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19 de Abril de 2024
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    Criança e adolescente também têm direito ao devido processo legal

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    O Projeto de Lei 3136/2015[1] tramita no Congresso Nacional e “torna obrigatória a implementação de atividades com fins educativos para reparar danos causados no ambiente escolar”, a fim de estender a nível nacional uma Lei Municipal de Campo Grande, estado de Mato Grosso do Sul. Muito embora vigente na capital campo-grandense, a Lei Municipal tem sua validade questionada pela Defensoria Pública, por ser considerada inconstitucional, e o Sistema Conselhos de Psicologia emitiu nota de repúdio à iniciativa[2].

    Fato é que o Projeto de Lei, logo no primeiro artigo, menciona, tornando obrigatória inclusive, a aplicação de penalidade para crianças e adolescentes, mas não há limitação alguma a esse poder de punir, tampouco explica como será realizada essa penalização, e ainda, não se fala em contraditório e ampla defesa. Trata-se de uma espécie de imposição de pena sem prévia cominação legal por infração sem lei anterior que a defina, portanto, mesmo que se aplicasse o Direito Penal a crianças e adolescentes, ainda assim estaria sendo violado, no mínimo, o princípio da legalidade. Nesse caso, por força do artigo 228 da Constituição Federal, quem ainda não completou 18 anos sequer é imputável.

    O argumento para a criação do Projeto de Lei traz que o ambiente escolar é o local adequado para o “aprimoramento da consciência dos valores da família e do Estado”. Tal justificativa, disponível no texto do PL, aponta também o “destaque” no Jornal Nacional de 28 de setembro de 2015, que divulgou a Lei Municipal já sendo aplicada. Na matéria, um adolescente é obrigado a lavar o banheiro da escola, e o promotor que criou a lei municipal com o apoio da bancada evangélica da Câmara de Vereadores de Campo Grande é entrevistado. Na Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul tramita o Projeto de Lei com o mesmo texto, também criado pela bancada evangélica com o apoio do promotor.

    Interessante que, no Estado de Mato Grosso do Sul, existe a Justiça Restaurativa, cuja implantação conta com o incentivo das Nações Unidas (ONU) e com resolução expressa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por ser um programa que envolve a Vara da Infância e Juventude e conta com equipe técnica preparada para, por meio de muito diálogo, restabelecer os laços quando se trata de conflitos de relacionamento, ou até reparação de danos quando a infração é de caráter patrimonial. Nesse caso, o adolescente possui direito ao contraditório e à ampla defesa, ele aceita participar do procedimento para resolver a questão sem o peso de um processo judicial, sem audiências, mas com reuniões envolvendo profissionais da psicologia e assistência social para trabalhar a conscientização do adolescente, por meio de círculos restaurativos. Ao final, um relatório é apresentado junto ao processo judicial que ficara suspenso e o juiz profere a sentença de extinção dos autos, caso o objetivo da Justiça Restaurativa tenha sido alcançado. Ou seja, por meio de um procedimento legal, que respeita todos os direitos fundamentais do adolescente, com o apoio de profissionais interdisciplinares, como indica o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase)[3], já existe a responsabilização do aluno que comete alguma infração dentro da escola, mesmo que de caráter leve. Não faz sentido aplicar uma penalidade, uma medida de socioeducação que seja, sem o conhecimento do juiz natural e sem o apoio interdisciplinar necessário, até porque a criança e o adolescente não devem ser tratados de forma mais gravosa que um adulto, e possuem os mesmos direitos, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente e as Diretrizes de Riad (Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil)[4].

    O Projeto de Lei em questão ganhou força e apoio da população por conta da divulgação nacional. A mídia não mostrou o questionamento sobre a inconstitucionalidade da lei, e diante o discurso do medo, relativo à violência praticada por adolescentes, a iniciativa recebeu aplausos de muitos e a reflexão aprofundada do tema ficou apenas para especialistas em educação, psicólogos e ativistas dos Direitos Humanos. Na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul foi realizada uma audiência pública no dia 06 de julho de 2016, na qual educadores, advogados e defensores públicos criticaram com afinco a aplicação de penalidade pela escola.

    Nesse sentido, destaca-se que não se questiona a responsabilização de menores de idade que cometem alguma infração, apenas se defende que é preciso que essa responsabilização seja no âmbito da Justiça e com todas as garantias às quais todos têm direito. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê as formas de responsabilização do adolescente, as medidas socioeducativas, as quais incluem prestação de serviços à comunidade e até privação de liberdade em Unidade Educacional de Internação (Unei).

