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25 de Abril de 2024

As 80 horas do Pato e o tiro no pé do patronato

Publicado por Justificando
há 8 anos

“O reino da liberdade só começa, de fato, quando termina o trabalho determinado pela necessidade e pela conveniência externa”, observa Marx em um emblemático trecho d’O Capital no qual, ao tratar da liberdade, chega à conclusão que ela só é capaz de florescer quando o uso das forças humanas ocorre como um fim em si mesmo, voltado ao desenvolvimento das potencialidades individuais ao invés de obrigações externas em razão das quais, em nome da sobrevivência, somos obrigados a vender nossa força trabalho em ofícios que muito frequentemente não guardam qualquer correspondência com nossas vocações. A liberdade, assim, começa quando acaba o tempo que vendemos e se inicia o tempo que, este sim, nos pertence.

Não é nova a agenda pela maior disponibilidade de tempo não-vendido e de uma maior liberdade, portanto. Na Grã-Bretanha do século XIX, núcleo do desenvolvimento das forças produtivas, foi editada uma série de leis fabris que regulamentavam as relações de trabalho. Fruto de intensas mobilizações da classe trabalhadora, a edição destas leis contou com o pouco ortodoxo apoio da aristocracia rural. Na década de 1820, os tories, como eram chamados seus membros, detinham a hegemonia do poder político, controlando o Parlamento, a Câmara dos Lordes, a monarquia, as forças armadas e o Judiciário. A burguesia comercial ascendente, ávida por apear os aristocratas do poder, buscaram o apoio das massas, em particular das classes médias profissionais e da classe trabalhadora organizada. Promulgou-se, assim, a Reform Act de 1832, mudando o sistema de representação parlamentar e minando parte considerável da hegemonia aristocrática.

Durante as articulações e apoios firmados durante a década de 20, foram prometidos mundos e fundos à classe trabalhadora, a exemplo da extensão de voto aos artesãos e da própria regulamentação da jornada de trabalho. Ao notarem a natureza meramente retórica dessas promessas, organizaram um movimento denominado cartismo com o propósito de articular a luta pelo reconhecimento de direitos dentre os quais se incluíam os que lhes foram prometidos e sonegados. Em retaliação à burguesia, os tories passaram a cerrar fileiras com o operariado, de modo que quando os burgueses derrubaram as chamadas Corn Laws, que tributavam a importação de cereais e protegiam os ganhos da aristocracia rural, a aprovação de leis trabalhistas como as de 1848 contaram com o fervoroso apoio dos setores fundiários, limitando a jornada de trabalho em dez horas para o descontentamento da classe industrial.

As leis fabris entraram em vigor com a manifesta intenção de limitar a exploração do trabalho e prevenir a degradação excessiva dos trabalhadores e trabalhadoras. O capital desregulamentado, como é da sua própria natureza, não tem limites para sugar o sono e as energias necessárias para a restauração da força vital. A compreensão dos detentores dos meios de produção que a exploração impiedosa da força de trabalho compromete seus próprios ganhos fez com que, com salutar frequência, concordassem com o reconhecimento de direitos trabalhistas. Enquanto ser humano, o capitalista – aqui entendido como quem possui capital, ou bem econômico capaz de produzir outros bens, e não como quem adquiriu um smartphone - pode até se importar com condições mais dignas e salubres de trabalho, mas o impulso, a narrativa predatória, vulcânica e expansionista do capital os impele a maximizar o lucro em condições de desleal concorrência, de maneira que passam a não ter escolha a não ser explorar de forma voraz a força de trabalho sob seu controle. A coerção legal no sentido de prever, de forma geral, limites a esta expansão passou a ser enxergada como um ponto essencial para equilibrar o modo de produção capitalista e assim garantir que as forças de trabalho pudessem ser exploradas com maior custo-benefício, tempo vital e efetividade.

É interessante que esta conclusão, um tanto quanto óbvia, tirada pela burguesia industrial inglesa há quase dois séculos ainda não tenha chegado ao conhecimento dos grandes industriais brasileiros de 2016, ora representados pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e seu presidente, Robson Braga de Andrade, que acaba de sugerir uma jornada de trabalho de 80 horas semanais como solução para tirar o país da recessão. Voltando à Grã-Bretanha do século XIX, mesmo um Estado regulado pelo capital e por proprietários fundiários de características fortemente feudais foi capaz de dispor, na esteira do acúmulo de lutas reivindicatórias, de inspetores de fábrica oriundos da burguesia profissional para fiscalizar a observância das leis trabalhistas, sintoma do reformismo burguês da época que via nas condições precárias, no trabalho infantil e nas jornadas de trabalho maiores que dez horas algo imoral e incivilizado – percepção que, pelo que parece, também não assimilada pela CNI.

Uma outra conhecida passagem da literatura marxista observa que aqueles que detêm o controle da produção material detêm também o controle da produção espiritual, de maneira que a ideologia que prevalece na sociedade é a ideologia de sua classe dominante. Talvez agora tenha ficado claro para o séquito de verde e amarelo que se dobrou diante do colossal pato da FIESP que a jornada deste, definitivamente, não era em favor de seus interesses.

Gustavo Henrique Freire Barbosa é advogado e professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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