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25 de Abril de 2024

STF: um tribunal amigo “apenas” de liberdades individuais de autonomia privada?

Publicado por Justificando
há 7 anos

“A Suprema Corte é a última trincheira da cidadania”. Tem se mostrado falha nos últimos tempos essa afirmação, tão característica da competência judicial para a invalidação de leis inconstitucionais para fazer valer os valores comunitários constitucionalmente consagrados, a qual é, por vezes, lembrada pelo Ministro Marco Aurélio. Isso porque recentes decisões do Supremo Tribunal Federal têm feito cair sua aura de Corte defensora dos direitos e garantias fundamentais – pelo menos quanto aos direitos sociais e mesmo alguns individuais.

O título do presente artigo consiste em uma triste impressão de tempos recentes, por recentes decisões do STF claramente refratárias a direitos sociais, ao ponto de já se estar falando que as tão propaladas e polêmicas reformas trabalhista e da Previdência Social não precisariam mais ser feitas pelo Legislativo e Executivo, já que estariam sendo implementadas pelo Judiciário. Isso não obstante continue a se celebrar e louvar a atuação da Corte na garantia de direitos fundamentais de minorias e grupos vulneráveis na última década, que não podem ser menosprezadas (daí as aspas no “apenas” do título). Não se quer dizer que a Corte não erre em casos de direitos individuais e não acerte em casos de direitos sociais: é impossível pretender esgotar a atuação de uma Corte, ainda mais de uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional, em um título. Apenas se pretendeu relatar uma aparente tendência contemporânea.

Para integrantes de minorias e grupos vulneráveis em geral, a última década tem sido profícua na afirmação de direitos fundamentais pelo Supremo Tribunal Federal, na garantia da autonomia privada de cidadãs e cidadãos. Ou seja, seu direito de viverem suas vidas como bem entenderem, sem prejudicar terceiros – conteúdo do direito fundamental à liberdade desde pelo menos a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pós-Revolução Francesa. Sem seguir uma ordem cronológica e sem ter pretensão de completude, podemos citar as seguintes decisões paradigmáticas do STF, em legítimo exercício de sua função contramajoritária na garantia de direitos fundamentais, que reconheceram:

(i) a união homoafetiva como família conjugal merecedora do regime jurídico da união estável, com mesmos direitos da união heteroafetiva no Direito das Famílias[1]; (ii) o direito ao aborto de fetos anencéfalos (antecipação terapêutica do parto, na expressão do hoje Ministro Roberto Barroso)[2]; (iii) a constitucionalidade daLei Maria da Penhaa, afastando a absurda alegação de violação à igualdade entre homens e mulheres por lei que visa proteger estas de uma conduta opressiva de ocorrência quantitativamente muito superior à violência doméstica eventualmente praticada contra homens[3]; (iv) o caráter de ação penal pública incondicionada da ação penal por violência doméstica, como forma de se garantir maior proteção à mulher vítima de violência doméstica, que antes se via constrangida pelo agressor a “desistir” do processo e, assim, a não realizar a “representação” então tida como necessária[4]; (v) a inconstitucionalidade da discriminação a pessoas com tatuagens em editais de concursos públicos, por sua flagrante arbitrariedade[5]; (vi) a inconstitucionalidade da discriminação de pessoas com deficiência em editais de concursos públicos, igualmente por flagrante arbitrariedade, excetuadas funções que não podem ser exercidas em razão da deficiência, mas rechaçando a discriminação para cargos em que a deficiência seja irrelevante[6]; (vii) a constitucionalidade da chamada Marcha da Maconha e, por igualdade de razões, de manifestações pleiteando a descriminalização de condutas[7] [do que se deve excetuar, acrescente-se, casos extremos, de condutas opressivas a terceiros, não se admitindo, por exemplo, uma marcha para a descriminalização do estupro, como absurdamente uma página de rede social já defendeu]; (viii) o verdadeiro “estado de coisas inconstitucional” existente nos presídios brasileiros, determinando algumas (tímidas) providências ao Executivo para sanar tal circunstância[8]; (ix) a proibição da discriminação de crianças e adolescentes com deficiência nas mensalidades escolares, proibindo-se a cobrança de mensalidade diferenciada para garantia da educação inclusiva a ela constitucionalmente devida (em razão da imposição constitucional de vedação de discriminações e da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, internalizada com força de emenda constitucional pelo rito do art. 5º, § 3º)[9]; (x) o direito a pesquisa com células-tronco embrionárias, sem condicionantes distintas das estabelecidas em lei[10]; (xi) a constitucionalidade das cotas universitárias, raciais e sociais[11].

