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19 de Abril de 2024
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    Arbítrio transvestido de proteção e legalidade

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Segundo consta de acórdão proferido pelo TJSP no âmbito de processo socioeducativo [1], Guardas Municipais teriam sido informados por “populares” acerca da existência de pessoa fazendo uso de entorpecentes em sua própria casa. Diante disso, os guardas teriam entrado naquela residência, sem mandado judicial, momento em que o adolescente que ali morava teria corrido para o banheiro. Os guardas alegaram que a porta da casa já estava aberta e, após conseguirem abordar o adolescente – não se explica como, tendo em vista a referida “fuga ao banheiro” – ele foi revistado e encontraram em sua cueca 30g de cocaína, além de dez reais. O adolescente, então, foi preso pelos guardas e encaminhado à Autoridade Policial sob a acusação de tráfico, de onde se fez constar uma confissão não repetida em juízo pelo adolescente.

    Diante desse cenário, o magistrado de primeiro grau, Roberto Luiz Corcioli Filho, identificou que os guardas civis municipais extrapolaram a competência que lhes fora constitucionalmente conferida, bem como que para o ingresso na residência seria necessário mandado judicial, tudo a eivar de vícios a investigação realizada a, portanto, impossibilitar o recebimento da peça acusatória.

    Irresignada, a acusação recorreu e o Tribunal de Justiça reformou a decisão de 1ª instância para receber a acusação e decretar a internação provisória do adolescente, alegando, em suma, que (1) “pode-se facilmente inferir que a prisão em flagrante efetuada pela Guarda Municipal, ainda que não esteja no rol das suas atribuições constitucionais (art. 144, § 8º, da C.F.), constitui ato legal, em proteção à segurança social. É sabido que a qualquer um do povo é permitido prender quem esteja em flagrante delito e se qualquer um do povo pode, por certo que a guarda também pode”; (2) o direito à segurança é positivado pelo art. da CF e a Guarda Municipal em tela possui previsão legal, estando em suas competências a atuação “como força coadjutora dos órgãos responsáveis pela segurança pública quando devidamente autorizada, obedecidas as disposições constitucionais vigentes e, ainda, as legislações federal e estadual atinentes à matéria”; (3) a decisão proferida na ADIN 115804-0/3, em que o TJSP declarou inconstitucionais alguns dispositivos da lei 13.866/04, que fixa atribuições da Guarda Civil Metropolitana do Município de São Paulo, dentre eles o que atribui o policiamento preventivo e comunitário e a prisão em flagrante delito à Guarda Municipal, incluindo-a no sistema de segurança pública que é restrito aos órgãos do art. 144 da CF, não se aplicaria ao presente caso em razão de se tratar de Município diverso, bem como em virtude da ausência de trânsito em julgado da referida decisão, pendente de julgamento no STF (RE 608-588 SP).

    A decisão para a decretação da internação provisória – oito meses após a suposta traficância – se alicerçou nos argumentos de “gravidade concreta do ato infracional supostamente praticado”, e no fato de que “não há dúvidas de que o menor se encontra em situação de risco, havendo fortes indícios de que compõe hoje o jogo mortal da das drogas (sic), sendo do senso comum que dada a formação incompleta (tanto física, quanto moral) torna-se pessoa exposta a vulnerabilidade exagerada, de fácil manipulação e com caminhos trilhados, muitas vezes, fatais. Sendo assim, como forma de protege-lo também e ainda propiciando a ele acompanhamento técnico para conscientização dos seus atos e ainda estimulo para continuidade dos estudos, e sai internação (sic) é o melhor (sic) escolha neste momento”.

    Com o devido respeito, a decisão do TJSP não encontra respaldo jurídico e se apresenta antes como imposição de vontade do julgador contra o adolescente do que propriamente o emprego técnico das regras e princípios legais e constitucionais, que se espera de um agente da lei.

    Que qualquer um do povo pode realizar prisão em flagrante, sendo tal atuação obrigatória para a Autoridade Policial e seus agentes, não se questiona. Trata-se do teor do art. 301 do CPP. Situação diversa é a autorização conferida pelo ordenamento jurídico para que determinadas pessoas atuem no policiamento ostensivo e investigativo, atribuições especificamente conferidas pela Constituição em seu art. 144 à Polícia Militar e Polícia Civil (no âmbito Estadual). É o teor do art. 144, CF: “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares”, sendo que o parágrafo conferido às Guardas Municipais (§ 8º) se resume a atribuir-lhe a competência para “proteção de seus (Município) bens, serviços e instalações”. Daí que a existência de lei municipal que dê conta das atribuições dos guardas municipais não é capaz de dispensar a existência de norma constitucional que expressamente lhes confira a possibilidade de realizar patrulhamento e de realizar buscas pessoais ou em residências. Não por outra razão que a lei municipal da cidade de São Paulo, que trata das Guardas Municipais, foi declarada inconstitucional pelo próprio TJSP.

