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23 de Abril de 2024
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    Conceito de Democracia envolve passar reformas por crivos populares em referendos

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    “A democracia no Brasil sempre foi uma lamentável mal-entendido” – disse Sérgio Buarque de Holanda em sua obra Raízes do Brasil ao se referir a um determinado período em que a democracia começa a surgir nos movimentos sociais, culturais e políticos bem como nos livros, mas que, no Brasil, servia apenas de enfeite para os discursos de uma minoria, uma aristocracia rural – não muito diferente dos dias atuais – que se consolidava no poder.

    Se me permite, Sérgio, eu gostaria de inverter o sentido da paradigmática frase para provar que, do contrário, a democracia foi muito bem entendida no Brasil.

    O termo democracia, do século XIX em diante, tornou-se comum no vocabulário jurídico-político representando um valor que deve ser constantemente buscado e preservado pelo Estado na condução da sociedade, sendo difícil de se imaginar um regime político na atual quadra histórica que se autodeclare “anti-democrático”. A democracia moderna tem como base valores ligados à igualdade e a liberdade – individual e política – enquanto cidadão de um determinado Estado, conferindo-lhe instrumentos para influenciar nas decisões estatais de maneira direta ou indireta, ao passo que também respeita sua esfera individual.

    Ocorre que a palavra democracia / demokratía não é uma criação moderna, mas remete inicialmente à antiguidade, em especial a pólis grega onde significava etimologicamente o “poder”, a “força” ou o “governo” do povo ou os “não eupátridas” [1]. Como será visto adiante, a demokratía, para muitos filósofos, era um termo pejorativo utilizado para se referir a um governo das massas em detrimento dos demais cidadãos, resguardando somente os seus interesses e, não como atualmente, buscando o interesse coletivo, com fim ao bem comum.

    Posto isso, não há dúvidas de que o que hoje se entende como democracia tem pouca ou nenhuma semelhança com o conceito cunhado na Grécia antiga porque entre a antiguidade e a modernidade sucederam-se uma série de eventos que cunharam novos valores na sociedade, tais como o cristianismo, as grandes reformas e o liberalismo, de modo que as diferenças entre as democracias modernas e as antigas vão muito além da questão territorial, envolvendo também os valores de cada tempo.

    O juízo acerca do regime democrático foi objeto de estudo de diversos filósofos, entre eles Platão e Aristóteles. O primeiro, crítico da democracia, afirmava em sua obra A República que a democracia seria um “governo dos loucos e viciosos”, instável por dispersar o poder político na mão de vários cidadão e fadado a ruir por não ser uma forma confiável e duradoura de comunidade. Assim, a liberdade que pressupõe a democracia minaria qualquer aspecto de autoridade dentro do governo e consequentemente o levaria à ruína. [2]

    Aristóteles também compartilha de uma visão pejorativa da democracia. Em sua obra A política, o filósofo grego formula a tipologia clássica das formas de governo as quais possuíam como elemento caracterizador o número de governantes, ou seja, o critério quantitativo dos detentores do poder. Trata-se da teoria tripartite das formas de governo. Para Aristóteles, elas se dividiam ainda em formas corruptas e formas puras. Quanto a essas: a monarquia ou governo de um, a aristocracia ou governo de poucos e a Politéia como o governo de muitos. [3] As formas corruptas ou imperfeitas seriam: a tirania para a monarquia, a oligarquia para aristocracia e a democracia ou oclocracia (domínio da massa) para a Politeia. [4]

    Para Aristóteles, portanto, a democracia equivalia não ao governo do interesse de toda sociedade, mas ao governo da massa, dos não eupátridas, dos pobres. A forma de governo que era tida como boa foi denominada Politeia – o que se denomina atualmente como política ou governo constitucional. A Politeia se diferenciava da democracia porque visa um governo voltado para o bem comum e não em favorecimento a uma determinada classe ou estamento. Busca-se o bem coletivo. Assim, a realização da justiça na comunidade dependeria largamente da organização institucional do poder e da divisão resultante das responsabilidades inerentes a ele. [5]

    Com a derrocada da pólis a democracia ficou esquecida em um longo intervalo de tempo, sendo recobrado posteriormente com as Revoluções liberais do século XVIII, entre elas com o movimento de independência dos Estados Unidos da América. Nesse contexto, a discussão acerca do regime político ideal é retomado por três nomes: John Jay, James Madison, Alexander Hamilton que, por meio de cartas e matérias de jornais que posteriormente deram origem a obra O Federalista discutiam sobre a situação política e qual a forma de governo ideal. Madison, de plano, rechaça a democracia (com base na democracia ateniense) afirmando que as massas estariam vulneráveis às paixões e que toda decisão deveria passar necessariamente por um “filtro” de cidadãos eleitos preparados para tomada de decisões pelo todo.

