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26 de Abril de 2024

O contraditório para além do fla-flu

Publicado por Justificando
há 7 anos

Uma breve consideração

Não acredito que seja necessário repisar o perigo de substituir o Direito por juízos morais ou políticos, ou mesmo de se aceitar decisionismos.

Tome-se o exemplo da luta constante de Alexandre da Rosa, Lenio Streck, Aury Lopes, dentre tantos outros, por um garantismo processual. E isso não quer dizer nem sequer renovar (necessariamente) a legislação.

As garantias do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência não são meros enfeites. O STF já fuzilou esta última, reescrevendo a Carta da Republica, e o momento político atual parece exterminar as outras duas de maneira estarrecedora.

Não pretendo citar eventos específicos, pois não será necessário. A descrição genérica será suficiente para a identificação destes acontecimentos cotidianamente, e que revelam um pouco da hipocrisia nossa.

A garantia do contraditório

A Constituição Federal de 88 protege no art. o contraditório (inciso LV). Trata-se de fato fundante e essencial de um Estado Democrático de Direito. Não se pode fazer democracia seriamente com base nas acusações impassíveis de serem refutadas, não sendo importante o quão verossímeis pareçam.

Isso, todavia, não quer dizer que o contraditório tenha dimensão meramente formal.

Não significa que o contraditório é a resposta pela simples resposta. Isso seria reduzir à atividade jurídica e jurisdicional a um jogo político, de cartas marcadas. Afinal, seria uma legitimação meramente pela forma e não por seu conteúdo, que é incompatível com o Estado de Direito.

Podemos visualizar a referida questão com um exemplo que, embora extremo, é didático: um determinado réu é acusado de um crime qualquer e seus advogados promoves, dentro dos ditames legais, adequada defesa no sentido da negação do fato. Isto é, há contundente alegação por parte da defesa não que o réu não tenha cometido o crime, mas que referido crime jamais ocorrera!

Seria absurdo concluir que o magistrado poderia ignorar tal consideração e condenar o réu. E isso não é porque necessariamente a prova da inocência é, talvez, patente. Na verdade, é pela possibilidade dele ser inocente.

As palavras, inclusive, revelam um pouco do pensamento dominante. Fala-se muito no réu provar sua inocência, revelar um álibi. Ora, não é o dever do Parquet (como regra, é claro) de comprovar sua culpa? O Supremo Tribunal pode até ter esfacelado o sentido constitucional da garantia de não culpabilidade, mas não se pode extrair outro absurdo disso!

A própria noção de crime (que, como bem lembra Nilo Batista, não é ontológica – isto é, não há crime por essência) é algo que nos é extraordinário. Por essa razão, entendo eu, compreendemos ser o contraditório importante, pelo fato de que tal situação extraordinária não pode ser tratada de maneira ordinária.

Em outras palavras, é razoável em certos ramos do Direito que possamos trabalhar com presunções (ninguém afirmará ser desarrazoada a previsão do Código Civil no sentido de presumir – ou dispensar, caso prefira – o consilium fraudis no caso de negócio jurídico gratuito, no art. 158), ou até mesmo em nossas vidas pessoais.

Ainda, em certos campos do Direito, pode-se trabalhar com a inversão do ônus da prova. Em alguns casos, trabalhar estaticamente com o onus probandi se mostra como requisitar da parte autora verdadeira probatio diabolica.

Entretanto, no Direito Penal, lida-se com a liberdade da pessoa. As considerações devem ser diferentes, sob pena de tratarmos ramos absolutamente divergentes com uma mesma proposta, isto é, pretender que o direito material do processo não-penal seria suficiente.

Como afirmei, o crime é um evento extraordinário. Como gosta de afirmar o Ministro Marco Aurélio, do STF, não presumo o extraordinário. Mais ainda, nem o ordinário gosto de presumir, pois a realidade costuma ter sua forma peculiar de mostrar nosso engano.

Com desassombro, afirmo que o contraditório é uma garantia, também, para o combate da criminalidade. Não se trata de possibilitar o uso de instrumentos processuais protelatórios, mas sim de promover os direitos fundamentais da pessoa humana. Não é sem razão que se fala em haver três dimensões (ou direitos subentendidos) do contraditório substancial: direito à informação, reação e consideração (oriundos das noções de Recht auf Information, Recht auf Äusserung e Recht auf Berücksichtigung).

Ou seja, o contraditório subentende a noção de ter o direito de ser informado de determinadas questões, poder sobre elas haver manifestação e esta manifestação ser importante para o processo. A falha em qualquer desses níveis é uma agressão imperdoável ao direito de defesa.

E o que tem isso a ver com o momento político atual?

Com a Operação Lava Jato, começou um grande movimento no sentido de, principalmente, aguardar colaborações premiadas. A simples citação é um desastre político sem precedentes.

Igualmente, verifica-se que a segurança pública, via de regra, não melhorou.

Dito de outra maneira, a criminalidade não está reduzindo. Em boa anetoda, a melhor forma de zerá-la seria revogando o Código Penal e a legislação extravagante, mas isso não é medida que se defenda seriamente no estado atual.

