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19 de Abril de 2024
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    O perigo das “videoaudiências” e da virtualização do processo penal

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    O processo penal brasileiro enfrenta sério e inegável problema de desatualização. Muito se deve, é evidente, ao atraso do Código de Processo Penal, uma legislação de 1941, diversas vezes reformada e transformada em verdadeira “colcha de retalhos”, cujos títulos e capítulos não fazem sentido quando combinados. A ideia de um código que reunisse todos os procedimentos, uniformizando legislações esparsas e desconexas é uma imposição garantidora de uma segurança jurídica mínima às partes processuais. A ausência de regramentos que sigam uma lógica única e, portanto, sistêmica, dá margem a ampla discricionariedade por parte do aplicador da norma, ou seja, o juiz de direito.

    A ausência de controle sobre os poderes conferidos aos magistrados na condução, tanto das medidas preparatórias, durante a investigação preliminar, quanto do curso da instrução criminal, é um dos maiores problemas do processo penal no âmbito de um Estado sedizente democrático.

    A intenção de reforma global do CPP enfrenta o dilema dos conflitos de posições antagônicas. Por um lado, defensores acreditam que termos vagos e incentivo ao impulsionamento excessivo, com relativização de garantias, prejudica o réu; por outro, acusadores afirmam que os projetos são demasiadamente brandos, ao limitar os recursos para a acusação e beneficiar o acusado ante a ineficiência estatal. Contudo, ainda que essa bipolarização reducionista tenha um propósito meramente exemplificativo, ambos os lados concordam com a necessidade de uma completa reformulação.

    É certo que vivemos um dos piores cenários políticos da história do país, assolado não só pela crise financeira, mas especialmente pela crise institucional, isto é, descrença nas instituições, especialmente no Poder Legislativo Federal (responsável constitucional pela elaboração de lei em matéria processual, conforme art. 21, I, da CF), corporificado pelos congressistas. Trata-se de uma crise de credibilidade institucional, que se espraia por toda Administração Pública. Um momento indefinido e transitório como este dá azo ao surgimento de propostas radicais, como as chamadas “10 medidas contra a corrupção”, dentre outras, de cunho nitidamente eleitoreiro.

    Também se pode constatar a proliferação de propostas que visam a driblar o processo legislativo de elaboração da lei para implementar “novidades”, sem previsão legal clara e objetiva, que é o que efetivamente delimita a controla a aplicação de um novo instituto. Isso vêm ocorrendo com as audiências de custódia em todo Brasil, em função da ausência de regramento legal. Ao passo que se reconhece o direito subjetivo indiscutível do indivíduo preso de ser prontamente apresentado a um juiz, utiliza-se o argumento da ausência de previsão legal expressa para, quando o ato não ocorre, simplesmente desconsiderar a existência de alguma nulidade na própria prisão.

    Bem, isso ocorre com outras situações não previstas legalmente de forma objetiva. Veja-se o caso do chamado “depoimento especial”, originalmente conhecido como “depoimento sem dano”, que consiste em colher o depoimento judicial de crianças e adolescentes supostamente vítimas de crimes sexuais por meio de um procedimento “diferenciado”. A criança ou o adolescente fica em uma sala reservada, sendo o depoimento colhido por um técnico (psicólogo ou assistente social), que faz as perguntas de forma indireta, por meio de uma conversa em tom mais informal e gradual, à medida que vai se estabelecendo uma relação de confiança entre ele e a vítima. O juiz, o Ministério Público, o réu e o defensor acompanham, em tempo real, o depoimento em outra sala, por meio de um sistema audiovisual que está gravando a conversa do técnico com a vítima. A prática não tem amparo legal, mas tem sido aceita pelo Superior Tribunal de Justiça, “em respeito à condição especial do menor” (RHC 45.589-MT). O argumento dos casos “especiais” tem se repetido em diversas esferas, basta analisarmos as delações premiadas e seus benefícios ilegais e as medidas cautelares alternativas à prisão criadas pelos juízes para situações específicas (poder geral de cautela do juiz criminal). São inúmeros os problemas do processo penal, evidenciando ainda mais que o problema pode ser a inexistência de uma legislação unificada e atualizada, com “força normativa” real.

    Uma situação que ganha cada vez mais impulso neste momento de reformas pró aceleração processual (que não são de todo desarrazoadas, considerando que a Constituição garante a razoável duração do processo e seu descumprimento gera arbitrariedade ou impunidade), é a da implantação das chamadas “videoaudiências”.