As decisões citadas merecem ser comemoradas por seu viés de proteção aos grupos sociais respectivos, reconhecendo sua vulnerabilidade social e a necessidade de sua proteção pelo Estado, por intermédio de ações afirmativas. Ou seja, por condutas positivas do Estado na garantia dos direitos positivados, com o intuito de assegurar as afirmações declaratórias de faculdades e benefícios constitucionalmente consagrados. Para os fins desse artigo, não comentarei cada qual dessas decisões, cujas conclusões consideramos acertadas.

Como se pode ver, a maioria das decisões citadas e que merecem louvor afirmaram os direitos de autonomia privada de minorias e grupos vulneráveis e o consequente direito à não-discriminação por força de meros moralismos majoritários. Uniões homoafetivas, mulheres grávidas de fetos anencéfalos, pessoas com deficiência, pessoas com tatuagens, presidiários (as) e pessoas que pleiteiam a descriminalização das drogas são vítimas de notórias discriminações sociais por moralismos diversos. A pesquisa científica com células-tronco embrionárias se enquadra nessa lógica pelas questões morais envolvidas na discussão sobre o “início da vida”.

E, a despeito desses fortes e notórios preconceitos sociais, o STF afirmou os direitos dos grupos estigmatizados em questão, no legítimo exercício de sua função contramajoritária, ou seja, na sua função de Corte Constitucional garantidora dos direitos e garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito, mesmo contra a vontade de maiorias ocasionais (ou mesmo perenes). Trata-se de questão que sempre suscita controvérsia na filosofia político-constitucional, mas que entendo não violar a democracia pela eterna possibilidade do Parlamento mudar a legislação interpretada pelo Judiciário, mudar mesmo a Constituição e, no limite, a população pode convocar nova Constituinte se entender que alguma “cláusula pétrea” não é socialmente mais conveniente para a comunidade. Ao passo que democracia não é sinônimo de “ditadura da maioria”: sendo a democracia o governo do povo, pelo povo e para o povo e sendo minorias e grupos vulneráveis integrantes do “povo”, a própria democracia demanda pela sua proteção, com igual respeito e consideração (Dworkin) relativamente à maioria, ainda que não consigam uma maioria parlamentar para tanto. Mas este não é o momento para aprofundar essa questão.

