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19 de Abril de 2024
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    Cerceamento de defesa e o saneamento colaborativo: fale agora ou cale-se para sempre?

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    A imagem do processo civil centrado no juiz tende a acabar. A Lei n.º 13.105/2015 retirou a proeminência da magistratura na prestação da jurisdição e tornou obrigatório o contraditório dinâmico, com imposição ao juiz dos deveres de esclarecimento, diálogo, prevenção e auxilio. Por óbvio que a decisão final do continuará sendo do julgador, mas as partes passam a ter uma posição ativa na condução do processo que levará à decisão. Um dos exemplos mais emblemático desta mudança é o saneamento cooperativo.

    Para compreender essa novidade do Código de Processo Civil de 2015 precisamos ler com atenção seu artigo 357, especialmente seus parágrafos primeiro, segundo e terceiro. Para ajudar o leitor, os transcrevo abaixo:

    “Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:

    I - resolver as questões processuais pendentes, se houver;

    II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos;

    III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373;

    IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito;

    V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.

    § 1º Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.

    § 2º As partes podem apresentar ao juiz, para homologação, delimitação consensual das questões de fato e de direito a que se referem os incisos II e IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz.

    § 3º Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações.”

    Sanear o processo é um dos deveres do juiz. Salvo na hipótese de prolação imediata da sentença (arts. 354 a 356, CPC-15) toda fase postulatória deverá ser encerrada com a decisão de saneamento. Defrontamo-nos com um provimento judicial complexo, porquanto nele o magistrado deverá: I) decidir as preliminares ao mérito, que o legislador chamou de “questões processuais”; II) fixar os pontos controvertidos, denominados pelo CPC-15 de “questões de fato”; III) definir o ônus da prova, ou seja, se valerá a regra geral, a dinâmica ou a inversão consumerista; IV) “delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito”. Tudo isso sem prejuízo do deferimento das provas, nomeação de perito, designação de audiência de instrução, calendarização, etc. Por conseguinte, o saneamento processual pressupõe a leitura atenta dos autos pelo magistrado, mas, como veremos, conta com a ajuda e participação efetiva das partes.

    O princípio da cooperação (art. 6.º, CPC-15) se materializa no saneamento quando o legislador processual dá às partes o direito de levar à homologação os pontos controvertidos e as questões de direito relevantes, ou seja, um negócio jurídico processual atípico. A cooperação também se mostra definitiva e utilíssima quando mesmo individualmente qualquer uma das partes pode pedir “esclarecimentos” ou “solicitar ajustes” em até 5 (cinco) dias após a prolação do saneador. Acabou, portanto, o utópico saneamento na audiência preliminar prevista no § 2.º do art. 331 do Código de Processo Civil de 1973, substituído pela possibilidade de se designar audiência para o saneamento conjunto (art. 337, § 3.º, CPC-15), ato que, sem dúvida, conjuga em grau máximo o contraditório dinâmico com o princípio da cooperação, vez que aproxima todos os protagonistas processuais para, presencialmente, desenharem a seis ou mais mãos o melhor saneamento possível para a causa.

    A participação das partes no saneamento democratiza o processo, aproxima o juiz dos advogados e, oxalá, permitirá aquela coincidência do destino desses dois profissionais pontificada por Piero Calamandrei no diálogo final do seu atemporal Elogio dei giudici scritto da un avvocato.

    Ainda assim precisamos alertar nosso leitor de a novidade ter natureza de ônus em vez de direito. A ausência de participação das partes acarreta a estabilização da decisão de saneamento, ou seja, grosso modo (não há tempo aqui para diferenciar estabilização, preclusão e coisa julgada), a regra do art. 507 do CPC-15 se aplica à decisão de saneamento não questionada pelas partes. O legislador deixou claro uma consequência para o silêncio diante do saneador: a estabilização.