A população, visivelmente revoltada, parece não mais ouvir o grito dos inocentes. Como adverte Celso Lafer, não é possível viver dignamente numa comunidade política corrompida. Então, com cada vez mais escândalos, conspurca-se a dignidade das pessoas diariamente.

Com isso, a reação me parece visceral: o afastamento desses indivíduos desviantes do convívio (e utilizo afastamento num sentido lato, vez que isso pode ser pelos clamores por decretos prisionais ou mesmo linchamentos – um afastamento, para utilizar-me de eufemismo, definitivo e arbitrário, por assim dizer) social. E para isso passa-se por cima do contraditório. São os falsamente acusados, na classificação de Howard Becker acerca do desvio. Pode-se ver, em certo sentido, a mesma preocupação trazida pela labelling approach, bem desenvolvida por Alessandro Baratta.

Não raro, observo em postagens nas redes sociais, acusações das mais graves e imediata reação das pessoas, tanto em apoio à vítima como em repúdio ao acusado, muitas vezes citado nominalmente sem ter direito de se manifestar acerca da situação.

Isso varia desde acusações de crimes menos graves, como furtos com imagens do suposto gatuno, e crimes mais perniciosos como crimes contra a dignidade sexual (estupro, via de regra) e contra a Administração (principalmente, corrupção). Não raro os primeiros são divulgados com dados do suposto agressor e um relato da vítima, enquanto os segundos são fundados mormente em colaborações premiadas (se pensarmos no âmbito federal e com políticos envolvidos).

O que verifico nesta sintética análise é que os discursos convenientemente mudam. Em termos de pessoas públicas do âmbito político, não raro vejo postagens no sentido de que um membro da oposição foi delatado algumas tantas vezes, antecipando inaudita altera parte um juízo de culpabilidade. Quando, eventualmente, o chicote muda de mão, o discurso se altera no sentido de ser possibilitada a prova de sua inocência durante o processo.

Isso não é noção de contraditório que se possa defender.

Uma norma constitucional não pode ser relativizada e menos importante quando a pessoa for política ou moralmente inconveniente. Seria verdadeiro vilipêndio ao Estado de Direito! A partir do momento em que passamos a não nos importar com as garantias processuais de todos aqueles que não nos convêm, quem restará para se importar conosco (lembrando que os outros também não se importarão com as garantias de seus “compatriotas” – uma combinação explosiva: ninguém se importando com ninguém!).

Um ode ao contraditório

O Direito brasileiro passa por momentos conturbados. Decisões que fragilizam a autonomia deste ramo, substituição dele por considerações subjetiv (ist) as ou métodos que “resolvem os hard cases [sic]” (como a famigerada ponderação).

Num momento em que o país está aparentemente combatendo de maneira veemente a corrupção, pode parecer até mesmo que o discurso seja “a favor da criminalidade”, o que quer que isto signifique (ela me afeta também, sabe?). Como antes falei, não basta punir por punir.

É necessário que punamos (a) culpados, (b) com base em provas lícitas e robustas e (c) com as garantias inerentes ao devido processo legal. Se o Estado, detentor monopolista do jus puniendi pune desrespeitando algum (ns) dos três itens acima mencionados, sua legitimidade é enfraquecida e sofre terrível risco de condenar injustamente.

Entretanto, o texto tem um significado maior, assim quero crer. O contraditório, como dissertei aqui não tão brevemente, tem uma dimensão importantíssima como garantidor epistêmico dos fatos. Raramente, uma situação social prescindirá dele para ser delineada perfeitamente. Uma imagem aparentemente revoltante pode esconder um significado desconhecido, pelo simples fato de que ninguém o quis ouvir.

Muitos mataram e cometeram atrocidades no país, é verdade. Assim, poderia surgir o questionamento: “suas vítimas não tiveram chances e direitos, então por que deveria ele ter?” Imagino que as respostas são simples: em primeiro lugar, para sabermos se (1) o crime ocorreu e (2) quem o cometeu foi o acusado (e, ainda, se o fato além de típico foi ilícito, culpável e punível). Em segundo lugar, evidentemente, porque se tomarmos os direitos do acusado, estaremos agindo da mesma forma que ele para com sua (s) vítima (s).

Não imagino que a solução das ilicitudes sejam mais ilicitudes.

Saulo Gonçalo Brasileiro é estudante da Faculdade de Direito do Recife (UFPE)

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2 Comentários

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Acredito somente na redução dos crime violentos quando o criminoso souber que sua sentença seria pena de morte.Vamos tentar ao menos esta iniciativa para ver alguma mudança á médio prazo. continuar lendo

Se pudesse ser implantada a pena de morte no Brasil, provavelmente nas cadeiras elétricas, nas forças e etc. não encontraríamos representantes da alta sociedade. Da mesma forma que a lei comum, a pena de morte seria mais uma forma de eliminar pobres. Esqueçam esses sistemas primitivos de punição. Temos que investir em escolas, saúde e gerar empregos dignos. continuar lendo