Mas, em sentido diametralmente oposto às festejadas e louvadas decisões acima citadas, recentemente o STF tem proferido decisões francamente contrárias a direitos sociais (os chamados “direitos de segunda dimensão”) e mesmo a algumas liberdades sociais, nos âmbitos penal, fiscal, trabalhista e previdenciário, mediantes as quais: (i) contra otexto constitucionall positivo, afirmou-se que a regra constitucional da presunção de inocência valeria apenas até o julgamento de segundo grau, mesmo otexto constitucionall positivo exigindo trânsito em julgado para tanto[12]; (ii) permitiu-se a quebra do sigilo bancário de cidadãs e cidadãos por parte do Fisco, desrespeitando a reserva de jurisdição (necessidade de autorização judicial) constitucionalmente exigida para tanto, absurdamente falando-se em “transferência de sigilo” quando o que há é verdadeira quebra de sigilo por parte do diretamente interessado na devassa das contas do (a) contribuinte (o Fisco)[13]; (iii) reconheceu-se a “prevalência do negociado sobre o legislado” (sic) em acordos entre sindicatos de trabalhadores e empregadores, trocando-se um direito garantido pela legislação por outro, “acordado” em acordo coletivo entre as entidades sindicais[14], desde que garantido um “patamar civilizatório mínimo” (sic)[15] ou dos “limites da razoabilidade”, em clara presunção de igualdade de condições entre sindicatos patronais e laborais, quando a verdade é que muitos sindicatos de trabalhadores não têm força equivalente aos patronais, donde descabida a generalização afirmada pelo STF; (iv) negou-se o direito à desaposentação, permitindo-se que as contribuições daqueles (as) que se veem obrigados (as) a trabalhar após a aposentadoria para terem uma renda digna sirvam apenas ao custeio do sistema, sem benefício direto, discriminando-os relativamente a trabalhadores em geral, o que tende a estimular o mercado informal de trabalhadores (as) aposentados (as)[16]; (v) admitiu corte confessamente discriminatório de verbas orçamentárias da Justiça do Trabalho, mesmo com a confissão parlamentar incontroversa, do relator do orçamento, de que isso se deu para servir como uma “reflexão” para a Justiça do Trabalho, cuja jurisprudência que a seu ver estimularia a judicialização de conflitos – e o relator reconheceu em seu voto vencedor a presença “confessadamente uma motivação ideologicamente enviada”, o que motivou os votos vencidos a declararem inconstitucional esse corte orçamentário discriminatório, por arbitrário, imoderado, irrazoável e abusivo (mas o relator, incrivelmente, decidiu presumir que a fundamentação dos/as demais parlamentares não teria sido essa…)[17]; (vi) autorizou-se o corte do ponto de greves no serviço público, mesmo que lícitas, tendo o Ministro Fux apresentado como um dos “fundamentos” para tanto as supostamente iminentes greves[18] contra o atual “governo”, seja em razão de sua ilegitimidade (por decorrente de “impeachment” sem crime de responsabilidade – pelo menos é a tese defendida por quem contra ele protesta), seja em razão das suas propostas de retrocessos em direitos sociais ou quaisquer outros que sejam os motivo das supostamente iminentes greves.

Nos dois primeiros casos, tivemos negação de verdadeiros direitos individuais, a saber, o de não ser preso (por culpa) até o trânsito em julgado da decisão condenatória e o de não ter seu sigilo bancário violado pelo Fisco senão mediante autorização por decisão judicial que considere presentes fundados indícios para tanto. Essas são as decisões mais problemáticas constitucionalmente, as quais justificam o título do presente artigo: enquanto nas decisões anteriormente citadas, aqui comemoradas, o STF garantiu direitos de minorias e grupos vulneráveis socialmente discriminadas ou simplesmente negou discriminações pautadas em meros moralismos majoritários, nestas últimas o STF não garantiu direitos igualmente individuais em face do Estado (proteção contra o Estado Penal e contra o Estado Fiscal). Daí falar-se em uma Corte “amiga” das liberdades individuais de autonomia privada, ou seja, garantidora do direito à diferença, de viver a vida como se bem entender, desde que não prejudique terceiros, mas que tem se mostrado refratária à proteção de direitos econômicos e sociais e mesmo a direitos individuais quando haja interesse estatal envolvido – pense-se, ainda, na resistência da Corte, por diversas decisões monocráticas[19], em reconhecer a óbvia analogia entre livros de papel e livros eletrônicos para fins de imunidade tributária (a Constituição reconhece a imunidade a papéis formadores de livro e o STF ainda não reconheceu a imunidade para livros em mídias eletrônicas…)[20].

A decisão sobre a “presunção de inocência” rasgou sem o menor pudor o texto constitucional positivo, por fundamentações claramente inconsistentes com ele.

Ora, não se pode seriamente dizer que alguém não estaria sendo “considerado culpado” pela antecipação de sua prisão[21]. Não se discorda propriamente da afirmação segundo a qual a lei poderia concretizar o que se poderia definir como pessoa “considerada culpada”, mas fato é que uma tal lei não existe. Com o que não se pode concordar é com a afirmação no sentido de que a “presunção de inocência” seria um princípio, e não uma regra – essa afirmação não é condizente com o texto constitucional positivo. Sem entrar na infindável polêmica sobre o conceito e a diferença entre regras e princípios, claramente os Ministros que isto afirmaram entenderam como “regra” uma disposição de aplicação silogística (texto que prevê uma hipótese abstrata e atribui-lhe uma consequência peremptória, aplicável pelo método lógico-dedutivo). Ora, o texto constitucional positivo sobre a presunção de inocência precisamente prevê uma hipótese e uma consequência: ao aduzir que ninguém será preso até que haja sentença penal condenatória transitada em julgado, proibiu peremptoriamente a prisão por culpa (distinta das prisões cautelares/provisórias/temporárias) até o trânsito em julgado. Não há “vagueza” ou “abertura semântica” a possibilitar qualquer interpretação em sentido contrário. Ou seja, o STF aparentemente pensou no tema como uma “presunção relativa (júris tantum)”, aquela que admite prova em contrário – mas a “presunção” do texto constitucional positiva é absoluta porque, levando o texto a sério, resta proibida qualquer “relativização” dela antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória… Daí soar absurda a afirmação no sentido de que, ao proferir tal afirmação hipotética, não teria a Constituição proibido a antecipação da execução da pena. Isso porque antecipar a execução da pena por culpa é considerar a pessoa como culpada. Não há outra interpretação possível.

