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25 de Abril de 2024
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    Decisão do STF no caso Delcidio foi comemorada, mas prejudicou inúmeros acusados no Brasil

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Estamos em tempos estranhos no Brasil, ou talvez sempre estivemos e agora os absurdos apareçam com mais facilidade, graças à ampliação e a democratização dos meios de comunicação alternativos. São tempos em que o punitivismo impera, soterrando qualquer debate possível quanto ao garantismo ou à manutenção das promessas constitucionais feitas lá na Constituição de 1988. Enquanto de um lado alguns “Ps” são soterrados pela força de um sistema opressor, a clássica tríade pretos, pobres e periféricos, de outro existem “Ps” ovacionados pela sanha de vozes cada vez mais reacionárias em nossa sociedade, como o patriarcado e o punitivismo. De um lado o punitivismo alimenta a sede de sangue, sempre em detrimento daqueles já excluídos, em nome de uma superioridade invocada pelas pessoas que, longe da seletividade punitiva, estão autodenominadas “pessoas de bem”. De outro lado, temos a ainda constante presença da cultura patriarcal, que, com discursos igualmente acéfalos, tenta manter a supremacia masculina por sobre as mulheres. Ambos são discursos maniqueístas, reducionistas e reacionários em nossa sociedade, em que um invoca que “bandido bom é bandido morto” e o outro, igualmente tacanho, invoca ditos como “lugar de mulher é na cozinha”. Se o punitivismo tenta mostrar os benefícios da punição ilimitada em detrimento das garantias individuais, o patriarcado tenta manter a organização social com benefícios aos homens em detrimento da mulher.

    Eis então que punitivismo e patriarcado se encontram em um casamento não tão empolgante no interior do Estado do Tocantins. Analisando alguns flagrantes encontrei um caso interessante e (infelizmente) muito comum onde um casal teve uma briga. Nela, o marido, RR, agrediu a esposa, incorrendo no tipo penal do art. 129, § 9º do Código Penal (no bom português, deu uns tabefes na esposa). O crime tem a previsão de uma pena que varia entre 03 meses e três anos de detenção. Nestes casos a pena não possibilita, por ser detenção, o regime inicial fechado; mas possibilitaria tão somente, caso o réu seja condenado, regime prisional semiaberto ou aberto ao teor do art. 33 do Código Penal.

    Certamente o crime de lesões corporais contra a mulher no âmbito das relações domésticas, ainda que abjeto e com resquícios de uma sociedade patriarcal, não está no rol constitucional de crimes inafiançáveis[1], tão pouco no rol dos crimes hediondos (8.072/1990), portanto é um crime passível de fiança. O crime ainda sofreu alteração interpretativa tendo em vista que o STF decidiu que não necessita de representação da ofendida para que seja dado seguimento ao jus puniendi, sendo crime de ação pública incondicionada. Pois bem, o que falei até agora foi apenas o óbvio, o que todos conhecem de forma pacífica (será?) sobre a doutrina dos crimes inafiançáveis, ou pelo menos o que era considerado inafiançável até o evento catalisador da prisão de Delcídio do Amaral e a hermenêutica punitivista do STF no caso.

    Acontece que neste evento crime narrado acima, o acusado fora preso em flagrante e levado à presença da autoridade policial para a lavratura ou não do Auto de Prisão em Flagrante (APF). O réu, provavelmente um adepto das teorias reducionistas do patriarcado, já teve a sua noite regada com pouca sorte, visto que o local do crime, por poucos quilômetros (cerca de uns 5), não estava na circunscrição da Capital do Tocantins, e portanto não teria ele o direito à Audiência de Custódia após o APF e era quase véspera de natal. Já ai se ensejaria uma pergunta: o que difere em direitos pessoas que estão separadas por uma faixa abstrata territorial que divide municípios? E por quê o Pacto de São José da Costa Rica não tem aplicação para todos brasileiros igualmente? Mas estas respostas extrapolariam o tema deste texto de hoje. Vamos então a outra pergunta:

    Qual seria o procedimento esperado de um flagrante em um crime como este?

    Segundo a sistemática processual que trata a lavratura do flagrante, entendendo a autoridade policial ser o caso de flagrante, em algumas das modalidades do art. 302 ou 303 do diploma processual penal, procederia inicialmente à comunicação do magistrado sobre o flagrante (na prática a comunicação só acontece via sistema eletrônico no prazo de 24 horas), ao Ministério Público e à família do preso ou pessoa por ele indicada (art. 306 do CPP). Após as comunicações iniciais deveria iniciar a lavratura do auto, ouvindo inicialmente o condutor, testemunha, ofendida e ao fim, proceder ao interrogatório do flagranciado, caso este tenha interesse em falar. (art. 304 CPP)

    No caso em análise, esta primeira etapa fora cumprida a contento, exatamente nos (parcos) termos, cumprindo as (reduzidíssimas) garantias do acusado em um flagrante. Contudo, foi na etapa posterior que o efeito borboleta de uma decisão do STF calhou de resvalar naquele tal de RR que agrediu à sua esposa, afinal, não era mesmo o seu dia de sorte!

    O delegado entendeu o crime como inafiançável!

