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19 de Abril de 2024
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    A celebração da prisão provisória pela administração penitenciária paulista

    Publicado por Justificando
    há 7 anos

    No dia 10 de fevereiro foi inaugurado em Icém, no interior de São Paulo, o Centro de Detenção Provisória Marcos Amilton Raysaro, na presença do Governador do Estado Geraldo Alckmin e do Secretário da Administração Penitenciária Lourival Gomes, em solenidade divulgada de antemão e transmitida ao vivo nas redes sociais. Em tom comemorativo, o evento criado no Facebook anunciava os atributos nova unidade, que “conta com a abertura e fechamento de porta de cela automatizados”, e convidava a todos para acompanhar em tempo real a inauguração: “Fiquem atentos, pois estaremos ao vivo durante o evento com lives de toda a programação”. [1]

    Surpreendido com o entusiasmo do discurso, um espectador chegou a questionar o motivo de “tanta alegria na inauguração de um CDP”, propondo que as comemorações fossem reservadas às inaugurações de escolas e afins, e não de “prédios destinados ao encarceramento em massa da pobreza e da raça”, ao que foi prontamente respondido pelo perfil oficial da Secretaria: “A SAP se destina a promover a execução administrativa das penas privativas de liberdade, das medidas de segurança detentivas e das necessidades de assistência e promoção ao preso e ao egresso, para sua reinserção social, preservando sua dignidade como cidadão. Para tanto, é necessário que novas unidades sejam construídas”. Será mesmo necessário?

    De fato, causa estranheza a exploração político-midiática de fato dessa natureza, como se a perspectiva de mais prisões cautelares fosse algo a ser celebrado. É notório que já existe um excesso no uso dessas prisões que, ao invés de serem aplicadas em casos excepcionais, como determina a lei [2], são, na prática, a regra. Segundo o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias [3], 41% das pessoas privadas de liberdade eram presos sem condenação, sendo que 60% dos presos provisórios estavam custodiados há mais de noventa dias aguardando julgamento. [4] Embora o Estado de São Paulo não tenha fornecido este último dado, em visitas aos Centros de Detenção Provisória da capital é extremamente comum encontrar presos “no aguarde” por período bem superior àquele.

    Também bastante frequente é a situação dos presos que, já condenados, permanecem por anos em centros de detenção provisória antes de serem transferidos ao estabelecimento adequado para o cumprimento da pena – alguns chegam a cumprir a pena “de ponta” em locais destinados a pessoas presas cautelarmente. [5]

    A gravidade disso reside no fato de as condições do aprisionamento nesses locais serem significativamente piores que as das penitenciárias: tendo sido projetados para abrigar presos provisórios por curto período até o julgamento, os CDPs possuem estrutura precária e não costumam dispor de espaços para atividades laborais ou educacionais [6] – privando a maior parte dos ali detidos da possibilidade de remir pena por trabalho ou estudo, direito assegurado na Lei de Execução Penal [7]; além disso, tais unidades apresentam uma taxa média de ocupação de 192%, (consideravelmente superior às cifras referentes ao regime fechado e ao semiaberto) [8]; essa superlotação, por sua vez, agrava as condições de salubridade, higiene e intimidade, deteriorando a saúde física e mental dos ocupantes; por outro lado, a quantidade excessiva de pessoas presas inviabiliza a prestação de serviços básicos de saúde, assistência social, atendimento psicológico, entre outros, diante do número reduzido de profissionais nesses estabelecimentos – para citar apenas alguns dos problemas. A degradação é tamanha que a remoção para uma penitenciária costuma ser aguardada e comemorada como se fosse a própria liberdade.

    Para além dos dados mensuráveis, há na prisão o componente subjetivo de apropriação do tempo de vida e dos projetos existenciais dos acusados e apenados, já que, como ensina Ana Messuti [9], os muros da prisão não marcam apenas a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. No romance O Estrangeiro, o protagonista Mersault narra: “Tinha lido que na prisão se acaba perdendo a noção do tempo. Mas para mim isto não fazia muito sentido. Não compreendera ainda até que ponto os dias podiam ser, ao mesmo tempo, curtos e longos. Longos para viver, sem dúvida, mas de tal modo distendidos que acabavam por se sobrepor uns aos outros. E nisso perdiam o nome”. [10]

    Segundo Foucault, a quantificação da pena segundo a variável do tempo permite que ela pareça uma reparação, ao atribuir-lhe uma medida econômico-moral em que os dias, meses e anos nos quais se contabilizam os castigos expressam uma equivalência com a lesão sofrida não apenas pela vítima, mas por toda a sociedade [11]. Na prisão cautelar, qualquer racionalização se dilui em meio à incerteza, e resta somente a transformação irreversível que, independentemente do que vier a ocorrer, o tempo de prisão terá operado gradualmente no indivíduo, por mais peculiar que seja sua passagem naquele espaço (MESSUTI, 2003, p. 50).

