Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
23 de Abril de 2024

Pensando os esforços atuais por uma política de saúde no sistema carcerário

Publicado por Justificando
há 8 anos

A ausência de atendimento ginecológico e obstétrico às mulheres privadas de liberdade no presídio Nelson Hungria, no complexo de Bangu, levou a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro a ajuizar ação civil pública em face do Estado buscando garantir o acesso das presas aos cuidados médicos necessários[1]. Todavia, embora reconhecendo a violação de direitos em curso, a sentença de improcedência foi categórica: “A procedência do pedido veiculado nesta demanda implicaria, na prática, na criação de um privilégio inconstitucional – por violar a isonomia – à população carcerária, em detrimento de todo o resto da sociedade livre”.

Assistir a um direito básico como a saúde ser tratado como um privilégio indevido quando suas destinatárias são mulheres presas deve acender um sinal de alerta em qualquer sociedade que se pretenda democrática. De fato, a Constituição Federal estabelece que o acesso à saúde deve ser garantido de forma universal e igualitária (art. 196), e assegura de forma expressa o direito à integridade física e moral das pessoas presas (art. 5º, XLIX). Além disso, a Lei de Execução Penal prevê ser dever do Estado a assistência à saúde do preso e do internado, que, se necessário, será prestada fora do estabelecimento penal, e garante às mulheres o direito a acompanhamento médico específico (art. 14).

Visando à efetivação dessas normas e de diversas outras previstas em instrumentos internacionais[2], foram concebidas, recentemente, duas políticas de âmbito nacional tendo como escopo a atenção à saúde das pessoas privadas de liberdade: a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), instituída de forma conjunta pelos Ministérios de Saúde e da Justiça em 2014[3], e o programa Saúde Prisional, lançado pelo Conselho Nacional de Justiça em junho de 2016.

Segundo a apresentação oficial, a PNAISP foi criada com o objetivo de “ampliar as ações de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) para a população privada de liberdade”, de modo que “os serviços de saúde no sistema prisional passem a ser ponto de atenção da Rede de Atenção à Saúde (RAS) do SUS, qualificando também a Atenção Básica no âmbito prisional como porta de entrada do sistema e ordenadora das ações e serviços de saúde pela rede”. Assim, parte da importante premissa de que, sendo um direito universal, a assistência à saúde do preso, como a de qualquer outro cidadão, se insere e deve ser oferecida no âmbito do Sistema Único de Saúde e de forma integrada aos seus serviços regulares, sobrepondo-se às condicionantes intrínsecas ao sistema de justiça criminal[4].

Buscou-se, na concepção da PNAISP, superar as deficiências que levaram ao esgotamento do antigo Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) e criou-se, de forma complementar, o Serviço de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicadas à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP)[5].

Por outro lado, o programa Saúde Prisional, recentemente instituído pelo CNJ, é apresentado como uma iniciativa voltada à garantia de um padrão sanitário e de assistência social mínimo às pessoas em situação de privação de liberdade, assegurando-lhes o acesso universal às ações de assistência básica à saúde. Com esse horizonte, foram definidos quatros eixos orientadores, cada qual pressupondo ações transversais e articuladas através de parcerias entre o poder judiciário, o poder executivo e sociedade civil: universalização do acesso à saúde; saúde da mulher; medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a lei; e criação de um indicador para a fiscalização e monitoramento das condições dos estabelecimentos prisionais.

Apesar dos objetivos ambiciosos das políticas citadas, nota-se que, quase dois anos após a criação da PNAISP, sua implementação encontra-se bastante defasada em relação às metas definidas. Um primeiro dado que chama a atenção é o fato de, nas três unidades federativas com maior população prisional do país, praticamente não existirem equipes da PNAISP habilitadas: em São Paulo, que sozinho detém quase um terço dos presos do país, há uma única equipe, enquanto no Rio de Janeiro e em Minas Gerais não há nenhuma. Tendo em vista que a transferência de recursos financeiros para desenvolvimento das ações previstas está condicionada à habilitação de equipes, conclui-se que nesses locais a efetivação da política, até o momento, está praticamente esvaziada. Em um panorama mais amplo, verifica-se que das 1.424 unidades prisionais existentes no Brasil, apenas 118 possuem equipes habilitadas – o equivalente a 8%. Esse cenário indica ser remota a possibilidade de cumprimento das metas fixadas na portaria instituidora da PNAISP, segundo a qual os entes federativos teriam até 31 de dezembro de 2016 para efetivar as medidas necessárias de adequação de suas ações e serviços[6].

Esses dados provocam algumas reflexões. De um lado, o descompasso alarmante entre a implementação da política e seus termos ideais evidencia o caráter retórico de certas iniciativas voltadas à melhoria do sistema prisional, que não chegam a impactar significativamente suas condições reais e, o que é ainda mais grave, acabam contribuindo para legitimá-lo e perpetuá-lo. Afinal, como se viu, o arcabouço legal para que o acesso à saúde nas prisões seja assegurado de forma integral já existe há muito tempo, e a sua aplicação adequada, por si só, já tornaria redundantes em grande medida as políticas recentemente introduzidas. A invisibilidade do que acontece no interior do cárcere perante a sociedade, por sua vez, concorre para reforçar e conservar esse estado de coisas e frustrar tentativas de modifica-lo.