    Abordando a inconstitucionalidade do Projeto de Lei, pode-se começar pela análise do primeiro artigo, o qual obriga a escola a aplicar atividades como “penalidade” aos alunos. Conforme o artigo , inciso XXXVII da Constituição Federal, é proibido “tribunal de exceção”. No caso do adolescente, ele é responsabilizado por meio de medida socioeducativa que é aplicada por um juiz. Além disso, insta destacar que apenas estudantes de escola pública terão o direito ao devido processo legal restringido, portanto, a população carente, que já sofre enormes restrições.

    Muito embora num primeiro momento a população apresente apoio ao Projeto de Lei, logo mães e pais de alunos verão os filhos com sentimento de injustiça na escola, por não terem culpa de algo que ocorreu e terem que lavar o banheiro ou varrer o pátio mesmo assim, passando por situações constrangedoras junto aos colegas, o que gera diversos problemas no desenvolvimento do indivíduo em formação. Isso porque não haverá um processo com direito de defesa, como ocorre na Justiça dos adultos, e nem será como na “Justiça Restaurativa”, que é um procedimento que envolve uma equipe especializada com assistente social, psicólogo e muito diálogo.

    Ainda por outro ângulo, é possível apontar a inconstitucionalidade quanto à fragilidade da fundamentação do projeto. Aluno e Estado possuem uma relação especial, o estudante da rede pública de ensino, assim como um paciente de um hospital público, pode ter seus direitos fundamentais restringidos por conta dessa relação, mas a ampliação de poder do Estado promove um compromisso ainda mais rígido com a fundamentação de cada restrição aplicada, é preciso analisar a proporcionalidade, a adequação, a necessidade da referente restrição, o que não foi justificado no caso em comento. A aprovação do Projeto de Lei aumenta o Poder do Estado e restringe a liberdade da criança, do adolescente e de seus pais.

    Ademais, o Projeto de Lei 3136/2015 viola, ainda, o artigo , inciso LII da Constituição Federal, “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, pois haverá sentença proferida pela escola; viola o artigo 5º, inciso XLVII, alínea c, “não haverá penas de trabalhos forçados”; e o inciso II, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

    A diferença, já exorbitante, de recursos que possuem os alunos de famílias de baixa renda se prolifera no texto do Projeto de Lei. Além de fazer inglês, aulas particulares, cursos, viagens para o exterior, as crianças e adolescentes frequentam psicólogo quando apresentam algum comportamento agressivo. Mas a família de baixa renda oferece a matrícula em uma escola pública tão somente, que além de não oferecer equipe técnica especializada ou encaminhamento para quem precisa de tratamento psicológico, agora irá buscar uma solução rápida obrigando qualquer aluno a cumprir uma pena, lavando o banheiro ou praticando qualquer outra atividade que poderá ser motivo de chacota, de bullying[5] que é uma questão preocupante enfrentada hoje nas escolas. O governo dos estados e municípios precisam investir na educação, mas castigar os alunos que não tem culpa da falta de estrutura das escolas não resolve problema algum, tampouco é constitucional.

    Por fim, uma breve leitura do artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente faz-se necessária para tornar ainda mais evidente os vícios de um Projeto de Lei que oprime o aluno de escola pública e restringe seus direitos:

    “Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.”[6]

    Ana Maria Assis de Oliveira é pós-graduanda em Processo Civil pelo Instituto Damásio Educacional, graduada em Direito e Jornalismo pela Universidade Católica Dom Bosco e exerce o cargo de Asssessora Jurídica no Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Nudeca) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul.
    [1] (Acesso em 08 de julho de 2016) http://www.câmara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1392329&filename=PL+3136/2015 [2] (Acesso em 08 de julho de 2016) http://psinaed.cfp.org.br/nota-de-repudio-contra-pls-sobre-atividades-de-reparacao-de-danos-por-alunoseseus-pais-no-ambiente-escolar/ [3] (Acesso em 08 de julho de 2016) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm [4] (Acesso em 08 de julho de 2016) http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/c_a/lex45.htm [5] (Acesso em 08 de julho de 2016) http://novaescola.org.br/formacao/bullying-escola-494973.shtml [6] (Acesso em 08 de julho de 2016): http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/crianca-e-adolescente-tambem-tem-direito-ao-devido-processo-legal/359816034

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