção declara que as pessoas com deficiência “gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”. Com efeito, a capacidade legal, de direito, é bem mais abrangente que a capacidade civil stricto sensu, sendo, portanto, a capacidade regra e a incapacidade exceção.

    A aplicação do dispositivo em consonância com a Convenção Internacional sobre direitos da pessoa com deficiência, da qual o Brasil é signatário, modificou a hermenêutica e interpretações doutrinárias e jurisprudenciais: temas como capacidade e interdição ganham novos contornos a ponto de existirem afirmações no sentido de extinção do processo de interdição, pois haveria suposta incompatibilidade não só com a legislação civil (arts. 1.767 e 1.783), mas também com a processual (arts. 747 e 763 do atual CPC).

    Naturalmente, Flávio Tartuce identifica duas vertentes surgidas com o advento do EPD: a primeira que condena as modificações, pois a dignidade de tais pessoas deveria ser resguardada por meio de sua proteção como vulneráveis (dignidade-vulnerabilidade), e a segunda – liderada por nomes como Pablo Stolze e Paulo Lôbo – , que aplaude a inovação pela tutela da dignidade-liberdade das pessoas com deficiência, evidenciada pelos objetos de sua inclusão.

    Até aqui, a incapacidade se apresenta em distintas formas de desafio ao liberalismo moderno, assentado na autonomia e no consentimento e tratando-se, portanto, de um problema abordado de diferentes modos em diferentes países. Nessa perspectiva, o entendimento tradicional de liberalismo erige uma barreira jurídica quase que intransponível, privando os incapazes do usufruto pleno de seus direitos humanos.

    Por essas razões, é necessário um novo entendimento do conceito de liberalismo social, inserindo a dignidade humana como princípio interpretativo do direito moderno, conjugando o procedimento interno com o aprendizado internacional.

    Os Estados Unidos possuem dispositivo semelhante ao Estatuto da Pessoa com Deficiência: o Americans with Disabilities Act. Dessarte, o enunciado normativo consiste, essencialmente, em diretrizes a serem observadas pelo poder público e pela sociedade civil com vistas à eliminação do preconceito e da discriminação dos “desabilitados”. Não constituem, portanto, enunciados enfáticos como na legislação brasileira, mas sim prescrições vagas a serem observadas e interpretadas diante do caso concreto, justamente em decorrência da organização formal e material que dispõe a Justiça americana, dando ampla margem ao juiz para a construção equitativa de uma retórica dos direitos humanos caso a caso.

    Outro aspecto positivo e constante nos estatutos estaduais americanos que versam sobre incapacidade consiste na obrigatoriedade de frequência em um curso gratuito para guardiões oferecido pelo governo. Entendemos como um elemento de elevado grau de importância, haja vista que prepara os guardiões para uma nova rotina e um novo estilo de vida, representando um mecanismo vital até mesmo para o processo de interdição brasileiro e o EPD, na sua missão de redução da discriminação e da promoção de uma interdição justa, participativa e justificada.

    Procedendo à dogmática alemã, temos a dignidade humana como força de princípio, sendo abordada sob duas perspectivas: uma social e outra médica. Na primeira, dignidade humana se trata de desenvolvimento pleno da personalidade, de proteção às individualidades, enquanto que na segunda, de um ponto de vista jurídico e pragmático, tem-se da necessidade de suporte adequado aos incapazes para que possam atingir objetivos, reconhecendo sua vulnerabilidade e habilidades limitadas.

    Partindo de uma visão essencialmente patrimonialista, os alemães consideram “capazes para contratar” os indivíduos de faixa etária compreendida dos sete anos em diante. Evidente que o caso concreto interpretado à luz do princípio da boa-fé objetiva parece, dessa forma, o critério mais justo para a preservação da segurança jurídica no âmbito das relações negociais entre particulares por oferecer um ponto de partida mais nítido e menos abstrato ao julgador, já que aos sete anos os indivíduos são considerados plenamente capazes, uma vez que possuem o discernimento necessário para realizarem negócios jurídicos de natureza mais simplória.

    É necessário ressaltar, por outro lado, que a hermenêutica exegética do BGB é consolidada pelo princípio da dignidade humana, de maneira que a falha do legislador ao relativizar a incapacidade para contratar não vem a comprometer a segurança jurídica nem tampouco desampara os incapazes. Não parece ser relevante do ponto de vista prático, portanto, atribuir um juízo axiológico positivo a um sistema e negativo a outro.

    A experiência dos institutos da representação interpretada pelo princípio da dignidade da pessoa humana na França tem raízes profundamente ligadas à política. As políticas de Estado da França tem como elemento basilar a “igualdade absoluta” (egalité absolute) quanto à garantia de integração de todos os cidadãos, de forma vertical e horizontal. Como resultado, as autoridades francesas colhem dados pouco conclusivas em matéria de etnicidade, religião e raça, por exemplo.

    Em tese, ocorre intensa flexibilização desse princípio e da Loi informatique et libertes (Act. 78-17) pelas cortes francesas e pelo Conseil d’État, mas na prática, esse ultrapassado sistema apenas fomentou a discriminação e desagregação de minorias sob o argumento da igualdade, ignorando os inúmeros óbices sociais e econômicos da sociedade francesa. Entretanto, talvez mais importante que isso seja a interpretação dada pelos tribunais franceses do princípio da dignidade humana. Alguns dos casos mais emblemáticos são dois julgados do Conseil d’État que ficaram conhecidos como o “casos do lançamento de anões”, Commune de Morsang-sur-Orge e Villle dd’Aix-en-Provence [1], falando-se ainda, em grande parte dos julgados, de “defesa dos melhores interesses”.

    Nada mais natural, dessa sorte, que tal projeção do já referido “novo entendimento de liberalismo social”, ao suprimir a autonomia da vontade em nome de um constrangimento de natureza pública, se insira na órbita da construção de um direito social e de seu pressuposto retórico-constitucional como um instrumento garantista. Daí sua aplicação direta à incapacidade no direito francês.

    Ao analisar a experiência internacional, temos que o procedimento de representação é relativamente homogêneo, sendo necessário legitimidade, manifestação de causa e minuciosa análise probatória para que seja instaurada a medida protetiva. Entretanto, o processo retórico que edifica um dos pressupostos fundamentais do direito liberal ocidental, a dignidade da pessoa humana, é interpretado a partir de diferentes óticas e assume facetas diferenciadas enquanto princípio modelador do direito moderno.

    Tomás Pires Acioli é estudante de Direito da Faculdade de Direito do Recife – UFPE. Monitor Bolsista (CNPq) da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito I. Membro Efetivo do grupo de pesquisa Direito e Persuasão (CNPq). Vencedor do prêmio Civics and Economics 2013 (North Carolina Board of Eduacation, USA) com o trabalho The Brazilian Riots and their effects in the US and the world.

    [1] Cons. d’État, 27 Octobre 1995. Commune de Morsang-sur-Orge, Rec. 1995.372 e Cons. d’État, Ville d’Aix-en-Provence, D. 1996.177

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