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20 de Abril de 2024
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    O “Golpe de Estado de Direito”

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    E se o Estado Democrático estivesse sob ameaça, em todos os países ocidentais, de se transformar em “Estado de Direito”? A questão, que nos parece um contrassenso, pois usualmente fazemos coincidir ambos os conceitos, foi levantada num colóquio organizado em 2004, na França, pelo Centro De Estudos Normandos sobre a Teoria e a Regulação do Estado.

    Quem a levantou foi Giles Lebreton, professor de direito público na Université du Havre. Seu argumento era límpido: o Estado de Direito é um Estado caracterizado por uma submissão do poder político ao direito juridicionalmente sancionado, tendo por fim conferir ao indivíduo na proteção contra os arbítrios estatais. Porém, este Estado de Direito é também aquele que submete a política ao Direito, fazendo com este, por meio de seus juízes e seu tribunal constitucional (no caso francês, o conselho constitucional), prevaleça sobre aquela. Assim, o juiz, até então garante dos direitos fundamentais da pessoa humana no chamado Estado Republicano de matriz revolucionária, reverte a relação de autoridade em relação ao legislador. Se este era considerado o representante do interesse geral, com o advento desse novo Estado Regulador, ou Administrado (por diversas razões, não só adornianas), agora é o juiz que é o representante. Um representante que não representa efetivamente interesse geral algum. Apenas seu próprio senso moral subjetivo.

    Eis porque surge o conceito de “Golpe de Estado de Direito”. Quem já percorreu a história da “razão de estado” e o pensamento político moderno e contemporâneo, sabe que o conceito de “Golpe de Estado” pode assumir feições diversas com o tempo. Este foi o assunto do colóquio já citado “Le Coup d’État…”. De Naudé à Malaparte, o conceito se modificou em muito, mas não é nosso interesse discutí-lo aqui. Faremos no momento oportuno em outro artigo. O que nos importa é que podemos definir um “Golpe de Estado” como Giles Lebreton o faz: “uma ação de força executada por um indivíduo ou por um grupo restrito de pessoas, que consiste a recorrer à violência ou a vias jurídicas insólitas tendo em vista defender ou reverter o regime político estabelecido (p. 324)”.

    Uma especificação em relação a este conceito apareceu num artigo de Olivier Cayla, em 1998, na revista Le Débat. Neste artigo, o autor tratava de discutir o chamado “Arrêt Nicolo”. Neste, o conselho de Estado havia reconhecido a competência do juiz administrativo para afastar as leis contrárias aos tratados, mesmo que estas lhes fossem superiores. Se na aparência se tratava de um estrito respeito ao artigo 55 da Constituição Francesa, na realidade era, segundo Cayla, uma ação de força que arrogava aos juízes uma competência que lhe era expressamente conferida nem pela constituição, nem mesmo pela decisão do Conselho Constitucional. Por isso, ele trazia uma particularização do conceito de “Golpe de Estado: O “Golpe de Estado de Direito”, que seria “uma ação de força executada por um grupo restrito de pessoas, consistindo a recorrer a vias jurídicas insólitas em vista de defender a hierarquia das normas, garantia do regime político estabelecido, mas na realidade visando turbar este regime”.

    Pode nos parecer estranho, mas a ideia de que uma jurisdição possa cometer golpes de Estado não é nova na França. Como Michel Clapié escreveu, no mesmo Colóquio, o Golpe de Estado se define sempre como uma ruptura com a ordem estabelecida, ruptura que produz uma mudança de natureza jurídico-constitucional que modifica a ordem institucional. Não seria isto o que faz uma corte constitucional quando, por ser uma Corte suprema, estatui sem recursos ou apelo? Não é isto o que ela faz quando tem o privilégio da última palavra? Eis aqui o problema: esta jurisdição faz sua vontade prevalecer sobre aquela da vontade popular que a criou, sob a falsa justificativa, no caso francês, de também eles, os juízes, serem representantes, não do povo, mas da nação, dos pais fundadores, ou da própria vontade constituinte. Parece que voltamos a cair numa espécie de representação sem povo, em que decisões pretorianas se impõe sobre toda e qualquer vontade popular, seja numa função regulatória, quanto numa função impeditiva do poder judiciário.

    O Poder judiciário no Brasil assume cada vez mais um papel predominante. Alguns juízes se arrogam os próprios representantes da nação, outros pretendem ser o último bastião da moralidade pública. Basta olharmos os acontecimentos das últimas semanas. Talvez seja hora de percebermos que o poder judiciário também pode praticar os seus “Golpes de Estado” e, assim como na França, eles se tornam cada vez mais banais e corriqueiros. Seria o Estado de Direito, tal como conduzido por nosso judiciário, mais um golpe contra a democracia? Já não nos bastava os argumentos econômicos que, usurpando e submetendo a política e a soberania popular, produziram um Impeachment farsesco, será que a técnica jurídica também atenta contra os valores democráticos?

    Termino com uma anotação sábia de Errera, citado por Clapié. A consequência de uma das únicas condições de legitimação do “Golpe de Estado Constitucional”, qual seja, a de deixar de lado a lógica da democracia representativa para reabilitar a noção de “representante-função-em-nome-da-nação”, é a seguinte: “ À discussão pública sobre os mecanismos e as escolhas, sucede a discussão erudita sobre a interpretação de textos e o raciocínio jurídico adequado”(p. 375). É isto a democracia? Deixo a questão no ar.

    Rafael Tubone Magdaleno é Filósofo e Mestrando em Filosofia do Direito pela PUC-SP.

    Referências: BOUTIN e ROUVILLOIS (org.), Le Coup d’État. Paris: François-Xavier de Guibert, 2007.

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