    E não se argumente que, por se tratar de delito de tráfico, a permanência da flagrância no tráfico de drogas autorizaria a busca na residência sem mandado judicial, bem como a busca pessoal. Conforme vem decidindo em reiterados casos o juiz prolator da sentença reformada pelo acórdão em questão, uma coisa seria o guarda visualizar alguém comercializando droga ou realizando e contabilizando um estoque de entorpecente. Outra é o caso de se apenas suspeitar das atitudes dele – no caso foi noticiada uma denúncia feita por um popular não identificado – e resolver entrar na casa de alguém sem mandado e abordar o seu morador, inclusive apalpando dentro da cueca, para “conferir”. Nesse caso, não há uma situação de flagrância a autorizar que qualquer um do povo (incluindo-se os guardas municipais, claro) se dispusesse a abordar quem quer que seja para o fim de se verificar se porta droga (e, assim, se estaria em “flagrante de crime permanente”). Ou alguém defenderia ser legítimo um cidadão qualquer, um médico, um padeiro, enfim, qualquer pessoa que não aquelas indicadas na Constituição em seu art. 144, caput e incisos, viesse a “suspeitar” de quem quer que seja e determinasse que tal pessoa se submetesse a uma “abordagem”? Pior imaginar tal cenário inserindo-se uma arma nas mãos de tal cidadão.

    Como já antecipado, a ausência de um mandado judicial autorizando a entrada na residência é outra irregularidade verificável no caso, ainda mais quando praticada por guarda municipal que, como qualquer um do povo, não tem autorização para invadir a casa dos outros. Celso Delmanto em análise ao art. , XI, CF (“a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”) aponta que nem todo crime permanente admite a exceção à referida garantia:

    [...] o flagrante que constitui verdadeira emergência para que se admita a violação domiciliar a qualquer hora do dia ou da noite sem prévia autorização judicial. Seriam hipóteses, por exemplo, de flagrante de crimes permanentes como a extorsão mediante seqüestro, em que há a necessidade de prestar-se socorro imediato à vítima que corre perigo de vida etc., o que não se verifica em casos de crimes permanentes como a simples posse de entorpecentes ou de armas ilegais. [...] Não obstante se possa alegar que esse entendimento poderia obstaculizar a ação policial, este é o preço que se paga por viver em um Estado Democrático de Direito, que deve tomar todas as medidas para restringir, ao máximo, a possibilidade de arbítrios e desmandos das autoridades policiais por mais bem intencionadas que possam elas estar [2].

    Trata-se, portanto, de autorização que excepciona a garantia da inviolabilidade da residência exclusivamente no intuito de salvar alguém que está sendo vitimado, tratando-se de uma ponderação de valores em que a salvaguarda da integridade física/psíquica e da vida do outro se coloca em primeiro plano. A invasão de domicílio para obtenção de provas ou para constatação de outras infrações penais sem vítimas imediatas não justifica o afastamento da garantia constitucional, senão com mandado judicial.

    Ainda, consta da Tese Institucional n.º 03/13 da Defensoria Pública do Estado de São Paulo [3] que “uma simples ‘denúncia anônima’ não pode fundamentar o ingresso de forças policiais em casa alheia, sob pena de que ela tenha a mesma força de uma decisão judicial. Quando a polícia, após receber uma delação apócrifa a respeito da existência de material ilícito no domicílio de um cidadão, resolve lá adentrar, fora das situações de emergência, fere de morte o princípio da separação dos poderes, invadindo a esfera de competência constitucionalmente reservada ao Poder Judiciário, a quem cabe analisar se a tal delação consubstancia, ou não, fundada razão para que a medida seja levada a efeito. Constitui, ainda, violação aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade”.

    Por arremate, a justificativa para internar provisoriamente adolescente, em virtude de fato que teria praticado há oito meses, beira às raias do absurdo. É sabido que o STJ e o STF vêm, reiteradamente, se colocando contrários à utilização de argumentos de gravidade abstrata para a aplicação de internação/prisão cautelar aos acusados, exigindo, portanto, elementos que apontem, concretamente, as necessidades cautelares para o caso. Assim, em vistas a superar tal questão, o referido acórdão faz menção à existência de uma “gravidade concreta”, sem apontar, todavia, qual seriam suas circunstâncias, uma vez que a decisão apenas relata que houve apreensão de 30g de cocaína na cueca de um adolescente, dentro de sua residência. Nenhum dado sobre pretensão de deixar a comarca, ou que esteja ameaçando testemunhas, nem mesmo odiosos argumentos de quantidade exacerbada de droga ou reincidência foram citados. De igual sorte o argumento de prender para proteger, largamente utilizado na área da infância e juventude, é por si mesmo irônico, pois se diz querer proteger o adolescente colocando-o em um local que remete à prisão, retomando-se a famigerada doutrina menorista da “situação irregular”, em que o juiz se coloca na posição de pai ao dizer o que é o melhor para o outro, sem ao menos conhecer sua realidade ou tentar resolver a questão por meios menos invasivos que submeter um adolescente a uma instituição total. Puro arbítrio transvestido de proteção.

    Giancarlo Silkunas Vay é Defensor Público no Estado de São Paulo.
    REFERÊNCIAS
    1 TJSP, Câmara Especial, Des. Rel. Salles Abreu, Apelação n.º 0006208-41.2015.8.26.0271, j. 09/05/16, v.u.
    2 DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 6ª ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 324 3 http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/20/Documentos/TESE%2003.pdf
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