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20 de Abril de 2024
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    Quanto vale a dor indenizatória do trabalhador brasileiro?

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Isacio Aquino, cidadão argentino, tinha 29 anos de idade quando, estando a trabalhar sem condições mínimas de segurança em um teto de uma empresa, sofreu uma queda de dez metros. Do acidente resultaram lesão craniana, comprometimento parcial da visão e da audição, paralisia facial, danos de ordem estética, sequelas neurológicas e psicológicas, bem como a perda de 100% de sua capacidade de trabalho.

    Fábio José, cidadão brasileiro, tinha 25 anos de idade quando, estando a trabalhar sem condições mínimas de segurança em um andaime, sofreu uma queda de dez metros. O acidente ocasionou traumatismo craniano encefálico, paralisia facial e perda da funcionalidade de seus músculos, tornando-o inválido para qualquer tipo de trabalho bem como para atos banais da vida diária, tais como tomar banho e alimentar-se, ficando completamente dependente do auxílio permanente de terceiros.

    Isacio Aquino processou sua empregadora buscando a reparação integral dos danos materiais e morais por ele sofridos. Tinha, porém, um grave obstáculo jurídico à sua frente: o artigo 39, inciso primeiro, da Lei de Riscos do Trabalho da Argentina, estabelecia para situações assim uma reparação única e tarifada, a ser paga por uma companhia seguradora, excluindo expressamente a possibilidade de aplicação da regra geral do Código Civil e, com isso, exonerando o empregador de qualquer responsabilidade.

    O objetivo dessa limitação era supostamente minimizar os efeitos da “indústria de indenizações”, estabelecendo critérios que conferissem previsibilidade ao dever de reparação, ou, em outras palavras, o deixassem integralmente “quantificável”.[1]

    O caso de Isacio Aquino chegou à Suprema Corte Argentina no ano de 2004 e tornou-se uma referência para a jurisprudência da nossa nação vizinha. O acórdão, minucioso e largamente fundamentado, declarou a invalidade do preceito da Lei de Riscos, argumentando, em resumo, que o mesmo violava garantias fundamentais conferidas aos trabalhadores tanto pela Constituição quanto por tratados internacionais, na medida em que, de modo retrógrado e discriminatório, “coisificava” o cidadão trabalhador, que ficava reduzido a um mero fator de produção e concretamente impedido de uma reparação justa e integral dos danos sofridos em seu ambiente de labor.

    Fábio José, que era trabalhador terceirizado, também processou seu empregador (uma ME) e outras duas empresas. Teve mais “sorte” que Aquino, na medida em que não precisou travar uma luta jurídica contra limites indenizatórios legais. Porém, para aqueles que venham após a reforma trabalhista, a “sorte” promete ser outra.

    É que, dentre os diversos tópicos tratados, o projeto de Lei recente e açodadamente aprovado pela Câmara dos Deputados, sob a justificativa de propiciar “segurança jurídica” (artigos 223-A a 223-G), estipulou “tetos” para a indenização para o ali chamado “dano extrapatrimonial’, o qual abrangeria, assim, todo e qualquer tipo de danos não quantificáveis, tais como aqueles derivados de assédio moral, assédio sexual, tarefas abusivas, agressões físicas, jornadas excessivas, violação à intimidade, e, logicamente, todos os prejuízos de cunho pessoal decorrentes de acidentes de trabalho e/ou moléstias direta ou indiretamente vinculadas ao labor na condição de empregado.

    O projeto fixa parâmetros que deverão ser tomados em conta para a aferição do dano, que classifica em 4 diferentes níveis (leve, médio, grave e gravíssimo), ficando estabelecido o valor máximo da indenização em, respectivamente, 3, 5, 20 e 50 salários contratuais.

    Isso significa que, aconteça o que acontecer, seja a situação qual for, seja o empregador uma microempresa ou uma multinacional, o valor máximo que um trabalhador poderá obter, a título de indenização por dano moral, ou, como prefere o projeto, dano extrapatrimonial, será, sempre, da ordem de 50 salários contratuais.

    Assim – e para utilizar aqui os critérios quantificadores escolhidos pelo próprio projeto – se um trabalhador, que receba salário mínimo (R$ 937,00), sofrer uma lesão em sua saúde e integridade física, que gere um sofrimento imenso, impossível de ser superado, com reflexos pessoais e sociais superlativos, de caráter permanente, por força de condições de trabalho péssimas, com dolo ou culpa grave de empregador com capital social bilionário, que em nenhum momento buscou reparar ou minimizar a ofensa, que não fora perdoada pelo empregado, cuja imagem tenha ainda sido amplamente explorada por conta do infortúnio, tudo isso levado em conta, o valor máximo da indenização a arbitrar será de R$ 46.850,00 – que considerado o contexto descrito, não será então uma compensação, mas sim uma humilhação adicional a ser suportada pelo trabalhador. E não deixa de ser sintomático que, no âmbito das relações contratuais do direito brasileiro, somente no contrato de trabalho existirá essa esdrúxula imposição.[2]

    Se querer tarifar a dor ou o sofrimento moral já é uma impropriedade, pior ainda é fazê-lo tomando por base, exclusiva e necessariamente, o salário contratual – como se a vida, a integridade física ou a honra de um operário pudesse valer menos que a de um executivo – e mais, virtualmente desconsiderando, por conta do teto imposto, a capacidade econômica do devedor, coisa que irá seguramente estimular as empresas a investir menos em segurança e planos de prevenção, quando o custo desse investimento seja estimado maior ou superior que o pagamento das eventuais indenizações decorrentes de acidentes ou enfermidades ambientais.

