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19 de Abril de 2024
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    O Direito da família, afeto e as consequências de sua interferência no ordenamento jurídico

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Família! Família!

    Cachorro, gato, galinha
    Família! Família!
    Vive junto todo dia
    Nunca perde essa mania…


    (“Família”, Titãs)

    O Direito de Família no Brasil foi profundamente alterado pela Constituição da República de 1988, muito embora as situações de mudança ainda estejam se tornando conhecidas, como um prisma a se abrir ao se aprofundar o debate sobre as relações sociais contemporâneas.

    A primeiro ordenamento civil que vigorou no país foram as Ordenações Filipinas, com vigência desde o período colonial até a República. Desnecessário expressamente destacar a forma familiar reconhecida nesse período: patriarcal e com a subjugação dos demais membros da família – esposa e filhos – ao poder paterno.

    Com a proclamação da república, Antonio Coelho Rodrigues[1] recebeu, em 12 de julho de 1890, a tarefa de elaborar o projeto do Código Civil brasileiro[2], a qual restou infrutífera pelos conflitos políticos existentes à época. Frustrada essa tentativa, o Ministro da Justiça Epitácio Pessoa nomeou Clóvis Beviláqua para nova empreitada, em 1898, cujo resultado é de amplo conhecimento: a aprovação, em 1916, do Código Civil brasileiro.

    Apesar dos séculos de distância entre as Ordenações Filipinas e o Código de 1916, a sociedade ainda era parecida, o que refletiu no direito de família. De uma forma geral, o Código mantinha o homem como elemento central da legislação, qualificando-o através da figura do contratante, do proprietário, do pai de família e do testador. Especificamente no Direito de Família, vigia um intenso conservadorismo e caráter patriarcal da família, mantendo-se a sociedade conjugal sob o poder do marido e relegando a mulher a uma mera função colaborativa (vide art. 233 do Código Civil de 1916)[3].

    Alguns avanços no Direito de Família ocorreram até 1988, como por exemplo a ampliação das possibilidades de reconhecimento de filhos fora do casamento e a edição da Lei nº 6.515/1977 que permitiu o divórcio no país, em um sinal positivo da evolução social.

    Fora do campo do Direito de Família, mas com reflexos nele, já se reconhecia em alguma medida as uniões de fato, como, por exemplo na atribuição do direito a receber indenizar à concubina por acidente com resultado morte do concubino em estradas de ferro (Decreto nº 2.681/1912), o reconhecimento de dependência econômica da concubina para fins previdenciários e tributários e a possibilidade de inclusão do sobrenome do concubino no nome da concubina – que ou o que vive maritalmente (com alguém) sem estar casado (com esse alguém), conforme o art. 57 da Lei nº 6.015/1973.

    Todo esse cenário alterou-se a partir de 1988. Ao estabelecer que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” e prever expressamente outros modelos familiares dignos de proteção[4], a Constituição criou uma “cláusula geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade”, uma vez que “o objeto da norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas humanas que a integram”[5]. Estava, portanto, reconhecido como principal valor do direito de família o afeto.

    A família se desvincularia, portanto, de uma tutela formal, a partir do vínculo matrimonial, para converter-se em local de promoção do afeto e da dignidade de seus membros. E em toda família há afeto.

    São consequências dessa mudança de enfoque e a ascensão do afeto no meio familiar a suspensão dos efeitos do regime de bens quando há separação de fato, o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar[6], abandono moral (ou afetivo)[7], a eficácia da posse de estado de filho, a adoção inclusive por irmãos[8] etc.

    No Código Civil de 2002, a normatização do afeto foi veiculada pelo art. 1.593, ao reconhecer a possibilidade de parentesco de outra origem, no que se inclui a afetividade.

    Mas, afinal, o que seria afeto? Afeto é um valor metajurídico que representa um sentimento de afinidade de uma pessoa em relação ao outra. Seu conteúdo essencialmente moral é incompatível com a normatividade inerente ao Direito. Não há como obrigar alguém a ter afeto a outra pessoa. Mas como valor, o afeto penetra as relações sociais para se requalificar no plano jurídico pelo princípio da afetividade. Como esclarece Ana Carolina Brochado Teixeira:

    (…) o princípio da afetividade funciona como um vetor que reestrutura a tutela jurídica do direito de família, que passa a se ocupar mais da qualidade dos laços travados nos núcleos familiares do que com a forma através da qual as entidades familiares se apresentam em sociedade, superando o formalismo das codificações liberais e o patrimonialismo que delas herdamos. Portanto, o princípio da afetividade não comanda o dever de afeto, porquanto se trata de conduta de foro íntimo, incoercível pelo Direito. O grande desafio é que, por mais que se queira negar, o afeto consiste em um elemento anímico ou psicológico. E, sob certo aspecto, que urge ser pontuado, é um fator metajurídico que não pode ser alcançado pelas normas das ciências jurídicas, mas apenas pela normatividade da Moral.