Sempre digo que, para desespero de muitos, não consideraria inconstitucional uma emenda constitucional que positivasse o que o STF, em verdadeira mutação inconstitucional, permitiu. Não considerou violado o núcleo essencial da presunção de inocência a possibilidade de prisão por culpa após decisão condenatória de segunda instância – pelo menos se garantida indenização por danos morais em caso de posterior absolvição ou extinção da punibilidade por quaisquer motivos. Mas sendo a norma jurídica fruto da interpretação de textos normativos, com os limites semânticos dos textos normativos consistindo no limite intransponível do labor interpretativo, não se pode concordar, de forma alguma, com a citada decisão do STF. Outros países do mundo não possuem um dispositivo constitucional peremptório como o nosso, daí o descabimento de invocá-los para justificar a decisão. É preciso levar o texto normativo a sério na interpretação. Não foi o que fez o STF nesse caso.

A decisão sobre a quebra do sigilo bancário pelo Fisco sem ordem judicial aparentemente não deturpou o significado semântico do texto constitucional, mas criou uma distinção absolutamente inconsistente. Beira o escárnio a tese segundo a qual não haveria “quebra” de sigilo, mas mera “transferência” de sigilo. Ora, como se pode admitir “transferência” de sigilo precisamente àquele que tem o interesse direto em devassar a vida do indivíduo para contra ele mover um procedimento administrativo fiscal e posteriormente uma execução fiscal para atacar seu patrimônio?! Ainda que o Estado não seja mais unicamente “inimigo” dos direitos fundamentais, devendo ser compreendido como “amigo” dos mesmos no sentido da promoção e garantia dos direitos sociais, no presente caso temos a concessão ao Estado Leviatã da prerrogativa de devassar, sem autorização judicial, o sigilo bancário do particular, para ver se há algo que ele, Leviatã, considera que justificaria uma cobrança administrativa ou judicial. Chega a ser incrível ter que se afirmar que os direitos fundamentais existem também contra o Estado (!), ou seja, afirmar a sua eficácia vertical, já que toda a luta doutrinário-jurisprudencial das últimas décadas tem sido para afirmar sua eficácia horizontal, contra particulares. Pois, ao ver o Estado apenas como “amigo” dos direitos fundamentais nesse julgamento ou pelo menos como “imparcial” quando evidentemente parcial ele é, o STF deixou de aplicar uma importantíssima garantia fundamental, de reserva de jurisdição, para possibilitar a devassa na vida bancária dos indivíduos. Ao passo que nada adianta falar-se que isso se daria apenas nos limites da legislação de regência ante a notória história de abusos e interpretações teratológicas do Poder Público na defesa de seu “interesse público secundário” (o interesse da Administração Pública, em oposição ao interesse público primário, ou propriamente dito, que é o interesse da sociedade).