    Escrevi tudo isso para compartilhar duas perguntas contigo, caro leitor. A primeira: quem não participar do saneamento cooperativo pode alegar cerceamento de defesa em apelação? Tendo a responder negativamente, ou seja, o sucumbente apenas terá o argumento de cerceamento de defesa se tiver participado do saneamento cooperativo e, mesmo assim, lhe tenha sido indeferida a fixação de ponto controvertido ou negado a produção de prova. Penso dessa forma para dar utilidade ao texto de lei, interpretando-o sistematicamente pois a regra primeira das nulidades processuais impõe que a decretação da nulidade não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa (art. 276, CPC-15). De outro lado, o comando principiológico do art. 6.º do CPC-15 carece de ações afirmativas do intérprete e, creio, a leitura aqui defendida alcança a finalidade da norma.

    A segunda pergunta é mais intrincada: a decisão judicial pode ser considerada sem fundamentação quando deixar de enfrentar questão jurídica capaz de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador, mas que não constou como questão de direito relevante no saneador e nenhuma das partes requereu esclarecimentos ou ajustes? Estamos colidindo a regra do art. 489, § 1.º, IV com a do art. 357, § 1.º, ambos do CPC15. Salvo se tratar de questão cujo conhecimento de ofício é imposto ao juiz, entendo que a resposta aqui é negativa. Se no saneamento não constou como relevante a questão jurídica a sentença está dispensada de analisá-la. A estabilização veda à parte exigir após a sentença o que ignorou no saneamento.

    Claro que as respostas acima comportam exceções. Um sistema que objetiva decisões justas de mérito jamais criaria preclusão pro judicato para a produção de provas, portanto, o juiz continua podendo determinar qualquer prova, ainda que depois de sanear e mesmo para dirimir pontos não fixados como controvertidos no saneador. No meu pensar, a regra específica do art. 370 prevalece sobre a geral do art. 505, caput, ambos do CPC-15. Partindo de raciocínio semelhante, o efeito devolutivo amplo da apelação (art. 1.013, §§ 1.º e 2.º CPC-15) continuará a permitir que o Tribunal analise essa ou aquela questão jurídica ignorada pela sentença, entretanto isso se dará não para anulá-la (art. 1.013, § 3.º, IV, CPC-15) apenas para redecidir a causa (art. 1.013, § 3.º, I, CPC-15).

    Prevalecendo esse entendimento, a decisão saneadora colaborativa será necessariamente consultada durante toda a instrução e, em especial, no sentenciamento. Na minha visão, é recomendável que o saneamento se dê através de perguntas, fáticas e jurídicas, a serem respondidas pelo juiz na sentença a partir da prova produzida.

    Uma nota final. Já li doutrina negando a consequência que aqui defendo, partindo da leitura conjunta do art. 1.009, § 1.º (recorribilidade diferida das interlocutórias) e do rol taxativo do art. 1.015 (interlocutórias recorríveis de imediato, via agravo), ambos do CPC-15. Respeito a posição, porém, ao pensar assim estar-se-á afirmando que o legislador usa palavras inúteis, pois para que serviria o “a decisão se tornará estável” previsto no § 1.ºdo artt . 357? Pior. Em última instância, essa interpretação leva à facultatividade do saneamento cooperativo, opção que me parece contrária à intenção do legislador no CPC-15. Lembro ainda se tratar de regra específica (estabilização do saneador) que prevalece sobre a geral (recorribilidade diferida das interlocutórias). Portanto a decisão de saneamento estabiliza salvo a parte requerer esclarecimentos ou solicitar ajustes, sendo incorreto impugná-la preliminarmente na apelação.

    Atenção redobrada, caro leitor! O advogado precisa tomar todo o cuidado com a decisão de saneamento. Impende analisar meticulosamente a causa de pedir da inicial, os fatos tornados controvertidos na defesa, ler a réplica (hábito infelizmente raro na rotina forense...) e contribuir positivamente no saneamento. Para alguns, uma mudança de hábito; para todos, a semente do tão desejado processo civil dialético.

    André Gustavo Salvador Kauffman é Advogado em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mestre e Especialista em Processo Civil pela PUC/SP. Professor e autor de artigos jurídicos. Sócio do K.A Advogados (www.kaadvogados.com.br).
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