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23 de Abril de 2024
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    O RDD e o pouco caso do Estado brasileiro com os Direitos Humanos

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    Em 17 de outubro de 2016, o Los Angeles Times publicou um editorial com o seguinte título: On the edge of humane (à beira da humanidade)[1], que tratava de uma dura crítica ao confinamento solitário nas prisões dos Estados Unidos. Para o periódico, a prática traz graves danos psicológicos: ansiedade, paranoia e alucinações. O texto menciona o caso de Kalief Browder, preso por três anos em Nova Iorque (dois deles em confinamento solitário) pelo crime de roubo. Sua acusação foi retirada (por falta de provas) e ele foi libertado. Após várias tentativas, ele finalmente conseguiu se suicidar, enforcando-se – antes de ser preso, nunca havia apresentado qualquer doença mental.[2]

    O editorial ainda noticia o homicídio de um agente penitenciário, praticado por um detento que ficou nas mesmas condições por um longo tempo. Relata o jornal algumas mudanças feitas nos Estados de Maine, Colorado e Washington, onde presos foram retirados das solitárias e encaminhados para unidades de tratamento mental, o que foi melhor para sua saúde e resultou em prisões mais seguras.

    No Brasil, temos o infamante RDD (Regime Disciplinar Diferenciado), nos termos do art. 52 da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei n. 10.792/2003. É cabível se houver, por parte do preso – provisório ou definitivo –, a prática de crime doloso, “quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas”. Suas características são: I- duração máxima de 365 dias, podendo ser prorrogados em caso de nova falta grave; II- recolhimento em cela individual; III- visitas semanais de duas pessoas, sem contar crianças, por duas horas; IV- saída da cela por duas horas diárias, para banho de sol. Pode ser decretado ainda aos presos “que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade” (§ 1º) e também sobre quem “recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando” (§ 2º).

    Em outras palavras, cabe por qualquer motivo.

    Ao conceber o RDD, foram olvidados, numa tacada só, os princípios da dignidade humana (art. , III, da CF), da prevalência dos direitos humanos (art. , II, da CF), da proibição da tortura e de tratamento desumano ou degradante (art. , III, da CF), da proibição de penas cruéis (art. , XLVII, e, da CF), além do objetivo fundamental da república de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. , I, da CF). Também foram atacados os artigos 5.1, 5.2, 5.6 e 7.3 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos[3]. Afora isso, não há como “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (art. da LEP) mantendo-o em condições subumanas no interior de uma micro cela por 22 horas diárias, durante 356 dias.

    É o Estado Penal (aquele que aposta na punição e na repressão para todas as mazelas sociais) elevado a sua última potência. É a confissão sem pudor do Estado de sua incapacidade de prevenir e evitar a ação criminosa de pessoas presas. E o que é pior: usando o sofrimento alheio como palanque político, pois tem sido recorrente governantes e órgãos públicos inflarem seus discursos com notícias de presos encaminhados para o regime. Tudo isso, é claro, sem que se diminua o poder de grupos criminosos que agem dentro e fora dos presídios – lembrando sempre que a criação e o fortalecimento das organizações criminosas devem-se às equivocadas e fracassadas políticas de segurança pública e penitenciária adotadas no país (deixemos esse tema para uma próxima oportunidade).

    Tramita no Supremo Tribunal Federal, desde 2008, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.162, ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em que se pleiteia o reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos legais que instituíram o regime disciplinar diferenciado[4]. A ação já tem a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o Conectas Direitos Humanos e o Conselho Regional de Psicologia do Estado de São Paulo na qualidade amici curiae. Uma ótima oportunidade para o Supremo Tribunal Federal mostrar que ainda é o guardião da Constituição, e extirpar de vez do ordenamento jurídico tamanho vilipêndio a direitos humanos dos mais caros.