As decisões sobre a “prevalência do acordado sobre o legislado” parece um surto de ultraliberalismo de nossa Suprema Corte. O que caracterizaria um “patamar civilizatório mínimo”, não sujeito a renúncias em acordos coletivos? Aparentemente, aplicar-se-á aqui a crítica tradicionalmente feita ao uso de conceitos tais: será aquilo que o STF assim considerar… A Corte aparentemente generalizou uma presunção de “equivalência de condições de negociação” entre quaisquer sindicatos de trabalhadores (as) e sindicatos patronais, apesar de ser fato notório que em diversos casos os primeiros têm condições precárias e, assim, não estão em igualdade de condições com os segundos. Alguns estão, muitos não estão. Espero que isso gere, pelo menos, um futuro distinguishing por parte do STF: em processos futuros, uma vez provada a fragilidade do sindicato de trabalhadores (as) frente ao patronal, que se anulem tais “negociações”, pela ausência de horizontalidade inerente a essa compreensão contratual civilista afirmada pelo STF (“civilista” pelas relações contratuais em geral presumirem a igualdade de condições das partes, que é a lógica do Direito Contratual do Código Civil, que por isso não tem as proteções de legislações especiais que regulam situações de vulnerabilidade contratual, como as trabalhistas e consumeristas).

A decisão que negou o direito à desaposentação é lamentável por admitir uma verdadeira discriminação social: enquanto o trabalhador não-aposentado tem os valores descontados de sua remuneração considerados para sua aposentadoria, o trabalhador aposentado não o terá. Pode-se argumentar que seria “legítimo” como critério diferenciador o fato do primeiro já receber aposentadoria e o segundo não. Afinal, o STF afirmou que o trabalhador aposentado estaria apenas contribuindo para a manutenção do sistema. Curioso como o princípio da solidariedade é invocado para negar direitos, quando sua lógica é a de garantia de direitos… De qualquer forma, não parece adequado justificar-se a discriminação nesse fato, pois a lógica do sistema previdenciário é a da pessoa contribuir para futuramente receber um benefício – tanto que a lei não faz essa diferenciação (restrições de direitos devem ser expressas, jamais implicitamente presumidas, consoante o art. 5º, II, da CF/88, que exige lei para restrições de direitos). Na prática, apenas pelos históricos usos do dinheiro da Previdência Social para finalidades outras ou, como mostrou um estudo gerador de tese de doutorado[22], pela ausência de destinação pelo Governo da sua porcentagem de contribuição, os trabalhadores atuais pagam os benefícios dos (as) aposentados (as) atuais. Mas isso decorre das citadas deturpações do sistema pela Administração Pública e, de qualquer forma, a lógica do sistema dos textos legais e constitucionais positivos demandavam por conclusão diversa da assumida pelo STF…

A decisão que referendou o discriminatório corte orçamentário das verbas da Justiça do Trabalho fechou os olhos à confessa fundamentação discriminatória. Em síntese, parlamentares que consideraram a jurisprudência trabalhista contrária a seus interesses, aparentemente considerando “excessiva” a proteção por ela dada aos trabalhadores, decidiram cortar a verba orçamentária da mesma em razão disso. Claríssima e confessa discriminação. Ao passo que pura e simplesmente desconsiderar essa fundamentação do relator do Orçamento sob o argumento de que ela não vincula os votos dos (as) demais parlamentares praticamente inviabiliza a função de tal relatório. Ora, relatórios de comissões existem precisamente para auxiliar os (as) demais parlamentares na compreensão da matéria. Se essa é a única fundamentação apresentada para, no caso, “justificar” a discriminação proposta, então não se pode pura e simplesmente presumir, arbitrariamente, que outra teria sido a motivação dos (as) parlamentares que votaram a favor. Do contrário, inutiliza-se qualquer utilidade prática dos relatórios apresentados pelas Comissões quando das votações nelas e no Plenário.

A decisão sobre a possibilidade de corte de ponto de funcionários públicos no legítimo exercício de seu direito de greve é simplesmente teratológica.

