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16 de Abril de 2024

Caso Uber: regularização pode ser benéfica para os motoristas e para o Mercado

Publicado por Justificando
há 8 anos

Por José Eduardo Chaves

A Uber acaba de apresentar à Corte do Distrito Norte da Califórnia [1], que admitiu uma 'class action' [2] de seus motoristas contra ela, um acordo de 100 milhões de dólares para que o vínculo de emprego não seja reconhecido [3].

É muito importante que também no Brasil seja regularizada a situação laboral dos motoristas, pois a ingenuidade contábil desses trabalhadores tem os conduzido a um forte endividamento, principalmente para a compra de carro zero, sem a menor noção dos reais custos do trabalho prestado ou dos riscos dessa atividade.

O Direito do Trabalho atual não sabe lidar com essa nova wikieconomia e com as externalidades positivas e negativas da rede. Por um lado, acaba por sufocar as autênticas iniciativas de economia solidária que as novas tecnologias suscitam e, por outro, não tem instrumentos para reprimir a captura que o neocapitalismo cognitivo perpetra contra a colaboração social em rede.

A partir do final do século XX, as novas tecnologias concebem uma nova forma de organização da produção em rede, seja com a empresa pós-material, de serviços, seja com a Indústria 4.0, que conecta a produção com a internet das coisas.

Nessa nova economia, há um salto enorme em relação à acumulação flexível do ohnismo da Toyota, operada a partir dos anos 70. Esse toyotismo marcou, na época, também uma notável diferença em relação à linha de montagem fordista, reduzindo a porosidade do trabalho e aumentando incrivelmente a produtividade.

Não obstante, embora essa nova economia em rede tenha enorme potencial de emancipação social e econômica através de ferramentas tecnológicas de colaboração telemática, é também, por outro lado, suscetível de ser cooptada pelo poder econômico. Alguns denominam esse fenômeno de capitalismo cognitivo, bio-político ou até de 'uberização' da economia.

Dentro desse cenário, para efeitos de uma efetiva proteção jurídica do trabalhador, é preciso repensar conceitos tradicionais do Direito do Trabalho, principalmente seu conceito-mor de subordinação jurídica.

No início do século XXI esse conceito recebeu uma update, com o surgimento jurisprudencial da denominada subordinação estrutural-reticular, o que já foi um significativo avanço.

Tal conceito, contudo, necessita muito mais de um upgrade do que de mera atualização, sob pena de não acompanhar o fenômeno da emergência da inovação na produção contemporânea. Os conceitos de alienidade [4] ou mesmo de dependência econômica [5] parecem mais adequados a essa nova realidade de flexibilidade extrema da produção.

Independentemente dessa revisão doutrinária, o motorista habitual do Uber, em tese, já poderia ser perfeitamente enquadrado como empregado, já que a empresa dirige totalmente a atividade, porquanto define o preço do serviço, o padrão de atendimento, a forma de pagamento, bem como paga e centraliza o acionamento do motorista.

Além disso, a empresa aplica penalidades àqueles que infringirem suas normas de conduta, especialmente se o motorista admitir passageiro na rua, sem o acionamento do aplicativo, se receber gorjetas ou até se for mal avaliado pelos usuários.

Alguns especialistas contestam essa visão. Acena-se, em geral, com a flexibilidade de horário e falta de controle da assiduidade, como indicativos de trabalho autônomo. Além disso, alude-se ao fato de que os meios de produção (veículo e o celular) pertencem ao trabalhador e não à empresa.

Primeiramente, sublinhe-se que se está a se confundir, nesse caso, mera ferramenta de trabalho com meio de produção. No caso, o meio de produção é algoritmo do aplicativo, que é concebido de forma heterônoma e controlado unicamente pela empresa.

Quanto à flexibilidade da jornada de trabalho e ao controle da assiduidade, por outro lado, tais condições não se confundem com o conceito autêntico de autonomia. No capitalismo cognitivo não é mais relevante esse controle individualizado, pois somente na linha de produção fordista é que é essencial a disciplina individual dos trabalhadores, porquanto na dinâmica linear a falha de um interrompe todo o circuito produtivo.

Nem mesmo a subordinação jurídica clássica erigiu a flexibilidade de horário ou a assiduidade como elementos essenciais à sua configuração, como são exemplos o trabalho a domicílio, os cargos de gestão e os realizados em atividade externa, sem controle de horário.

Vale anotar que o trabalho a domicílio, previsto na CLT desde 1943, é absolutamente incompatível juridicamente com a ideia de controle de jornada ou de assiduidade, haja vista a intangibilidade constitucional do lar.

Na estrutura em rede, a falha individual não é tão determinante, pois o sistema funciona com uma lógica de equilíbrio similar a vasos comunicantes. Passa-se da rotina taylorista à flexibilidade virtual. A própria internet foi criada com essa lógica de supremacia de um sistema descentralizado e não linear. Para a produtividade da empresa-rede não é mais relevante a rigidez da jornada ou até mesmo a assiduidade individuais. A subordinação passa a ser estruturada de maneira coletiva.

Autonomia, nesse contexto, só pode estar associada ao fato de o produto do trabalho resultar em proveito próprio, sem alienação (rectius: alienidade), tampouco que o trabalhador esteja sujeito a um sistema punitivo, sem que tenha participado da configuração das regras do negócio. Sem isso não há contratação autônoma, senão mera adesão impositiva.