    Daí o personagem de Albert Camus relatar: “No início da minha detenção, no entanto, o mais difícil é que tinha pensamentos de homem livre. Por exemplo, desejo de estar numa praia e de descer para o mar. Imaginando o barulho das primeiras ondas sob as solas dos pés, a entrada do corpo na água e a libertação que encontrava nisso: sentia, de repente, até que ponto as paredes da prisão me cercavam. Mas isto durou alguns meses. Depois só tinha pensamentos de prisioneiro. Aguardava o passeio diário no pátio ou a visita do advogado” (CAMUS, 2011, p. 80-81).

    Isso posto, é preciso desmistificar a falaciosa ideia de que a solução para os males do sistema carcerário está na construção de novos presídios. Os dados do Ministério da Justiça demonstram que, apesar de a quantidade de vagas ter quase triplicado entre 2000 e 2014, o déficit mais do que duplicou, em razão do crescimento exponencial da população prisional. Nesse período, apesar da ampliação da capacidade do sistema, não se verificou qualquer melhora no tocante às condições de aprisionamento. Assim, é evidente que os problemas aqui levantados têm na sua origem o uso indiscriminado da prisão como mecanismo de controle social – a partir de um evidente recorte racial e de classe –, ainda mais irracional em se tratando da prisão provisória, que atinge indivíduos juridicamente inocentes, de modo que qualquer tentativa honesta de solução passa pela urgente contenção dos mecanismos judiciais e administrativos que operacionalizam o encarceramento em massa da pobreza e, no particular, a generalização do uso da prisão cautelar como pena antecipada [12] – bem como o uso de locais de detenção temporária como depósito de presos condenados que não têm para onde ser conduzidos.

    Sobre o tema, é valiosa a lição de Aury Lopes Junior, para quem a banalização excessiva das prisões cautelares, desnaturando-se o caráter excepcional que condiciona sua legitimidade, está relacionada ao seu uso simbólico na construção de uma imagem ilusória de eficiência do aparelho repressor estatal e do sistema de justiça perante a opinião pública, sobre a qual se produz, com isso, um efeito sedante. Conclui, assim, que o problema por trás da massificação das prisões provisórias não é de ordem legislativa, e sim cultural. [13]

    Nesse contexto, em 2013 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, após constatar o uso abusivo das prisões cautelar no continente, e que este quadro afeta de maneira desproporcional pessoas pertencentes a grupos economicamente mais vulneráveis, recomendou que os Estados intensifiquem esforços e assumam a vontade política necessária para erradicar o uso da prisão preventiva como ferramenta de controle social ou como forma de pena antecipada, bem como para assegurar que seu uso seja realmente excepcional, incitando-os a promover uma verdadeira mudança de paradigma na cultura e prática judiciais em torno do tema. [14] O relatório da CIDH destaca, ainda, que a construção de estabelecimentos penitenciários não constitui, em si, uma solução adequada nem sustentável aos problemas identificados, devendo ser priorizadas medidas conducentes a reduzir o emprego e a duração das detenções provisórias. [15]

    Entendemos, nessa perspectiva, que a ampliação do sistema carcerário não merece ser interpretada como progresso sob nenhum ponto de vista – seja da segurança pública, seja dos direitos dos acusados e condenados –, e que a construção de novas unidades prisionais não apenas não deve ser comemorada como avanço, sob pena de verdadeira celebração do sofrimento humano, como vai na contramão das mudanças que se impõem para a redução dos danos produzidos pelo atual estado de coisas, ao materializar uma resposta meramente simbólica que oculta ao mesmo tempo que instrumentaliza a perpetuação do problema que aparenta resolver.

    Vanessa Morais Kiss é advogada voluntária da Pastoral Carcerária da Arquidiocese de São Paulo.

    [1] Disponível em: . Acesso em 11 fev. 2017.

    [2] Art. 282, § 4º e do Código de Processo Penal, entre outros.

    [3] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen, jun. 2014.

    [4] Somente cerca de 37% das unidades prisionais informaram deter o controle dessa informação.

    [5] “É comum observar entre os presos provisórios posteriormente condenados por furto simples, que a pena deles é cumprida quase integralmente, quando não integralmente, nos CDP’s. Isso porque são penas menores que dois anos, sendo que o processo demora meses para ser julgado, depois há a demora de meses para a transferência para penitenciárias por falta de vagas (soma-se a este problema a demora do judiciário em abrir o processo de execução para que sejam realizados os pedidos de benefício, os quais também demoram para ser julgados).” PASTORAL CARCERÁRIA. Tortura em tempos de encarceramento em massa, São Paulo, 2016.

    [6] Idem.

    [7] Art. 126.

    [8] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen, jun. 2014.

    [9] MESSUTI, Ana. O tempo como pena. Trad. Tadeu Antonio Dix Silva e Maria Clara Veronesi de Toledo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003, p. 33.

    [10] CAMUS, Albert. O estrangeiro. 32ª ed. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 84.

    [11] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 26ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 196.

    [12] Nesse ponto, significativo o retrocesso representado pelas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal chancelando a prisão após condenação em segunda instância (ADCs 43 e 44).

    [13] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 602.

    [14] CIDH. Relatório sobre o uso da prisão preventiva nas Américas, OEA/Ser.L/V/II. Doc., 30 dez. 2013, Cap. VIII, par.326.

    [15] Idem, par.293.

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