Ora, como se pode seriamente falar em existência de um direito se o seu legítimo exercício pode ensejar punições a quem legitimamente o exerce?! Aparentemente ignorou-se um tradicional princípio geral de direito, segundo o qual aquele que exerce seu direito não comete ato ilícito. Pelo menos no sentido de que a pessoa não pode ser punida por atos lícitos, exceto quando tal for expressamente admitido por lei (respeitante do princípio da proporcionalidade), o que não é o caso. Não há autorização legal para tal corte de pontos por greves lícitas. Até porque não há lei de greve do serviço público civil, ela sendo exercida por correta decisão aditiva do STF em sede de mandados de injunção (MI 670, 708 e 712), que determinou a aplicação, com ressalvas, da lei de greve do serviço privado[23], a qual não admite corte de ponto em greves lícitas[24]. Somente nas ilícitas, como bem destacaram os votos vencidos. Ademais, como não entender violada a proibição legal[25] de constrangimento de trabalhadores (as) para que voltem ao trabalho com a ameaça de corte de salário quanto aos dias parados? Como bem disse Eloisa Machado de Almeida[26], os trabalhadores agora terão que optar entre o direito à vida e o direito de greve, já que podem ter seus salários cortados se exercerem este último, exceto nos casos de greve deflagrada pelo não-pagamento de salários, nos quais sequer haveria o que cortar já que o salário não estaria sendo pago… A autora também bem aponta o curioso paradoxo de o mesmo STF que garantiu o direito de greve no serviço público civil por importante virada de sua jurisprudência sobre a eficácia da decisão do mandado de injunção ter, agora, inviabilizado dito direito… Mas o mais grave consiste em afirmação do Ministro Fux, no sentido da “importância” de dita decisão ante o momento econômico do país, pelo qual “se avizinham deflagrações grevistas” pelo país, razão pela qual seria “preciso estabelecer critérios para que nós não permitamos que se possa parar o Brasil”[27] (sic). Entenda-se, greves contra o atual governo, possivelmente pelas suas constantes propostas de cortes de direitos sociais… Ou seja, considerando que “os ministros levaram em consideração ainda o risco de greve generalizada que ameaça o governo Temer e os governadores em meio à crise financeira”[28] (sic), parece legítimo supor que a Corte entendeu que haveria um suposto “direito” de um governo não ser incomodado por greves lícitas, sob pena de punir os (as) grevistas pelo corte do salário dos dias parados – contrariando a histórica praxe jurisprudencial segundo a qual somente se cortam os dias de greve em casos de greves ilícitas…

Lamenta-se profundamente que nossa Suprema Corte não tenha mostrado compromisso com os direitos sociais nas suas decisões. Juristas comprometidos (as) com os direitos fundamentais não podem se calar quando veem decisões que julgam a eles contrárias. Os direitos fundamentais de segunda dimensão e alguns direitos individuais têm sido negligenciados pelo STF, como vimos acima nas decisões aqui criticadas. Como defensor da atuação do Judiciário na proteção de minorias e grupos vulneráveis e defensor da atuação contramajoritária da jurisdição constitucional para tanto, dependo do Direito para defender as pautas que defendo. Daí não poder me calar quando vejo o Direito ser solenemente ignorado em decisões judiciais. Segundo minha compreensão, claro. Pessoas racionais e de boa-fé podem legitimamente discordar na interpretação jurídica, como inúmeras vezes discordam. O presente artigo deve ser lido como uma crítica construtiva ao Supremo Tribunal Federal relativamente às decisões aqui pontuadas, bem como jamais deve ser lido como menosprezando a importância das decisões acima celebradas. É preciso garantir tanto os direitos individuais quanto os sociais, pois ambas as categorias configuram-se enquanto direitos fundamentais de todas e todos.

Nesse sentido, não há como não ficar desalentado com nossa Constituição Dirigente Social Democrata, uma Constituição voltada à promoção do bem-estar social (e não uma “Constituição Dirigente Invertida”, neoliberal), ser “interpretada” de forma contrária aos direitos sociais que ela evidentemente quis garantir. O tema da Constituição Dirigente de Bem-Estar Social demanda digressões próprias. Por ora, remeto ao belo artigo de Lenio Streck sobre o tema[29], demonstrando razões da inconstitucionalidade de proposta de emenda constitucional que quer congelar gastos de saúde e educação. Como ele, sou um “jurássico”, por defender o constitucionalismo dirigente de bem-estar social: não abro mão da defesa das imposições constitucionais que demandam pela garantia do mínimo existencial a uma vida digna. A vinculação de receitas a saúde e educação é um exemplo clássico de dirigismo constitucional, no sentido de retirada do tema dos sabores da política para torná-lo de implementação constitucionalmente obrigatória.