    No Rio Grande do Sul, a Corregedoria-Geral da Justiça do TJRS em breve tornará esses atos obrigatórios. Na Justiça Federal, a prática está disseminada há bastante tempo, inclusive com a oitiva de pessoas em outros países, com bastante flexibilidade inclusive para depor de suas próprias residências.

    Ocorre que, em 2009, quando a lei nº 11.900 incluiu diversos dispositivos no CPP, prevendo interrogatório por videoconferência (art. 185 e seguintes), determinou que o recurso a este sistema se daria de forma excepcional e por decisão fundamentada, “desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades:

    A regra geral era que o interrogatório seria feito presencialmente, em sala própria, no estabelecimento em que o preso estivesse recolhido. Somente em casos muito específicos a videoconferência seria admissível, pois um dos pressupostos da lei é de que essa modalidade de audiência diminui as garantias do acusado. Pois bem. O que foi originalmente concebido para ser exceção está em vias de ser tornar a regra.

    Nenhum juiz interroga o réu no presídio. Já é alto sacrifício obrigar o juiz a ir ao presídio realizar uma audiência de custódia, que já foi pensado para ser um ato célere. Quem dirá realizar o interrogatório, momento do exercício pleno da autodefesa, que não pode ser restringido sob nenhuma hipótese, ou seja, momento de o réu falar e dar sua versão pessoal.

    O principal objetivo de transformar a videoconferência na regra geral das audiências criminais é evitar o deslocamento dos presos e realizar seus interrogatórios de dentro das casas prisionais onde se encontram recolhidos e, de outro lado, evitar o deslocamento das testemunhas e a expedição de cartas precatórias para ouvi-las nos locais em que residem. Ou seja, o objetivo é exterminar com a pessoalidade do processo. O réu preso conhecerá o seu julgador apenas por meio de uma televisão e o magistrado julgará sem nenhuma espécie de contato com aquele que está do outro lado da transmissão. É possível que o jurisdicionado nunca ocupe a mesma sala que aquele que vai lhe julgar e pode condená-lo a passar muitos anos numa penitenciária qualquer. É possível ainda que nunca veja aqueles que testemunharam contra si.

    O caráter humano do processo é reduzido a zero. O fato de ver a imagem da pessoa também não significa nada, pois não é possível perceber a sua presença física. Em outras palavras, o réu passa efetivamente a ocupar o papel que muitos querem que ele tenha, o de mero objeto, uma coisa, sem nome, sem expressão facial, sem qualquer sentimento. Isso possibilita que o juiz também possa ser uma máquina. Aliás, muito mais eficaz e muito menor a chance de erro que máquinas façam cálculos de probabilidades de acordo com o depoimento de testemunhas, as provas juntadas e a versão defensiva apresentada e chegue a um algoritmo aritmético que, a partir de um certo patamar, represente condenação.

    A tarefa de calcular a pena, que hoje já é mecanizada, já sairia automaticamente, de acordo com informações objetivas coletadas nos autos. É uma fórmula onde basta preencher os campos corretamente. Não espanta que existam decisões judiciais, inclusive acerca da própria liberdade, onde simplesmente o juiz marca o campo que representa qual o possível fundamento legal da prisão e manda prender. Afinal, não é uma pessoa sendo presa, é um objeto, o criminoso. Nem características físicas ele tem mais, como sustentava a escola lombrosiana, porque hoje o processo é virtual, precisamente porque acompanha as relações humanas, que também se tornam cada vez mais virtuais.

    O fato de o réu-objeto estar sentado em outra sala, a sabe-se lá quantos quilômetros de distância do local da audiência onde decidem sobre sua liberdade, maior direito de um ser humano, parece não afetar de nenhuma forma aqueles que creem que isso é uma medida puramente econômica (processual e administrativa). O réu não só não pode ver ou ouvir diretamente as testemunhas que depõem contra si ou a seu favor, como não pode comunicar-se durante o ato com seu advogado, passando ao mesmo alguma informação relevante, que só o representante tem a capacidade de falar. O TJRS, no entanto, exalta essa prática:

    As ditas “vantagens” do sistema de videoconferências deixam totalmente claros os objetivos por trás do mesmo:

    Chegamos a um ponto no Brasil em que a falta de combustível é desculpa para desrespeitar garantias constitucionais. O problema é crítico. As violações de direitos humanos são maciças, sobretudo no sistema carcerário (“estado de coisas inconstitucional”). Mas o Estado é responsável por aquele que está sob sua custódia. O STF recentemente reconheceu essa situação ao determinar que é devida indenização a presos submetidos a situações degradantes (RE 580252):

    Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento“.

