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20 de Abril de 2024
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    Ela, a grande mídia, vista por um professor

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    A grande mídia brasileira presta diariamente um desserviço ao país: deliberadamente contribui para a detestável dinâmica de distribuição do poder punitivo que celebra a precariedade do atual marco civilizatório da terra brasilis. A forma com que é retratada a questão criminal e uma série de outros problemas complexos é simplesmente grosseira, simplificadora e de uma pobreza atroz. O engenho midiático atua como difusor e amplificador de ódio, agenciando uma sinfonia de destruição que contribui diretamente para a catástrofe que são as nossas práticas punitivas.

    De Norte a Sul do país, cadáveres são produzidos diariamente com espantosa e extraordinária velocidade. Pobre daquele que tem a vida invadida pelas luzes dos refletores midiáticos: seu convívio social pode ser arruinado de forma irreparável em questão de meras horas. É inteiramente possível que seu eventual processo não seja nada além da simples confirmação de uma "verdade" originalmente produzida e veiculada como expressão da realidade por uma instrumentalidade que não demonstra nenhum pudor diante de direitos fundamentais alheios. Quando empregado com máxima intensidade, o aparato de difusão de ódio atua de forma decisiva para incentivar linchamentos e aniquilar vidas.

    Escondida por trás da couraça da liberdade de expressão, a grande mídia estabelece uma verdadeira tirania da comunicação: configura um poder de sujeição simbólica da população que conta com extraordinária capacidade de adesão. [i] Para muitas pessoas, a grande mídia consiste na única e exclusiva dieta de informação. Se de fato ela fosse movida pelo compromisso com os "fatos", a "verdade" e a "imparcialidade" como diz ser, contribuiria de forma significativa para o debate democrático e a para a superação do que pode ser chamado de senso comum, na pior acepção do termo. Mas o que ela costuma fazer é precisa e exatamente o contrário: propositalmente arruína as próprias condições de possibilidade do debate. [ii] O jornalismo brasileiro flerta abertamente com o sensacionalismo e mostra rotineiramente seu descompromisso com a verdade e a imparcialidade.

    É claro que os cânones midiáticos de tratamento dos "fatos" e da "verdade" são muito menos rígidos do que os judiciais ou científicos. A própria expressão "imparcialidade" tem seus limites, mesmo dentro dessas esferas. Isso em si mesmo não seria um problema, se não existisse uma intenção deliberada de manipulação, por comunicadores que indiscutivelmente se comportam como empreendedores morais e que, como tais, conduzem cruzadas contra os "anormais". [iii] A grande mídia funda e difunde pânicos morais e constrói – muitas vezes diabolicamente – bodes expiatórios que funcionam como cortina de fumaça para problemas reais ou propositalmente inventados.

    As abordagens jornalísticas costumam adotar o paradigma simplificador e não têm a menor vergonha disso: simplificam grosseiramente os problemas visando maximizar a inteligibilidade de seu discurso perante um público anestesiado por uma droga que vicia e sepulta a capacidade de pensar e refletir. O que interessa é vender e vender. O esclarecimento público é visivelmente subsidiário diante da estratégia de captura de almas (e bolsos) da coletividade. A grande mídia literalmente fabrica e comercializa um produto: a informação, ou como é comum em muitos casos, a desinformação deliberada. [iv]

    A "verdade" produzida pela grande mídia tem aparência de objetividade, mas costuma carregar forte conotação moral, que reflete as predileções políticas de quem escreve textos performáticos com intenção de sujeição simbólica do leitor/espectador. É nesse sentido que a mídia "produz" uma "opinião pública" que é efetivamente condicionada por ela, embora procure passar a impressão de que a representa, como se opinião publicada e opinião pública fossem coisas equivalentes.

    É comum que os meios de comunicação de massa criem ilusões: projetam uma realidade de histeria, o que não é produto do acaso. O programa satanizante veiculado pela grande mídia reflete muitos interesses sociais difusos e, na maioria das vezes, as próprias convicções morais de quem escreve. Afinal, ninguém pode eliminar o próprio "eu" e fazer com que a realidade flua através de seu texto, apresentando resultados verdadeiros e incontestáveis para todos. Quem dirá então quando o processo de fabricação da notícia é flagrantemente intencional: informar pode muitas vezes ser algo secundário perto da intenção deliberada de moldar o leitor como se objeto fosse. Reféns de editorias que garantem que toda notícia se conforme ao espectro político adotado pelo jornal, os repórteres que escrevem as notícias "objetivas" são manipulados por um calculado esforço de sujeição do destinatário final da mensagem pré-concebida. [v]

    A leitura jornalística sempre parte de um horizonte compreensivo prévio, que necessariamente irá selecionar o que é dito, como é dito e quando é dito, não apenas de acordo com escolhas morais, mas também comerciais: e todos sabem que escândalos vendem. E vendem porque a grande mídia criou um gosto para isso no público, o que sempre interfere na escolha da pauta, muitas vezes de forma decisiva: não apenas no que é definido como noticiável, mas também na forma da abordagem e na seleção dos dados, procurando identificar o que é pertinente ou não para uma "aproximação sedutora" que muitas vezes não privilegia o que é mais relevante para a efetiva compreensão dos fatos. O espetáculo é que conta, pois captura a atenção da população. [vi]