    Alguém poderia quiçá argumentar que se estaria aqui diante de uma opção ideológica ancorada na teoria da “análise econômica do direito”. Discordo: para mim, isso não tem nada a ver com possíveis elucubrações jurídico-economicistas. Fora este o caso, então, quando menos, o projeto teria escolhido para base de cálculo o “limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”,[3] como fez em 06 (seis) outras situações (artigos 444, parágrafo único, 461, parágrafo 6º, 507-A, 789, caput, 790, parágrafo 3º, e 793-C, parágrafo segundo). Fica claro, assim, que a escolha do salário contratual para esse efeito não foi motivada por parâmetros jurídicos, sociais ou econômicos. Foi pura e genuína maldade mesmo.[4]

    Enfim, precisamente como ocorrera com o inciso I do artigo 39 da Lei de Riscos do Trabalho da Argentina, os dispositivos indicados transformam a pessoa humana do empregado em uma verdadeira mercadoria que já está de antemão precificada. E, justamente porque o fazem, eles colidem frontalmente com o artigo , incisos V e X da Constituição Brasileira, que – como já restou expressamente decidido pelo Supremo Tribunal Federal, quando do exame de preceitos similares constantes da Lei de Imprensa (RE 348.827-A)– por garantirem uma ampla indenização ao dano moral, não podem sofrer prévia tarifação através da legislação ordinária.[5] Não bastasse, eles afrontam igualmente o inciso XXXII do artigo da CRFB, na medida em que estabelecem uma óbvia distinção entre trabalhos técnicos ou intelectuais (que são notoriamente os mais bem remunerados) e os trabalhos manuais.

    Isto significa, como corolário, que o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, no ponto em exame, como de resto em vários outros, irá criar uma ilusão de previsibilidade que será inevitável e gradualmente desconstruída pelos Tribunais do Trabalho. Realmente: por conservadores ou positivistas que estes sejam, cedo ou tarde todos irão reconhecer a necessidade irrefragável de compensar, de modo minimamente proporcional, a multidão de trabalhadores coxos, surdos, cegos, deprimidos, dementados, deformados, mutilados, aleijados, paraplégicos, tetraplégicos, além das famílias daqueles que desgraçadamente tenham falecido, que venham bater às suas portas em busca de justiça. De sorte que, se já não fossem suficientes o sofrimento e a humilhação que essas normas, caso aprovadas, irão gerar, com elas não se irá ademais obter segurança jurídica alguma.

    Mas isso pode ser mudado. O projeto ainda irá ao Senado. A sociedade brasileira, e especialmente, a sua classe trabalhadora, espera que aquela Casa cumpra o seu papel institucional,[6] extirpando essa e outras anomalias lamentavelmente chanceladas pela Câmara dos Deputados.

    Em tempo: a indenização “extrapatrimonial” deferida pela Justiça do Trabalho a Fábio José foi de R$ 160.000,00. Caso fosse aplicado o critério do projeto, ela seria de, no máximo, R$ 64.000,00.

    Manoel Carlos Toledo Filho é Desembargador do Trabalho. Diretor da Escola Judicial do TRT-15. Mestre e Doutor em Direito do Trabalho pela USP.

    [1] A complexidade do tema da limitação da reparação pecuniária para o dano pessoal – como se o sofrimento subjetivo de todos e de cada um pudesse ser objeto de mensuração geral a priori – é um tema recorrente nos EUA, por conta das discussões envolvendo a chamada “Tort Reform”.

    [2] Realmente: nem mesmo a controvertida tarifação prévia constante da Convenção de Varsóvia, em sua versão modernizada, que se reporta à dimensão específica do transporte aéreo internacional, chegou ao extremo do projeto: lá, havendo negligência da companhia aérea transportadora, não incidirá qualquer limite ao valor da indenização em caso de morte ou lesão corporal ao passageiro (vide Decreto 5910/2006, art. 21.2)

    [3] A partir de 01 de janeiro de 2017, o teto previdenciário passou a ser de R$ 5.531,31 (Portaria 08/2017, de 13/01/2017, do Ministério da Fazenda).

    [4] Para os defensores do projeto, não bastou assim colocar um preço na pessoa do trabalhador. Tinha ainda de ser um preço baixo.

    [5] Coincidência ou não, a decisao do STF é de 2004, mesmo ano da decisão do caso Aquino na Argentina.

    [6] Desenha-se, nesse momento, a possibilidade de o Senado aprovar o projeto com “sugestões” de vetos. Se assim for, aquela Casa estará se transformando em uma sorte de “anexo” da Presidência da República. Ou seja: estará passando um aval de sua própria incompetência.

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