    Certamente a chamada “videoaudiência” tem potencial de auxiliar na celeridade do processo. Porém, ao custo de retirar a possibilidade de o juiz tomar contato direto com a prova testemunhal, que hoje é a principal no processo penal brasileiro, infelizmente, já que comprovadamente a mais falível. Ainda engatinhamos na produção de provas técnicas adequadas, que isoladamente podem resolver determinados casos. O réu não pode falar com seu defensor. Teoricamente pode se entrevistar com o mesmo antes da audiência, porém se os locais são distintos como realmente possibilitar esse encontro imediatamente anterior à solenidade? Basta uma conversa telefônica em canal reservado, como aponta o art. 185, § 5º do CPP? Em tempos onde até as conversas dentro das celas e dos parlatórios estão sendo monitoradas, como garantir a privacidade da conversa?

    Quem milita na área criminal sabe da imprescindível presença do defensor ao lado do acusado. Porém, ele será obrigado a estar na chamada “sala ativa”, onde a audiência está sendo realizada, e não na “sala passiva”, aquela onde o maior interessado no processo assiste a tudo, como se assistisse a um filme de suspense ou de terror, no qual pode ser surpreendido a qualquer instante.

    O problema é que, diferente dos filmes, aquelas imagens que aparecerão no monitor terão implicações no mundo real. Pessoas serão absolvidas (talvez equivocadamente) ou condenadas desta forma. Como já ocorrem julgamentos totalmente virtuais, onde cada um dos julgadores está numa localidade, e todos apenas formalizam a decisão numa sessão, mais adiante podemos pensar em júris virtuais também, com o jurado encerrado dentro de uma “sala passiva”, muito mais segura e isolada. Em época de “juízes sem rosto” (art. da Lei 12.694/2012), os “juízes sem corpo” são cada vez mais uma realidade.

    O juiz se torna um avatar num mundo virtual. O defensor defende e o promotor acusa a representação de alguém, uma imagem do que pode vir a ser aquele indivíduo, que presume-se existir do “outro lado”. Mas é uma existência que não é percebida pelos sentidos daqueles que operam o direito (magistrado e partes). Então, existe um distanciamento total do sistema de “justiça”. Até a preocupação em que o sujeito esteja compreendendo o ato é reduzida a uma mera formalidade.

    Importante ressalvar, por fim, que não se pode confundir o que chamamos aqui de “virtualização do processo penal” com sua “informatização”, que é absolutamente salutar e indispensável aos dias atuais, onde não mais se justifica ter volumes e volumes de documentos físicos, causando toda espécie de contratempo. A virtualização é a substituição dos atos presenciais, do necessário encontro físico das partes, da possibilidade de o acusado ver o acusador, falar com seu defensor e defender-se perante o juiz que o julgará (identidade física do juiz). A informatização é possibilidade de inserir mecanismos tecnológicos, filmar audiências, digitalizar documentos, encaminhar ofícios e informações por sistemas conectados à internet, enfim, todo tipo de benefícios que a informática (conjunto das ciências relacionadas ao armazenamento, transmissão e processamento de informações em meios digitais) pode colaborar para facilitar o andamento processual e auxiliar os atores processuais no manejo dos autos. Isso sim é algo a se buscar sempre o aprimoramento.

    Todavia, o núcleo do processo, a pessoalidade, continuará insubstituível, porque está ligado a sua própria gênese, como instrumento de contenção do poder estatal de intervenção na esfera mais íntima do indivíduo. Só terá legitimidade para penetrar neste campo, que é liberdade, um sistema que respeite um mínimo de garantias fundamentais e que valha para todos, indistintamente. A virtualização representa o perigo de perda do caráter humanístico e sensitivo do processo penal, que deixará de lidar diretamente com as pessoas e passará a simplesmente manejar equipamentos. Não há identidade física de nenhum dos atores processuais, que acabam se tornando dispensáveis e substituíveis.

    Carlo Velho Masi é Advogado, Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS, especialista em Direito Penal e Política Criminal: Sistema Constitucional e Direitos Humanos pela UFRGS, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal), especialista em Ciências Penais pela PUC-RS.

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