    Para facilitar a difusão do discurso, a grande mídia geralmente costuma "construir a realidade" através de alguns vetores facilmente perceptíveis: a) eleição de um fio condutor como ponto central da questão, ainda que seja apenas um elemento dentro de uma situação complexa; b) simplificação dos aspectos envolvidos para garantir a máxima inteligibilidade da mensagem pelos destinatários, com emprego de relações simples de causa e efeito, inadequadas para fenômenos complexos; c) retratação do problema em torno de um confronto entre o bem o mal, que costuma ser apresentado em termos morais, ou seja, a sociedade contra seus inimigos; d) reiteração de problemas e/ou abordagens semelhantes para reforçar a compreensão desejada; e) recurso a especialistas: o acréscimo de autoridade dado pelo discurso de alguém com experiência na área reforça o "efeito de verdade" da abordagem jornalística; f) contraponto: acentua a máscara de "objetividade" da notícia, apesar de contemplar de forma menos importante no texto o ponto de vista contrário.

    A imprensa é um meio de transmissão cultural, que, como tal, transmite uma dada imagem do crime, dos criminosos e da polícia e dos demais atores do sistema penal. As imagens transmitidas são rotineiramente distorcidas com base na intenção de dramatização: a grande mídia literalmente inventa mitos, cujos efeitos são assustadoramente reais. [vii]

    Muitas vezes abusos são festejados e comemorados por uma população que aplaude a barbárie, sem perceber o que realmente está em jogo. Com isso, o tratamento penal da miséria é cada vez mais aceito como remédio para as mazelas do corpo social, fazendo do sistema penal um mecanismo de gestão da pobreza e de avanço totalitário da indústria de controle do delito. Como qualquer indústria, a indústria de controle do delito visa permanente expansão, com uma grande vantagem, já que fornece armas para o que é percebido como guerra permanente contra o crime, o que lhe garante contínuo apoio popular na luta contra os supostos inimigos da sociedade. [viii] Qualquer medida de intensificação da repressão é comemorada, pois a percepção generalizada é de que o sistema é conivente com a criminalidade. A ilusão alimentada pela crença cega no penalismo midiático acaba provocando o contínuo endurecimento e hipertrofia da legislação penal, com a atribuição de missões que extrapolam qualquer possibilidade de concretização, mas que contribuem para o encarceramento massivo, aplaudido pelos empreendedores morais da mídia e pelos marionetes das agências de reprodução ideológica. [ix] Tudo isso favorece a expansão em espiral do controle penal, o que intensifica uma lógica de monitoramento constante da vivência humana, sem que as pessoas percebam que estão sendo seduzidas pelo discurso da criminologia midiática. [x]

    A expansão da lógica do controle é mundial. Não é um fenômeno brasileiro, ainda que aqui tenha características bastante peculiares. Sua disseminação fez com que a violência se tornasse um produto, que é avidamente consumido por uma população sedada por um discurso que produz sujeição simbólica: faz com que próprio público que é alvo preferencial da guerra travada em nome da "segurança" aplauda o contínuo endurecimento do sistema penal. A intensidade com que essa máquina de desinformação é capaz de produzir subjetividades é impressionante. Constrói infinitos lugares comuns discursivos que são posteriormente reproduzidos de forma impensada pelos servos da simplificação por ela disseminada: pena de morte, redução da maioridade penal, impunidade, excesso de recursos, lentidão da justiça e tantas e tantas outras artimanhas são continuamente reiteradas perante os olhos da população, reproduzindo com lentes sensacionalistas uma relação de causa e efeito entre violência e frouxidão do sistema penal.

    Os argumentos são apresentados como verdades absolutas, o que faz com que a suposta causalidade pareça "natural" e incontestável. Um relativo consenso é construído, salvo para aqueles que se "recusam a ver o óbvio", ou seja, "o perigo para a sociedade que os inimigos representam" e a necessidade de medidas mais duras contra "eles". [xi]

    É claro que o público nunca é um simples receptáculo do discurso da grande mídia, ainda que ela possa ter esse público como objeto. As opiniões dos telespectadores ou leitores nunca refletem de forma perfeita e acabada os discursos jornalísticos, salvo em raras ocasiões. Cada um agrega ao discurso seu próprio universo de significações, fazendo dele algo "seu" ou rejeitando os argumentos com base em convicções previamente existentes. Existe um espaço de resistência ao investimento de sentido, mas é incomum que pessoas pouco esclarecidas consigam esboçar essa resistência. O problema consiste na imensa capacidade de adesão do discurso punitivista, o que é maximizado pela exposição continuada das pessoas a programas sensacionalistas nas últimas décadas. As "soluções para a criminalidade" vendidas por esses programas já estão impregnadas de forma quase irremediável no imaginário social, que foi capturado pelas estratégias de simplificação. Quando todos ao seu redor assumem como consenso as verdades midiáticas, é difícil pensar para além da mediocridade do pensamento simplificador.