    Logo, para Madison, o que deveria ser levado em conta pela Constituição era o controle de uma suposta opressão das maiorias sobre as minorias. Ocorre que, o conceito de minoria, na época, como bem nota Roberto Gargarella [6], não estava ligado à etnia, cor, raça, nacionalidade, religião, mas sim a classe social dos grandes proprietários de terras ou nas palavras de Alexander Hamilton “the rich and well born”.

    Logo, o regime a ser privilegiado naquele momento não era a democracia, mas uma espécie de República ou sistema representativo.

    É somente na Revolução Francesa que o termo “democracia” é utilizado em referência a uma forma de governo que deve reunir todos os seres humanos na igualdade e nos plenos direitos de cidadania, afirmações que são retiradas do discurso de Robespierre no Comitê Constitucional sobre os limites do poder de voto, afastando a visão pejorativa que a acompanhava ao longo da história. [7]

    Voltando ao início, quando afirmamos – de maneira contrária a Sérgio Buarque de Holanda – de que, no Brasil a democracia foi muito bem entendida é no sentido que, nos discursos cotidianos, bem como na maneira como os instrumentos de democracia direta foram tratados pela Constituição de 1988 e pela Lei Complementar 9.079/98 [8] fica expresso o “medo” que se tem do povo, em muito se aproximando das críticas iniciais ao regime democrático, tanto na antiguidade, como no conteúdo das discussões nas primeiras Revoluções Liberais.

    O povo, portanto, não passa de um “ícone” para justificação dos poderes privilegiados, nas palavras de Friedrich Muller, instituída de forma pseudossacral, abstrata, servindo apenas para retórica dos discursos políticos sem tradução na realidade e que hoje, mais do que nunca, deve ser “gerido” “comandado”, “administrado” pela nova geração de políticos-gestores, ou só gestor, como preferem ser chamados [9]

    Ou seja, o que queremos afirmar até mesmo a democracia direta é uma ilusão – como o Direito, em geral, tem se mostrado ultimamente – dado que o plebiscito e o referendo necessitam ser convocados pelo Congresso[10]. Temos, portanto, um caso de uma “democracia direta-indireta” dado que seu exercício fica condicionado a boa vontade dos representantes do demos.

    É imprescindível que diante do impacto das Reformas – previdenciária e trabalhista – seja convocado um referendo para a posterior aprovação dos seus textos. Caso contrário, o Direito e a Constituição no Brasil vão continuar sendo – muito mais agora do que antes – uma mera ilusão.

    Erick Beyruth de Carvalho é Mestrando em Direito Constitucional pela PUC.SP. Membro do Grupo de Pesquisa em Epistemologia Política e Direito. Pesquisador CNPq. Advogado. [email protected]

    [1] Os eupátridas eram considerados os “bem nascidos”, faziam parte da aristocracia proprietária de terras e escravos em Atenas e, consequentemente, formavam a classe governamente na pólis.

    [2] DUNN, John. A história da democracia: um ensaio sobre a libertação de um povo. São Paulo: Editora Unifesp, 2016. p.56

    [3] ARISTÓTELES. A política. Editora Édipo. 2009.p.92

    [4] Para Karl Lowensetein, a Politeia é o que se denomina modernamente de Democracia Constitucional. Cf. LOWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitucíon. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970. p. 42

    [5] DUNN, John. A história da democracia: um ensaio sobre a libertação de um povo. São Paulo: Editora Unifesp, 2016. p.72

    [6] GARGARELLA, Roberto. Crisis de representacíon y constituiciones contramayoritarias. Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, núm. 2 (abril 1995), México : Instituto Tecnológico Autónomo de México, [s.a.], pp. 89-108; Ver também: ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 285-288.

    [7] DUNN, John. A história da democracia: um ensaio sobre a libertação de um povo. São Paulo: Editora Unifesp, 2016. p.166

    [8] Lei que Regulamenta o Plebiscito e o Referendo

    [9] MULLER, Friederich. Quem é o povo. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2013. p. 65

    [10] Art. 3o Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3o do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõem qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.

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