    Mas como isso é possível? Perguntar-se-ia o desavisado que ainda crê nos direitos e garantias, que ainda crê na força normativa da Constituição, que ainda crê no processo penal, como eu creio, como um refreador do poder punitivo estatal, com regras claras e aplicáveis a todos, como um sistema de cumprimento de promessas da nossa Constituição. A autoridade policial naquele dia resolveu seguir a intrépida interpretação do intérprete (ufa!) da Constituição para o agourento RR, a hermenêutica punitivista adotada e abraçada ainda fumegando em uma decisão do STF no caso Delcídio, em uma manobra única de interpretação extensiva de restrições constitucionais.

    Pois bem, consoante ao art. 322 do Código de Processo Penal, a fiança arbitrada pela autoridade policial é cabível (é direito do flagranciado!) para crimes com pena máxima ou inferior à 4 anos, e, como vimos no começo, o crime cometido por RR tinha pena máxima de 03 anos. O resultado óbvio é que seria direito do RR o arbitramento de fiança - só que não!

    Por óbvio, e me lembrando do óbvio, aproprio-me com a devida referência a um texto de Aury Lopes Jr (15/02/2016) em sua time-line do face, em que desabafa dizendo:

    Quando da reforma das cautelares em 2011, uma das distorções que se tentou corrigir foi essa: como manter uma prisão cautelar de alguém acusado por um crime cuja pena máxima é igual ou inferior a 4 anos e, portanto, ainda que condenado (pois poderia ser absolvido...), ele teria a pena substituída e não seria preso? Como impor uma prisão cautelar (cujo regime é fechado, totalmente fechado, mais que fechado...) que é mais gravosa do que a eventual pena a ser aplicada?

    Bom, a resposta é óbvia...como é óbvio que não se poderia decretar ou manter uma preventiva quando a condenação (ou mesmo prognose) for de uma pena cujo regime é aberto ou semi-aberto.

    Mas, a essa altura, eu já não sei mais o que é óbvio...

    Então como poderia RR, por mais infeliz que tenha sido o seu ato (e em regra são os crimes), ser preso, sem fiança (e após ter o flagrante convertido em preventiva), se mesmo em caso de condenação não poderia ele ter pena tão grave? Como disse Aury, seria o óbvio realmente óbvio?

    A autoridade policial socorreu-se à hermenêutica “delcídica” do STF e logo emendou em seu despacho de fundamentação o argumento relacionado ao art. 324, IV do CPP, exatamente o mesmo fundamento do “salto triplo carpado hermenêutico” que fez com que os crimes inafiançáveis fossem ampliados no rol previsto na Constituição em uma miraculosa e inovadora interpretação extensiva de restrições de direitos constitucionais, tudo para se punir quem se pedia nos jornais para ser punido! Talvez, quem sabe, guiado pela sanha das notícias, naquele dia da prisão de Delcídio até RR comemorou a façanha, mal sabendo as consequências que teria esta mesma decisão em sua vida.

    RR foi preso sem ser dado a ele o direito à fiança, um direito que lhe assistia, não porque era bom ou ruim, ou porque seu crime era ou não abjeto (em regra todos os crimes o são), mas porque era direito que deveria assistir a todos. O peso da caneta do STF recaindo sobre vidas em todos os rincões deste Brasil já tão punitivista. Preso em flagrante sem fiança, após isso o MP requereu a conversão em preventiva, foi aceita pelo juiz e assim as coisas ficaram por um tempo, até um defensor argumentar o óbvio e ululante - sim, mais uma vez é preciso dizer o óbvio; aliás, hoje vivemos em tempos em que temos que bradar e não só dizer o óbvio!

    E ai está o ponto: não a punição de RR ou mesmo de Delcídio, mas todos, caso provada a culpa, deverão responder nos limites legais pelo seu crime, mas antes disso lhes é reservada a já tão esquecida presunção de inocência e todos os direitos assegurados na Constituição e nas regras processuais penais. Mas agora, por um passe mágico (sim, pois não há outro argumento lógico) ampliam-se os crimes inafiançáveis com um argumento que pode servir a qualquer ocasião, desvirtuando-se o próprio sentido que buscou dar a Lei 12.403/2011 à presunção de inocência no processo penal, com a utilização da hipótese criada pelo STF de “inafiançabilidade decorrente do disposto no art. 324, IV do Código de Processo Penal”. (Ação Cautelar 4039, Relatoria Min. Teori Zavascki)

    Eis o problema de se aceitar acriticamente os discursos inflamados e sucumbir ao apelo midiático reacionário: o punitivismo imiscuindo-se na interpretação dada pelo STF à Constituição tem também os seus efeitos, que ecoam por toda a trama de direitos e garantias e refletem-se em milhares e milhares de pessoas que são alvos de um sistema penal que a cada dia distancia-se mais e mais das velhas promessas guardadas em nosso texto constitucional.

    Sim, inequívoco que estava com azar RR aquele dia em que se ampliou, em uma delegacia, o que é considerado crime inafiançável no Brasil; contudo, mais azar temos nós, com tal decisão do STF naquele caso, que, para atender a sanha punitivista, resolveu rasgar mais um pedaço de nossa já tão surrada Constituição.

    Enio Walcácer é Mestre em Prestação Jurisdicional pela Universidade Federal do Tocantins - UFT. Especialista em Ciências Criminais e em Direito Administrativo pela UFT. Graduado em Direito e Comunicação Social pela UFT.
    [1] Aconstituiçãoo prevê como inafiançável os seguintes crimes: racismo (art. 5º, XLII), tortura, tráfico de drogas, terrorismo e hediondos (art. 5º, XLIII), ação de grupos armados contra a ordem constitucional do Estado Democrático (art. 5º, XLIV)
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