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16 de Abril de 2024

Mas alguém realmente vai preso por consumo de drogas no Brasil? - Parte 2

Publicado por Justificando
há 9 anos

Aproveitando a ideia iniciada em artigo passado[1], pretende-se, de forma breve, continuar a apresentação de situações jurídicas em que o consumo de drogas no Brasil promove real privação de liberdade – ao contrário do que imaginaria o senso comum, leigo ou jurídico pela mera leitura do os artigos 28 e seguintes, bem como o art. 48, § 1º da Lei de Drogas. Uma dessas situações ocorre no âmbito da execução penal, quando do cometimento de falta disciplinar de natureza grave.

Mas alguém realmente vai preso por consumo de drogas no Brasil? (Parte 1)

Embora a execução penal sempre tenha existido paralelamente ao direito penal (e muito antes, se partirmos da premissa de que o poder punitivo ao longo da história da humanidade trazia, em si, regulações mínimas de seu exercício), sua caracterização como um ramo do Direito relacionado ao fenômeno do poder punitivo é relativamente recente; e mais ainda, a compreensão de que possui natureza jurisdicional, sendo, portanto, limitada à estrita obediência dos princípios constitucionais e internacionais previstos no ordenamento jurídico[2]. Nesse contexto, a observância dos direitos fundamentais é um imperativo jurídico inafastável do exercício do poder punitivo, não apenas ao longo de uma investigação em sede policial, passando por uma acusação formalizada em um processo e culminando em uma condenação concretizada em uma sentença, mas, principalmente, quando da execução desta mesma sentença.

Ao longo da execução penal, o condenado[3], além de sofrer a restrição de sua liberdade e seus direitos (pela aplicação da pena, por óbvio) se sujeita a uma série de normas de disciplina, que compõem o chamado poder disciplinar na execução penal, impondo deveres de conduta ao apenado, limitados ao respeito de seus direitos fundamentais, de sua dignidade, não atingidos pela sentença ou pela lei (art. , LEP).

Assim, a lei, dentro desse âmbito normativo, prevê as faltas disciplinares, que no nosso Direito da Execução Penal encontram-se nos artigos 49 a 52 da LEP. Para o propósito do presente texto, faz-se alusão ao art. 52, caput, da LEP que afirma constituir falta de natureza grave a prática de crime doloso. Ou seja, cometendo o apenado um fato previsto como crime doloso, no âmbito da execução penal, a lei traz uma série de consequências severas, como regressão de regime (art. 118, I, LEP); perda do direito de saída temporária (art. 125, LEP); perda de até 1/3 do tempo de remição de pena (art. 127, LEP); revogação da monitoração eletrônica (art. 146-D, II, LEP); conversão de pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade (art. 181, § 1º, d, LEP), além de impedir a obtenção de indulto (art. , Decreto 8.380/2014).

Como dito, a lei dispõe que constitui falta grave a prática de fato previsto como crime doloso. Pois bem; o artigo 28 da Lei 11.343/06, que sanciona o porte de drogas para uso próprio, apesar de historicamente questionado acerca de sua natureza jurídica, é tido hoje como crime doloso. Assim sendo, sua prática por uma pessoa presa configura, a partir da lei, falta de natureza grave – o que traz as diversas consequências legais acima descritas, com a agravante de que o entendimento que predomina na doutrina e jurisprudência admite (i) a aplicação (para esse mesmo fato, praticado por um mesmo agente e pelos mesmos fundamentos) tanto de punições administrativas como da punição penal propriamente dita, prevista nos artigos 28 e seguintes da Lei de Drogas; e (ii) que o reconhecimento dessa falta grave pelo cometimento de fato definido como crime doloso (no caso, o consumo de drogas) no cumprimento de pena prescinde do trânsito em julgado da sentença penal condenatória no processo penal instaurado para apuração do fato, nos termos da recente súmula 526 do STJ, em flagrante violação ao princípio da presunção de inocência.

A jurisprudência dominante de nossos tribunais, partindo de uma subsunção cerrada, se satisfaz em conceber que o consumo de drogas é crime, e, sendo crime, constitui falta grave, e constituindo falta grave, enseja a aplicação de todas essas sanções descritas; e, em desrespeito à própria natureza jurisdicional da execução penal e dos princípios constitucionais e convencionais como a presunção de inocência, o devido processo legal, e a vedação do bis in idem, termina por punir o preso em forma e conteúdos muito mais gravosos do que prevê a própria Lei de Drogas, visualizando-se nefasta violação ao princípio da proporcionalidade.

Tampouco se pode argumentar que tais consequências seriam relacionadas ao fato de o sujeito encontrar-se preso; isto seria afirmar que a pessoa presa é, em suma, menos pessoa do que alguém livre (quando o que a execução penal atinge é apenas a sua liberdade ambulatorial, e não a sua dignidade), o que não encontra cabimento em face do princípio da não marginalização (ou não discriminação)[4], ancorado não apenas por toda a normativa internacional em que nos inserimos, como em nossa Constituição pelo art. , III c/c art. , III e IV, eliminando-se qualquer diferenciação odiosa, sobretudo no âmbito do Direito da Execução Penal.

Colocada a questão nos termos descritos, não parece equivocado concluir-se, de forma propositalmente pleonástica, que os presos são, de fato, presos na hipótese de consumo de entorpecentes, sofrendo ainda mais as consequências de nossa famigerada política de drogas, em que o crime de uso próprio desempenha papel estrutural.

Dia 19 de agosto de 2015 é a data em que o STF terá a oportunidade de dar uma mudança de rumos em nossa política de drogas (na qual a própria Corte se insere), extirpando de nosso Direito o crime de porte de drogas para uso próprio, aparentemente inofensivo, mas absolutamente letal contra adolescentes em conflito com a lei (como se analisou anteriormente) e presos adultos, todos em sua enorme maioria pobres, negros e marginalizados; espera-se que a Corte, nesse período emblemático por que passa o país, encontre na Constituição e na garantia dos direitos fundamentais a coragem de não deixar esta oportunidade passar.

Hamilton Gonçalves Ferraz é advogado e mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Uerj.


[1] http://justificando.com/2015/08/12/mas-alguem-realmente-vai-preso-por-consumo-de-drogas-no-brasil/

[2] Sobre isto, por todos, conferir ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Execução penal: teoria crítica. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 29-101; 103-104. [3] Embora estejamos a falar apenas da situação do condenado (para facilitar a compreensão do texto), importante fazer menção ao art. , p. U da LEP, que impõe aplicação das disposições de execução penal também ao preso provisório (sem condenação definitiva). [4] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Op. Cit., p. 46-57.

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