Sob outro ângulo, pouco valor têm políticas como essas, mesmo que implementadas, se desacompanhadas de um questionamento mais amplo da cultura punitivista e encarceradora dominante na atualidade. Na lição de Vera Regina Pereira de Andrade, o processo de construção da cidadania e a justiça penal são essencialmente contraditórios, na medida em que a construção da criminalidade, ao incidir de modo seletivo e estigmatizante sobre a pobreza e a exclusão social, impõe-se como um obstáculo à efetivação de direitos: “enquanto a cidadania é dimensão de construção de direitos e necessidades, a justiça penal é dimensão de restrição e violação de direitos e necessidades”. Opera-se, assim, um movimento de colonização do Estado pelo sistema de justiça penal, em que a omissão na efetivação de direitos sociais e na potencialização da cidadania são compensados por excessos de criminalização e pelo simbolismo da lei penal[7].

Nesse contexto, a experiência demonstra que o cárcere não é e nunca será o ambiente adequado para aqueles que necessitam de cuidados de saúde, uma vez que muitos dos agravos estão diretamente relacionados à superlotação e às condições estruturais dos presídios e do próprio sistema, bem como a uma mentalidade de indiferença aos direitos e demandas das pessoas presas. Exemplo disso foram as medidas adotadas em algumas unidades para o enfrentamento dos surtos de caxumba e escabiose (sarna) ocorridos este ano, que consistiram, essencialmente, em reunir e confinar os presos doentes em determinados setores do estabelecimento. A própria apresentação do programa Saúde Prisional traz como um dos seus vetores balizadores o combate à cultura do encarceramento desnecessário, em especial nas prisões provisórias, nos termos do art. 1º, IX da Portaria n. 16/2015 do CNJ. A “promoção de iniciativas de ambiência humanizada e saudável”, um dos princípios regentes da PNAISP[8], passa necessariamente por essa reflexão.

É preciso ter em mente, ainda, que tão importante quanto oferecer assistência à saúde das pessoas presas é assegurar que esse direito seja tratado com a devida importância e que seja viabilizado o acesso a cuidados, serviços e instalações extramuros sempre que necessário, sob pena de a prisão despir-se qualquer sentido que lhe possa ser atribuído e tornar-se pena abertamente cruel, em afronta à garantia insculpida no art. , XLVII, e da Constituição da República. Para isso, não é necessário inovar na ordem jurídica nem arquitetar políticas complexas, já que a legislação vigente contém uma série de dispositivos que contemplam esse direito e acabam muitas vezes esquecidos no cotidiano da justiça criminal: tanto o Código de Processo Penal (art. 318) como a Lei de Execução Penal (art. 117) preveem possibilidades de prisão domiciliar em caso de doença grave, idade avançada ou gestação; a LEP também prevê expressamente que, quando o estabelecimento penal não estiver aparelhado para prover a assistência médica necessária, poderá ser autorizada sua prestação em outro local (art. 14, § 2º); ademais, os decretos de indulto natalino tem incluído diversas hipóteses de indulto e comutação de pena em situações de doenças graves permanentes, doenças crônicas, e deficiência física ou visual, para citar alguns exemplos.

Se por um lado a PNAISP e o programa Saúde Prisional abrangem certas ações potencialmente construtivas para a redução dos danos sofridos pelas pessoas encarceradas – como a definição de protocolos para a entrada, o cuidado e a desinstitucionalização de qualquer pessoa no ambiente prisional, mediante avaliação de sua condição de saúde, como forma de garantir o devido encaminhamento e o acesso incondicional aos serviços cabíveis–, é também necessário insistir que, quando o sofrimento humano é estruturante do sistema de justiça criminal em funcionamento, não há política de saúde possível sem que ele seja repensado em suas bases.

Quanto à ação civil pública pleiteando atendimento de saúde às mulheres privadas de liberdade no presídio Nelson Hungria, em breve será julgado o recurso de apelação interposto pela Defensoria Pública contra a decisão de improcedência, e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro terá a oportunidade de corrigir a grave injustiça presente na afirmação de que garantir direitos essenciais às pessoas presas equivaleria a criar privilégios infundados.

Vanessa Morais Kiss é advogada voluntária da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo.

[1] Ação civil pública nº 0220470-75.2014.8.19.0001.

[2] A título de exemplo, as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos (1955), recentemente atualizadas pelas Regras de Mandela (2015), e as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para as Mulheres Infratoras – Regras de Bangkok (2010).

[3] Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014.

[4] “É objetivo geral da PNAISP garantir o acesso das pessoas privadas de liberdade no sistema prisional ao cuidado integral no SUS.” (Portaria Interministerial nº 1/2014, art. 5º).

[5] Portaria GM/MS nº 94, de 14 de janeiro de 2014.

[6] Portaria Interministerial nº 1/2014, art. 21.

[7] ANDRADE, Vera Regina Pereira. A colonização da justiça pela justiça penal: potencialidades e limites

do Judiciário na era da globalização neoliberal. Katálysis, v. 9, n. 1, jan./jun. 2006, Florianópolis, p. 11-14.

[8] Portaria Interministerial nº 1/2014, art. 3º. IV.

  • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
  • Publicações6576
  • Seguidores927
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações283
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/pensando-os-esforcos-atuais-por-uma-politica-de-saude-no-sistema-carcerario/396387553

0 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)