Em suma, o Supremo Tribunal Federal aparenta se direcionar a uma Corte fortemente garantidora de direitos individuais-liberais, os chamados direitos de “primeira dimensão”, pelo menos os relativos à autonomia privada e ao direito à diferença, mas refratária à garantia de direitos sociais, de “segunda dimensão”. Espera-se que essa impressão seja, futuramente, afastada. Oxalá nossa Constituição Dirigente de Bem-Estar Social seja melhor interpretada pelo STF no futuro relativamente aos direitos sociais…

Paulo Roberto Iotti Vecchiatti é Mestre e Doutorando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Membro do GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Advogado e Professor Universitário.

[1] STF, ADPF 132-RJ/ADI 4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto, julgadas em 04 e 05 de maio de 2011, DJe de 13.10.2011. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[2] STF, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgada em 12.04.2012, DJe de 29.04.2013. Decisão sintetizada pelo STF em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo661.htm (acesso em 27.10.2016).

[3] STF, ADC 19/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgada em 09.02.2012, DJe de 28.04.2014. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[4] STF, ADI 4.424/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgada em 09.02.2012, DJe de 31.07.2014. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[5] STF, RE 898.450 RG/SP, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 17.08.2016. Acórdão ainda não disponibilizado no Diário da Justiça Eletrônico. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[6] STF, RMS 26.071/MG, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 13.11.2007, DJe de 31.08.2008. Posteriormente referendada na bela decisão monocrática do RE 676.335/MG, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 21.03.2012, DJe de 28.03.2012, decisão esta bem sintetizada em: (acesso em 27.10.2016).

[7] STF, ADPF 187/DF, Rel. Min. Celso de Mello, julgada em 15.06.2011, DJe de 28.05.2014. Decisã sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[8] STF, ADPF 347 MC/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgada (a medida cautelar) em 09.09.2015. Fundamentos sintetizados em: (acesso em 27.10.2016). Ademais, também relativamente a direitos de presidiários (as), a Corte parece estar em vias de reconhecer o direito a indenização por danos morais de presidiários (as) por parte do Estado, quando o presídio se encontre em situações flagrantemente violadoras da dignidade da pessoa humana, embora haja divergência na forma de compensação destes danos morais. Cf. STF, RE 580.252 RG/MS, Rel. Min. Teori Zavascki. Julgamento ainda não finalizado. Discussão explicada em: (acesso em 27.10.2016).

[9] STF, ADI 5.357/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgada em 09.06.2016. Acórdão ainda não disponibilizado no Diário da Justiça Eletrônico. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[10] STF, ADI 3.510/DF, Rel. Min. Ayres Britto, julgada em 29,05.2008, DJe de 27.05.2010. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[11] STF, ADPF 186/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgada em 26.04.2012, DJe de 20.10.2014. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[12] STF, HC 126.292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17.02.2016, DJe de 16.05.2016. Decisão sintetizada pelo STF em: . Posteriormente, a Corte reiterou seu posicionamento ao negar a médica cautelar nas ADC 43 e 44, cf. . (acessos em 27.10.2016)

[13] STF, RE 601.314, Rel. Min. Edson Fachin, e ADI 2859, 2390, 2386 e 2397, Rel. Min. Dias Toffoli. Julgamento conjunto em 24.02.2016, DJe de 15.09.2016. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[14] STF, RE 590.415/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 30.04.2015, DJe de 29.05.2015, posteriormente seguida pela seguinte decisão monocrática: STF, RE 895.759/PE, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe de 13.09.2016. Decisões explicadas no seguinte artigo: GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Negociado e legislado na atual jurisprudência do STF. Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2016. Disponível em: (acesso em 27.10.2016). Apoiamos a conclusão do citado artigo, no sentido de que: “É certo que a negociação coletiva de trabalho deve ser estimulada, por se consubstanciar em procedimento legítimo e democrático de pacificação social, dando origem a normas jurídicas autônomas, isto é, produzidas pelos próprios interessados. No Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa (artigo , incisos III e IV, da Constituição da República), a autonomia coletiva dos particulares, entretanto, não deve ser exercida com o objetivo de supressão e de precarização de direitos trabalhistas, mas sim de melhoria das condições sociais, com o aperfeiçoamento da disciplina das relações de trabalho e a adaptação do sistema jurídico às necessidades dos tempos contemporâneos. Mesmo porque integram os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos (art. da Constituição Federal de 1988)”.