    No entanto, explicações simples raramente são satisfatórias para a compreensão de problemas complexos. E digo mais: podem inclusive servir para mascarar a verdadeira natureza das coisas e a compreensão de suas possíveis causas.

    É preciso dar um basta. A escrita não pode indefinidamente continuar a ser um instrumento de dominação, ainda que historicamente tenha se prestado a esse triste papel e que a televisão tenha intensificado ainda mais a difusão de mensagens violentas. [xii]

    Sou apenas um professor e nunca quis ser nada além de um professor. Não milito na advocacia criminal. Faço parte dos quadros da OAB/RS, mas estou afastado e não exerço a advocacia. Não tenho nenhum interesse particular a defender quando discuto a retratação dos problemas que envolvem o sistema penal pela grande mídia brasileira. Meu interesse na máquina de desinformação que passa por imprensa no país é estritamente acadêmico e, portanto, não há flanco aberto para que o discurso aqui desenvolvido seja desqualificado pelos costumeiros artifícios simplificadores usados pela grande mídia (sempre com honrosas exceções, é claro). Logicamente muitas dessas críticas poderiam ser endereçadas aos tropeços da grande mídia em escala mundial. Não é uma especialidade brasileira, ainda que aqui o sabor seja especialmente amargo. Como sempre, é apenas o meu ponto de vista. Espero que você tenha gostado.

    A gente se vê por aqui. Todas as sextas-feiras, faça chuva ou faça sol. Grande abraço e bom fim de semana!

    Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.
    REFERÊNCIAS i RAMONET, Ignacio. A tirania da comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001. ii Para Octavio Paz, que critica a televisão e o rádio por aumentarem a distância entre quem fala e quem ouve, “o verdadeiro fundamento de toda democracia e socialismo autêntico é, ou deveria ser, a conversação: os homens frente e a frente.” Tais meios fortalecem a incomunicação: “deformam os interlocutores: magnificam a autoridade, a tornam inacessível – uma divindade que fala mas não escuta – e assim nos roubam o direito e o prazer da réplica. Suprimem o diálogo.” PAZ, Octavio. Claude Levi-Strauss ou o novo festim de Esopo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.p.81. iii BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009 iv Zaffaroni afirma que existe uma criminologia midiática que pouco tem a ver com a acadêmica. Ela constrói a realidade através da informação, subinformação e desinformação, em convergência com preconceitos e crenças. Seu discurso se baseia em uma etiologia criminal simplista, assentada em uma causalidade mágica. Para ele, sempre houve criminologias midiáticas vindicativas com base na destruição de bodes expiatórios. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva: 2013. p.297. v Como observou Zaffaroni, na estrutura de comunicação da sociedade tecnocientífica houve uma mudança da comunicação "entre pessoas" pela comunicação "através dos meios": este tipo de comunicação não se limita a proporcionar uma falsa imagem da realidade, ele produz realidade de acordo com regras destinadas a certos grupos sociais. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2001. p.132. vi Nesse sentido, segundo Marcondes Filho, "como as mercadorias em geral, interessa ao jornalista de um veículo sensacionalista o lado aparente, externo, atraente do fato. Sua essência, seu sentido, sua motivação ou sua história estão fora de qualquer cogitação." MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia. São Paulo: Ática, 1989. p.15. vii Ver KAPPELER, V.E.; BLUMBERG, M.; POTTER, G.W. The mythology of crime and criminal justice. Prospect Heights, IL: Waveland, 2000. viii CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 1993. p..21. ix Tais empresários não são recentes e já fazem parte da cultura brasileira pelo menos desde a década de 80. Como observou Nilo Batista, “No Brasil, não temos a pena de morte na legislação, mas ela é aplicada largamente, tolerada e estimulada por discursos que ou desqualificam o acusado ("ele é bandido"), liberando- o à sanha dos esquadrões da morte a soldo de grupos sociais bem caracterizados, ou exercem diretamente a apologia do extermínio (bandido bom é o morto)”. BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p.103. x Segundo Zaffaroni, “O que a criminologia midiática oculta cuidadosamente do público é o efeito potencializador do controle e redutor do espaço de liberdade social A necessidade de nos proteger deles justifica todos os controles estatais, primitivos e sofisticados, para prover segurança. Em outras palavras: o nós pede ao Estado que vigie mais a eles, mas também o próprio nós, pois necessitamos ser monitorados para sermos protegidos”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2013. p.317. xi Zaffaroni destaca que "a criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes, diante de uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos, que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. Os eles da criminologia midiática incomodam, impedem que se durma de portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e, por isso, devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos nossos problemas. Para isso é necessário que a polícia nos proteja de seus assédios perversos, sem nenhum obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros, imaculados". ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013. p.197. xii Levi-Strauss demonstra que a escritura foi propriedade de uma minoria e que não serviu tanto para comunicar o saber como para dominar e escravizar os homens. PAZ, Octavio. Claude Levi-Strauss ou o novo festim de Esopo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.p.79.
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