    O que queremos esclarecer, com essa basilar, mas necessária distinção entre a normatividade da Moral e do Direito, é que o afeto só se torna juridicamente relevante quando externado pelos membros das entidades familiares através de condutas objetivas que marcam a convivência familiar, e, por isso, condicionam comportamentos e expectativas recíprocas e, consequentemente, o desenvolvimento da personalidade dos integrantes da família.[9]

    O afeto torna-se norma jurídica, assim, a partir da reiteração de condutas de cuidado, ou seja, atos objetivamente considerados que demonstram o vínculo sentimental e a vontade de querer o melhor para o outro.

    No debate sobre afeto, um tema tem conquistado especial destaque na sociedade, na doutrina e na jurisprudência: a multiparentalidade, que possui dois conceitos: um amplo, que consiste na possibilidade de se ter duas mães ou dois pais. Nesse significado, ingressa a temática da parentalidade por casais de mesmo sexo, o que já foi enfrentado e pacificado na jurisprudência de forma positiva, pois quando se discute direitos de crianças e adolescentes o que direciona a solução do caso é o princípio do melhor interesse[10]. De outro lado, multiparentalidade em sentido estrito é a possibilidade de se ter filiação reconhecida em relação a três ou mais pessoas, fugindo-se a tradicional atribuição a um pai e uma mãe.

    Novamente nos valemos do texto de Ana Carolina:

    (…) leciona Maria Christina de Almeida, que defende ser a paternidade e a maternidade muito mais uma função do que uma ligação específica ao ascendente biológico. Por isso, o reconhecimento de situações fáticas representadas por núcleos familiares recompostos traz novos elementos sobre a concepção de paternidade, compreendendo, a partir deles, o papel social do pai e da mãe, desvinculando-se do fator meramente biológico e ampliando seu conceito, realçando sua função biopsicossocial.

    Uma vez desvinculada a função parental da ascendência biológica, sendo a paternidade e a maternidade atividades realizadas em prol do desenvolvimento dos filhos menores, a realidade social brasileira tem mostrado que essas funções podem ser exercidas por “mais de um pai“ ou “mais de uma mãe” simultaneamente, sobretudo, no que toca à dinâmica e ao funcionamento das relações interpessoais travadas em núcleos familiares recompostos, pois é inevitável a participação do pai/mãe afim nas tarefas inerentes ao poder parental, pois ele convive diariamente com a criança; participa dos conflitos familiares, dos momentos de alegria e de comemoração. Também simboliza a autoridade que, geralmente, é compartilhada com o genitor biológico. Por ser integrante da família, sua opinião é relevante, pois a família é funcionalizada à promoção da dignidade de seus membros.[11]

    Se a Constituição da República de 1988 faz ascender o afeto como elemento norteador das relações familiares e, simultaneamente, quebra com as antigas estruturas patriarcais e hierarquizadas da família, não é outra a conclusão senão a possibilidade de se ter mais de uma mãe e/ou mais de um pai na certidão.

    Esse foi o caminho percorrido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar o Recurso Extraordinário (nº 898.060) e reconhecer que o “princípio da paternidade responsável impõe que, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação”.

    Em seu voto[12], destacou o relator, Ministro Luiz Fux, que a “omissão do legislador brasileiro quanto ao reconhecimento dos mais diversos arranjos familiares não pode servir de escusa para a negativa de proteção a situações de pluriparentalidade. É imperioso o reconhecimento, para todos os fins de direito, dos vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos”.

    Estamos diante, portanto, do reconhecimento jurídico de que não admitimos mais amores vazios e relações formais e sem sentido. O afeto e as consequências de sua interferência no ordenamento jurídico é caminho sem possibilidade de retorno que a sociedade brasileira adotou. O desafio é, agora, o de desvendar até onde ele nos leva.

    Elisa Costa Cruz éDefensora Pública do Estado do Rio de Janeiro, Doutoranda e Mestre em Direito Civil pela UERJ, Vice coordenadora da Comissão da Infância da ANADEP.

    [1] Sobre Coelho Rodrigues, veja-se o link: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/RODRIGUES,%20Ant%C3%B4nio%20Coelho.pdf e https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/507405/001017535.pdf?sequence=1, acesso em 11 de maio de 2017.

    [2] O projeto por ele apresentado está disponível para consulta online no site do Senado Federal: http://www2.senado.leg.br/bdsf/browse?type=author&value=Rodrigues,%20Antonio%20Co%C3%AAlho,%201846-1912, acesso em 11 de maio de 2017.

    [3] GOMES, Orlando. Raízes históricas do Código Civil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 18-19.

    [4] Art. 226 da Constituição da República.

    [5] LOBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. Disponível em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/9408-9407-1-PB.pdf, acesso em 01.05.2017.

    [6] Vide julgamento da ADI 4277 e ADPF 132 no STF.

    [7] Vide Recurso Especial n. 1.159.242-SP, publicado em 24.04.2012.

    [8] Vide Recurso Especial n. 1.217.415-RS, publicado em 19.06.2012.

    [9] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. A multiparentalidade como nova estrutura de parentesco na contemporaneidade. Revista brasileira de direito civil, vol. 4, ab./um. 2015, p. 18.

    [10] Vide Recurso Especial n. 1.540.814-PR, com acórdão publicado em 25.08.2015

    [11] TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Op. Cit, p. 25.

    [12] Acórdão pendente de publicação, conforme consulta ao site do STF em 11 de maio de 2017.

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