[15] Nos termos do acórdão: 38. Por outro lado, ao aderir ao PDI, a reclamante não abriu mão de parcelas indisponíveis, que constituíssem “patamar civilizatório mínimo” do trabalhador. Não se sujeitou a condições aviltantes de trabalho (ao contrário, encerrou a relação de trabalho). Não atentou contra a saúde ou a segurança no trabalho. Não abriu mão de ter a sua CNTP assinada. Apenas transacionou eventuais direitos de caráter”.

[16] STF, RE 381.367/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Min. Dias Toffoli, RE 661.256/SC e 827.333/CE, Rel. Min. Roberto Barroso, Rel. para acórdão Min. Dias Toffoli. Julgamento conjunto em 26.10.2016. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[17] STF, ADI 5.468, Rel. Min. Luiz Fux, julgada em 29.06.2016. Acórdão ainda não publicado no Diário da Justiça Eletrônico. Decisão sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[18] STF, RE 693.456/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 27.10.2016. Decisão ainda não disponibilizada no Diário da Justiça Eletrônico, mas sintetizada pelo STF em: (acesso em 27.10.2016).

[19] Tais decisões são bem relatadas no seguinte artigo: FELÍCIO, Carlos Eduardo. STF e imunidade do livro eletrônico: por uma mudança necessária. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3488, 18 jan. 2013. Disponível em: . Acesso em: 27 out. 2016.

[20] O tema é objeto de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida. STF, RE 337.817/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli. Julgamento suspenso após o voto do relator, no dia 30.09.2016, que votou favoravelmente à imunidade. Voto do Min. Toffoli explicado em: (acesso em 27.10.2016).

[21] O que se afasta das hipóteses de prisões cautelares/preventivas/provisórias etc, que há muito tiveram sua constitucionalidade reconhecida desde que nas taxativas hipóteses legalmente positivadas e por razões concretas, e não genéricas (proibição de prisões genéricas costumeiramente desrespeitada pelas instâncias ordinárias, forçando recursos ou habeas corpus às instâncias extraordinárias).

[22] Para notícia que sintetiza os argumentos e disponibiliza a íntegra da tese, vide: (acesso em 27.10.2016).

[23] Lei n.º 7.783/89. “Com ressalvas” porque nos debates do citado julgamento diversos temas da referida lei foram considerados incompatíveis com o serviço público, como, por exemplo, a distinção entre “serviços essenciais” e “não essenciais”, considerados todos os serviços públicos como essenciais. Tanto que a parte dispositiva da decisão afirmou aplicar-se a Lei n.º 7.783/89 “no que couber”. Mas não cabe aprofundar o tema nesse momento.

[24] Pode-se dizer que o STF garantiu uma liberdade social com dita decisão aditiva. Isso é verdade, mas o fez apenas porque há imposição constitucional que obriga o legislador a criar tal lei, ao passo que o STF já havia declarado a mora inconstitucional do Legislativo em editá-la diversas vezes. O voto do Ministro Eros Grau bem mostra o tom do Tribunal, ao aduzir que ele estava a decidir se suas decisões eram ou não de obrigatório cumprimento. Ou seja, a Corte estava profundamente contrariada com o absurdo desrespeito a suas decisões anteriores e por isso decidiu mudar sua jurisprudência. De qualquer forma, trata-se de decisão que levou a sério uma imposição constitucional, ou seja, um texto constitucional dirigente, que por isso merece ser aplaudida. Mas pode-se entender que o Tribunal tinha a obrigação constitucional de assim decidir, pela imperatividade da imposição constitucional respectiva. Seja como for, isso não apaga o erro das decisões criticadas no corpo do texto.

[25] Art. , § 2º, da Lei n.º 7.783/89.

[26] ALMEIDA, Eloisa Machado de. Entre a vida e a greve. Justificando, 27 de outubro de 2016. Disponível em: (acesso em 27.10.2016).

[27] Cf. (acesso em 27.10.2016).

[28] Cf. (acesso em 27.10.2016).

[29] STRECK, Lenio Luiz. Rumo a Norundi, a bordo da CDI – Constituição Dirigente Invertida. Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2016. Disponível em: (acesso em 27.10.2016).

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