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19 de Abril de 2024
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    A ação que pode descriminalizar o aborto

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Não é de hoje que o STF é chamado para discutir a descriminalização de interrupção de gravidez. Isso foi feito em momentos diversos da história do Tribunal, em outras ações, com conteúdo e debates que somam à nova ação protocolada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL.

    A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 442) traz, no entanto, como novidade importante para o debate, o seu pedido definitivo: que os artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940, os quais justamente criminalizam o aborto, sejam declarados apenas parcialmente recepcionados pela Constituição Brasileira. Isso porque, o pedido realizado pela autora da ADPF tem como objetivo a descriminalização do aborto realizado até o primeiro trimestre da gestação, ou seja, até a décima segunda semana de gestação.

    A tese apresentada pelo PSOL, com apoio da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, reside na desconstrução de que existam ainda (se é que existiram algum dia…) razões jurídicas que sustentem a criminalização do aborto. O litígio movido apresenta argumentos que questionam a previsão legal, a partir de uma leitura dos precedentes nacionais, da legislação internacional e da experiência internacional (como a norte-americana, a alemã e a colombiana) dentro desta mesma temática, bem como a partir de uma dupla interpretação sobre a natureza jurídica da dignidade da pessoa humana e da realização do teste da proporcionalidade da medida estatal contida na lei penal. Esses argumentos apresentam um só resultado: o de que a tipificação penal da interrupção da gestação coloca sob as mulheres brasileiras, especialmente as mais jovens, negras, indígenas e pobres, uma situação de violação dos seus direitos constitucionais.

    São apontados pela autora da ação inúmeros preceitos fundamentais violados com a criminalização do aborto, como, por exemplo: dignidade da pessoa humana das mulheres; cidadania; princípio da não-discriminação; direito à saúde; direito à integridade física e psicológica das mulheres; proibição de submissão à tortura ou tratamento desumano ou degradante; a inviolabilidade do direito à vida e à segurança; o direito ao planejamento familiar; direito fundamental à liberdade; direitos sexuais e reprodutivos; princípio da igualdade de gênero; princípio da autonomia e da autodeterminação.

    A leitura da violação desses direitos foi apresentada de maneira interseccional, ou seja, foi levada em consideração a situação de maior vulnerabilidade de determinados grupos de mulheres que sofrem com a cumulação de vários marcadores sociais da diferença, como raça e situação social. A criminalização do aborto, nesse sentido, é devidamente apresentada como uma questão que fere a todas as mulheres, mas que golpeia em maior intensidade mulheres que estejam em uma situação maior de vulnerabilidade, por serem justamente aquelas que, ao se submeterem ao procedimento do aborto, sofrem com a clandestinidade e precariedade desses procedimentos.

    A ADPF 442 introduz também o tema da importância das cortes constitucionais (jurisdição constitucional) e da sua legitimidade para discutir o tema do aborto, a partir da apresentação e discussão das experiências paradigmáticas que marcaram a história deste debate até o presente momento. A discussão sobre a gradação da proteção da vida fetal em marcos temporais trimestrais e em marcos causais, bem como uma discussão sobre privacidade e autonomia sobre o próprio corpo e sobre a órbita do planejamento familiar foram remorados a partir dos emblemáticos casos enfrentados pela Suprema Corte Americana em Roe x Wade, nos casos alemães do Aborto I e Aborto II enfrentados pela Corte Constitucional, bem como pelo caso colombiano que culminou na sentença C-355/06, permitindo o aborto em determinadas situações naquele país.

    A descriminalização seria a conclusão de um percurso que vem sendo trilhado pelo próprio STF. A decisão sobre pesquisas com células tronco estabeleceu a prevalência da vida biográfica sobre a vida em estado potencial, o que pode servir de precedente para reconhecer o direito da mulher para decidir sobre a continuidade, ou não, da gestação. O tribunal também ampliou as hipóteses de aborto legal para gestação em caso de anencefalia. A mais recente decisão, tomada pela 1ª Turma, afirmou que não deve ser considerado crime de aborto a interrupção da gestação até a sua 12ª semana, mas teve efeito apenas entre as partes do processo.

    Mesmo assim, trata-se de decisão relevante, já que afirma que o criminalizar o aborto praticado voluntariamente nos três meses iniciais da gestação é inconstitucional, por afetar direitos fundamentais das mulheres, como a autonomia, a integridade física e psíquica, os direitos sexuais e reprodutivos, a igualdade entre os gêneros, além de apresentar um impacto desproporcional para as mulheres pobres.

    O ministro relator, Roberto Barroso, afirmou também que a criminalização do aborto nos três primeiros meses de vida violaria a proporcionalidade, na medida em que não traria redução do número de abortos ou maior proteção à vida de mulheres e fetos. A decisão não desconsidera que a vida seja um bem a ser protegido, mas aponta que sobrepor a proteção de um feto (ainda incipiente e dependente) a uma série de direitos da mulher seria desproporcional e inconstitucional, argumento que pode ser repetido pelo tribunal no julgamento da ADPF 442.

    Afinal, no que diz respeito à interpretação dos direitos constitucionais das mulheres brasileiras que são constantemente violados ao se criminalizar o aborto, a ação apresenta dois caminhos interpretativos. O primeiro demonstra que há violação da dignidade da pessoa humana, – e que essa violação contamina a inviolabilidade de diversos outros direitos mencionados acima, principalmente aquele que ofende a autonomia da mulher e a sua capacidade de autodeterminar-se quanto aos seus direitos sexuais e reprodutivos e de perseguir, portanto, o seu projeto de vida da forma como bem entender. Essa violação desencadeia outras ofensas aos direitos, como a desigualdade entre homens e mulheres e a existência de descriminação de gênero e, como já apontado pela abordagem interseccional, de raça e classe social.

    O segundo caminho interpretativo utilizado pelas advogadas do PSOL e Anis é o de que, ao se fazer uso do teste da proporcionalidade (mecanismo de interpretação frequentemente utilizado pelos ministros do STF nas diversas ações constitucionais em que há, supostamente, colisão de preceitos fundamentais) não há outro resultado senão o de que a criminalização da interrupção de uma gestação é medida estatal inadequada, desnecessária e desproporcional em relação aos fins a que se propõe. Impedir o aborto pelo viés do direito penal, apenas aprofunda a estigmatização social vivenciada por mulheres que se encontram em uma situação de gravidez indesejada ou não planejada. A criminalização do ato é ineficaz, na medida em que não reduz o número de interrupções realizadas no país e não aumenta o grau de educação sexual das inúmeras mulheres brasileiras. Seu efeito, pelo contrário, é perverso, pois afronta direitos constitucionalmente previstos.

    A ação foi distribuída para a Ministra Rosa Weber, que já votou pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Isso, porém, não parece ser capaz de tornar o caminho da ação menos duro. A manutenção da criminalização do aborto é bandeira de muitos movimentos conservadores e de parlamentares fundamentalistas autores de projetos que apresentam um cenário ainda mais restritivo para a fruição dos direitos reprodutivos das mulheres, atores que, muito provavelmente, também se manifestarão na ação no Supremo. A sorte é que as cortes constitucionais têm um talento natural para casos contramajoritários, como o do aborto. No tribunal, todas as vozes deverão ser iguais.

    Lívia Guimarães e Eloísa Machado é pesquisadora e coordenadora do Projeto Supremo em Pauta da FGV Direito SP.

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