Por que precisamos discutir gênero nas escolas?
Em meio às recentes discussões sobre os Planos de Educação, seja no âmbito municipal, estadual ou federal, “gênero” se tornou um dos protagonistas do debate. Em grupos antagônicos, posiciona-se de um lado a defesa da educação não sexista e anti-discriminatória como um instrumento fundamental para erradicar preconceitos e violência; e, de outro, alega-se uma suposta ideologia que poderia subverter “valores” importantes em nossas sociedade. Para o primeiro grupo, simplesmente falar em "discriminação" é suficiente, não sendo necessário discutir "gênero". Será? Afinal, o que significa essa ideologia de gênero? Essa expressão faz algum sentido?
O conceito de gênero surgiu como uma categoria de análise, cujo uso passou a ser intensificado a partir do pós segunda guerra mundial. As teorias que se desenvolvem nesse campo e a partir desse conceito são muitas e complexas, mas de uma forma simplificada pode-se dizer que o termo se refere à existência de uma normatividade imposta às mulheres a partir de construções sócio-culturais baseadas na sua biologia. Assim, desvendar essa categoria nos permite compreender como homens e mulheres são localizados na sociedade contemporânea, e que essas alocações são antes historicamente construídas do que decorrência da "natureza". Por exemplo, o fato de as mulheres serem identificadas com as esferas da maternidade, do cuidado e do trabalho doméstico e os homens com o trabalho econômico e político decorreria não de uma condição biológica, mas de uma construção social que designa esses locais em oposição (privado/público; natural/cultural) e em assimetria - o público tendo maior valor social que o privado. Nesse sentido, também, trata-se de uma discussão relacional: a discussão dos papéis femininos implica a discussão dos papéis masculinos, construídos em oposição.
Ao falar sobre gênero na escola, ninguém pretende dizer às crianças e adolescentes que "não existe" homem ou mulher, ou fazê-los "perder" sua identidade. A questão é justamente compreender que socialmente nos relacionamos a partir de papéis que definem quem pode fazer o quê. Essa definição implica sérias limitações: meninas, por exemplo, não são estimuladas a desenvolverem suas habilidades matemáticas - porque as ciências exatas são campos de domínio masculino. Esse exemplo pontual já é suficiente para mostrar que incluir a questão de gênero nos currículos escolares vai muito além de falar sobre sexualidade. Busca problematizar e desconstruir esses significados culturalmente cristalizados como "decorrentes da biologia", buscando-se corrigir essa assimetria de poderes e trazendo mais igualdade nas relações humanas. Esse debate se expande para muito além das mulheres, mas traz benefícios para toda a sociedade, incorporando as questões da comunidade LGBTi e revisitando, inclusive, estereótipos que oprimem os próprios homens.
Nesse contexto, ser contra "discutir gênero" significa não aceitar a possibilidade de enfrentar essas discussões e fechar os olhos para essas possibilidades de desconstrução de valores que conferem poderes assimétricos a homens e mulheres, fomentando relações desiguais e, muitas vezes, violentas. É importante ressaltar que, embora muitos planos tenham sido aprovados sem a menção expressa à discriminação de gênero, a inclusão desse tema nos currículos e espaços escolares é decorrente de mandamento constitucional e uma obrigação do Estado brasileiro perante a comunidade internacional, já que o Brasil é signatário de tratados internacionais, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), os quais expressamente determinam que os Estados-parte promovam debates sobre papéis tradicionais de gênero.
Nesse contexto, pode-se dizer que "discutir gênero" não é nenhum "bicho de 7 cabeças" ou atentado aos valores humanísticos ou de respeito à dignidade humana. Bem ao contrário, os debates sobre gênero visam incluir sujeitos tradicionalmente excluídos - mulheres, transexuais, bissexuais, lésbicas, assexuais, homossexuais, indígenas, negras e negros - e trazer visibilidade aos mecanismos de opressão a que se encontram sujeitos. Trata-se de uma estratégia que busca justamente a reversão dessas opressões por meio do desvelamento dessas estruturas limitantes. O resultado é a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, voltada para um conceito de todos que realmente seja inclusivo.
É por esse e outros motivos que, quando falamos em direitos fundamentais ou direitos humanos, a mera afirmação da “erradicação de todas as formas de discriminação” não é suficiente quando não se observam os motivos pelos quais podem ocorrer os atos discriminatórios. Por isso a especificidade é importante: para identificar os marcadores que promovem a discriminação, tais quais gênero, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, classe etc. Trata-se de uma questão de visibilidade. Tudo que não tem nome ou não é especificado corre o grande risco de ser invisibilizado e, consequentemente, não discutido ou revertido.
Tamara Amoroso Gonçalves é Doutoranda do Programa de Direito da Universidade de Victoria (Canadá). Mestra em Direitos Humanos pela USP. Pesquisadora associada do Instituto Simone de Beauvoir (Universidade Concordia, Canada). Integrante do CLADEM/Brasil, do Grupo de Estudos sobre Aborto (GEA) e do Conselho Consultivo da Doctors for Choice Brazil. Autora de "Direitos Humanos das Mulheres e a Comissão de Direitos Humanos", pela Editora Saraiva.Daniela Rosendo é professora, mestra e doutoranda em Filosofia pela UFSC. Integrante do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil).
1 Comentário
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Muito bem escrito o artigo. Parabéns as autoras! continuar lendo