    Para o Professor Juarez Cirino dos Santos, o regime é inconstitucional, porque, além de constituir violação da dignidade humana e representar a instituição de pena cruel:

    “a indeterminação das hipóteses de aplicação do regime disciplinar diferenciado infringe o princípio da legalidade (art. , XXXIX, da Constituição da República), porque subordina a aplicação da sanção disciplinar a critérios judiciais subjetivos e idiossincráticos: primeiro, é indeterminável a quantidade de alteração da normalidade necessária para configurar o conceito de subversão da ordem ou da disciplina (art. 52, LEP); segundo, é indeterminável a quantidade de risco definível como alto para a ordem e segurança da prisão ou da sociedade (art. 52, § 1º, LEP); terceiro, é indefinível o conceito de fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, § 2º, LEP)”.[5]

    Georg Rusche e Otto Kirchheimer, em seu histórico “Punição e estrutura social”, na primeira metade do século passado, já haviam chegado à seguinte conclusão:

    “A experiência mostrou que a prisão celular foi um fracasso (….). O entusiasmo dos escritores contemporâneos quanto às possibilidades oferecidas pelo confinamento solitário para o desenvolvimento do indivíduo esconde a ausência de qualquer tentativa de combater as causas reais que conduzem ao crime. (…) para a maioria dos condenados ele significa apenas doença, loucura e agonia e os mantém mais desesperançados. (…) os danos foram consideravelmente maiores que os benefícios.”

    E arrematam:

    “O confinamento solitário, sem trabalho ou com um trabalho puramente punitivo, é um sintoma de uma mentalidade que, como resultado do excedente populacional, abandona a tentativa de encontrar uma política racional de reabilitação, ocultando este fato com uma ideologia moral”.[6]

    Na mesma obra, Rusche e Kirchheimer mencionam a impressão que Dickens teve ao visitar prisões nos Estados Unidos onde havia confinamentos solitários, e seu relato é digno de nota:

    “Acredito que muito poucos homens são capazes de estimar a quantidade de tortura e agonia que esta dura punição, prolongada por anos, inflige nos sofredores. (…) sinto que há um abismo terrivelmente profundo que somente os castigados compreendem e que ninguém tem o direito de impor a seu próximo uma pena semelhante. Considero esta manipulação lenta e diária dos mistérios da mente infinitamente pior que qualquer tortura física; isto porque as marcas horríveis não são palpáveis para a vista ou para o tato como as cicatrizes na pele, porque suas feridas não se encontram na superfície e porque arranca gritos que os ouvidos humanos não podem ouvir”.[7]

    Certa vez, assisti a um filme – cujos nome e autor principal não me recordo – que tratava sobre a perseguição de agentes americanos a terroristas islâmicos. Em certa altura da trama, um possível terrorista é preso, e um dos personagens prepara-se para torturá-lo durante um interrogatório, em razão de sua resistência em prestar informações. O outro personagem tenta impedi-lo, sem sucesso, e diz algo como: “a partir do momento em que você fizer isso, nós nos igualaremos a eles, e eles terão vencido”.

    Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro da LEAP-Brasil.

    [1] Disponível em: https://www.pressreader.com/usa/los-angeles-times/20161017/281646779664654. Acesso em 09/03/2017. (tradução livre)

    [2] O caso é mencionado também no filme “A 13ª Emenda (13th)” – dirigido por uma importante ativista negra do país, a cineasta norte-americana Ava DuVernay.

    [3] Artigo 5. Direito è integridade pessoal.

    1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.

    2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

    (…)

    6. As penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados.

    Artigo 7. Direito à liberdade pessoal

    (…)

    3.Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.

    [4] http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2643750

    [5] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. – Curitiba, PR: ICPC, 2014. p. 497.

    [6] RUSCHE, George, OTTO, Kirchheimer. Punição e estrutura social. Coleção Pensamento Criminológico. 2. ed. Tradução de Gizlene Neder. Editora Revan, 2004. p. 192.

    [7] Idem. p. 191-192.

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