O aplicativo Uber está muito distante, ainda, da economia solidária e da ideia de co-working. O que se percebe é a simples passagem da cultura da sociedade disciplinária (Foucault) para a sociedade do controle (Deleuze). O capitalismo cognitivo tem por objetivo capturar não apenas o excedente do trabalho individual, mas também o produto da cooperação social (Fumagalli & Lucarelli) [6].

É importante, pois, que a empresa decida se ajustar aos preceitos dessa nova economia do compartilhamento ou, então, opte por arregimentar seus motoristas pelo método tradicional, fruto da civilidade capitalista, da vinculação empregatícia. O que não se pode admitir é que continue a explorar o melhor dos dois mundos, violando tanto os princípios isonômicos da concorrência, como as normas de proteção ao trabalho humano dirigido.

José Eduardo de Resende Chaves Júnior é desembargador e Presidente da 1a. Turma do TRT-MG, Doutor em Direitos Fundamentais e Professor Adjunto da pós-graduação IEC-PUCMINAS.

REFERÊNCIAS

[1] Antes disso, a Comissão do Trabalho do Estado da Califórnia já havia considerado os motoristas do UBER como empregados e não como autônomos http://www.nytimes.com/2015/06/18/business/uber-contests-california-labor-ruling-that-says-drivers-s...

[2] Veja os detalhes da ação coletiva em http://uberlitigation.com

[3] Confira aqui os detalhes do acordo: http://www.llrlaw.com/wp-content/uploads/2016/04/Breaking-news-Uber-will-pay-100-million-to-settle-i...

[4] Indicamos o texto que escrevemos com o colega Marcus Barberino disponível no site do TST http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/73990

[5] Conceito desenvolvido em tese de doutoramento pelo Professor da UFBA e Juiz do Trabalho Murilo Oliveira. Resumo disponível em http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/50179/011_oliveira.pdf?sequence=1 A tese completa disponível em http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/handle/1939/30176

[6] Fumagalli, Andrea and Lucarelli, Stefano (2007): A model of Cognitive Capitalism: a preliminary analysis. Published in: European Journal of Economic and Social Systems, Vol. 20, No. 1 (2007): pp. 117-133. Disponível em https://mpra.ub.uni-muenchen.de/28012/

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Caro autor

Há alguns equívocos ocasionados na adaptação de teoria moderna (final do século XVIII e início do século XIX) a serem sanados:

Primeiramente em relação à relação Uber-motorista:
- A relação Uber e seus motoristas cadastrados não exige exclusividade (há relatos de youtubers dos EUA que trabalham com Uber e Lift "concorrente" abertos);
- O meio de trabalho é o veículo e o celular, pois o Uber não é a única forma que o motorista pode empregar seu veículo para auferir renda. Por exemplo ele pode também instalar um app chamado Shippify e entregar encomendas se lhe for mais vantajoso. Pode trabalhar com transporte de noivas e outras atividades. Considerar o APP como meio único meio de trabalho implicaria em dizer que o trabalhador estaria impedido de auferir renda quando a Uber falhasse por algum motivo.
- Amigos que fizeram sandwich nos EUA relataram em em College Station, mo Texas, muitos dos motoristas Uber são alunos da Universidade (não estão fazendo da atividade sua carreira, apenas obtendo alguma remuneração enquanto estudam e se preparam para os trabalhos que desejam).

Em relação à externalidades sugiro ver a aula do Prof de Economia da UnB Adolfo Sachisida, Doutor pela Universidade do Alabama: Ele colocou uma série chamada "Aprenda economia com o Sachisida" com 12 aulas:
https://youtu.be/zHAT5_uyWX0 (Aula sobre falhas de mercado "externalidade é uma, começa por volta dos 5:40" e intervenção do governo)

Ao meu ver, se Uber e seus concorrentes deixarem de ser atrativos, sua capacidade de obtenção de motoristas cai. A qualidade do serviço cai, e SE O GOVERNO NÃO TENTAR SALVAR A EMPRESA, os consumidores de transporte migrarão para outros serviços, penalizando a empresa. Sou contra qualquer regulamentação. O mercado (consumidores e fornecedores de serviço) dá conta disto desde que o Estado não se meta a atrapalhar a relação.

A regulamentação que o senhor está propondo visa impedir que o jovem universitário ou aqueles elementos que, devido ao desemprego no seu setor, possam trabalhar temporariamente numa atividade que não apresenta restrições para a entrada de novos trabalhadores. Sim, forçar a CLTização da atividade criará uma barreira à entrada de novos motoristas, pois os CLTistas tem "assegurados direitos" que impediriam a Uber ou qualquer concorrente (espero ansiosamente por eles) de ajustar a oferta com a demanda. continuar lendo

O que estaria movendo este movimento em favor da regulamentação do transporte individual privado intermediado pelo APP visa a proteger os interesses dos motoristas ou de um pessoal louco para lucrar em cima do trabalho dos motoristas (que passarão compulsoriamente a recolher para um sindicato a ser criado, e instrumentalizado por algum partido)?

Será que esses motoristas querem regulamentação e sindicalização compulsória? continuar lendo