Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
27 de Abril de 2024
    Adicione tópicos

    Flagrante de crime inafiançável e inconstitucionalidade flagrante: a prisão do Senador Delcídio

    Publicado por Justificando
    há 8 anos

    Em sessão extraordinária realizada na manhã do dia 25/11/15, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu um julgamento histórico ao ordenar, unanimemente, a prisão cautelar de um Senador da República no exercício do mandato. Os fatos que subjazem à prisão, tão logo publicados, suscitaram de imediato um virtual consenso popular de repúdio e de incredulidade. No entanto, paralelamente à rejeição à conduta noticiada, um questionamento tem suscitado dúvidas e dissonâncias: quais os fundamentos jurídicos para a prisão do Senador?

    Nas linhas que se seguem, objetiva-se esclarecer, inicialmente, que a Constituição da República de 1988 (CF/88) não veda a prisão cautelar (processual) de parlamentares federais. Em seguida, destaca-se a particularidade do caso da prisão do Senador Delcídio do Amaral, no qual teria ocorrido “decretação de prisão cautelar em situação de flagrante delito”. Observa-se ainda que, na espécie, é questionável a configuração de situação de flagrância do delito que teria sido praticado pelo Senador com base nos elementos de informação coletados. Por fim, salienta-se que a admissibilidade da decretação da prisão de parlamentares federais em quaisquer casos de “inafiançabilidade”, aí incluídos todos os casos de cabimento da prisão preventiva, e não apenas nos casos de “crimes inafiançáveis”, configura uma petição de princípio, por meio da qual, ao cabo, dispensa-se o preenchimento de um dos requisitos exigidos pela CF/88 para a prisão de parlamentares federais.

    O artigo 53, § 2º, da CF/88 determina que os parlamentares federais[1] – deputados e senadores – só podem ser presos, no curso do mandato, em flagrante de crime inafiançável. Diante de tal requisito constitucional, tem-se aduzido que a Constituição brasileira não admite a prisão cautelar (preventiva ou temporária) de parlamentares federais, pois o art. 53, § 2º, somente admitiria a prisão em flagrante (classificada como uma prisão pré-cautelar).

    Com efeito, de acordo com a atual redação do Código de Processo Penal (CPP), a prisão em flagrante possui natureza precária: em 24h (vinte e quatro horas) após a prisão em flagrante, os autos devem ser remetidos à autoridade judiciária, a qual deve decidir o que fazer com o preso[2]: relaxar a prisão em flagrante (por ilegalidade) ou homologá-la. Neste caso, a mera homologação não basta para manter o indivíduo preso: o juiz deve, fundamentadamente, decidir se decreta a prisão cautelar (preventiva ou temporária[3]), ou se concede a liberdade provisória (com ou sem a imposição de fiança ou de outra medida cautelar substitutiva da prisão cautelar). Assim, a duração da prisão em flagrante é curta e delimitada, pois somente subsiste até a análise judicial de sua legalidade e da necessidade de imposição de prisão cautelar ou de medida cautelar diversa da prisão.

    No entanto, é interessante notar que tal procedimento só foi instaurado no Brasil em 2011, com o advento da Lei n. 12.403, também conhecida como “Lei das Cautelares”. À época em que a Constituição foi promulgada, por sua vez, ainda vigia o modelo da prisão em flagrante como uma prisão cautelar: ela poderia ser ratificada pelo juiz e se prolongaria no tempo sem a necessidade de conversão em prisão preventiva ou temporária[4].

    Tendo em vista tal característica da prisão em flagrante à época da promulgação da CF/88, pode-se afirmar que o Poder Constituinte originário, ao restringir a prisão dos parlamentares federais à hipótese de flagrante de crime inafiançável, não objetivou vedar a decretação de prisão cautelar de tais agentes. Isso porque a própria prisão em flagrante, de acordo com o ordenamento infraconstitucional vigente à época, constituía uma prisão cautelar. Por isso, torna-se inviável concluir que a Carta Magna vedaria a prisão cautelar de parlamentar, pois somente admitiria a prisão em flagrante, de natureza pré-cautelar e precária, pois isso implicaria interpretar a CF/88 com base na formatação dada ao instituto pela reforma legislativa de 2011, posterior à sua promulgação.

    Assim, no contexto atual, ante o disposto no art. 53, § 2º, da CF/88, pode-se aduzir que os parlamentares federais, com efeito, somente podem ser presos em flagrante de crime inafiançável. No entanto, nestes casos, em virtude da alteração da legislação processual, a prisão em flagrante homologada pode ser convertida em prisão cautelar, desde que preenchidos os requisitos para tanto[5].

    No ponto, é imperioso reforçar que, em função do disposto no art. 53, § 2º, da CF/88, apenas se houver a prévia prisão em flagrante de crime inafiançável é que o STF poderá analisar a possibilidade de conversão desta prisão em prisão cautelar. Ausente o flagrante de crime inafiançável, a imposição autônoma de prisão cautelar, ainda que preenchidos os requisitos da legislação infraconstitucional, não se mostra possível, pois aí sim ausente o requisito previsto no artigo 53, § 2º, da CF/88.

    No caso da prisão do Senador Delcídio do Amaral, é interessante notar que o STF não homologou, como de praxe, a prisão em flagrante efetuada pela autoridade policial, a fim de posteriormente analisar a possibilidade de sua conversão em prisão preventiva. Na espécie, sem a prévia prisão em flagrante, o STF decretou a prisão cautelar do Senador, após requerimento formulado pelo Ministério Público Federal. Ressaltou-se, porém, que haveria uma situação de flagrância prolongada no tempo, no curso da qual se daria o cumprimento do mandado de prisão cautelar, o que o validaria diante da exigência prevista no art. 53, § 2º, da CF/88. Teria ocorrido, então, uma singular hipótese de “decretação da prisão cautelar em situação de flagrante delito”, em que o controle posterior de validade (homologação) da prisão em flagrante estabelecido pelo CPP teria sido substituído pelo controle prévio (autorização judicial) já acompanhado também da prévia análise da imposição de prisão cautelar. Diante da particularidade do caso, emergem variadas dúvidas e indagações, entre as quais a relativa à necessidade da prévia realização da audiência de custódia, nos termos do Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, item 5), conforme entendimento recente do próprio STF (ADI 5240/SP, Plenário, rel. Min. Luiz Fux, 20.8.2015)[6].

    Feitos tais esclarecimentos a respeito do cabimento da prisão cautelar de parlamentar e pontuada a singularidade da “decretação de prisão cautelar em situação de flagrante delito”, pode-se avançar então à análise dos requisitos de validade da prisão do Senador Delcídio do Amaral. Esta, conforme exposto acima, depende não só do preenchimento dos requisitos legais da prisão preventiva (CPP, art. 312, c/c art. 313), mas também da verificação de uma situação de flagrante delito relativa a um crime classificado como inafiançável, em atenção ao art. 53, § 2º, da CF/88.

    Ao analisar a decisão proferida pelo Ministro Teori Zavascki, chancelada pelos demais integrantes da Segunda Turma, constata-se que os requisitos da preventiva foram tidos por preenchidos, pois configurada a necessidade da prisão para a garantia da ordem pública, da aplicação da lei penal e da instrução criminal (CPP, art. 312).

    A situação de flagrância, por sua vez, foi tida como presente em função da permanência do delito que teria sido praticado. Observou-se, no ponto, que o crime de integrar organização criminosa (Lei n. 12.850/2013, art. , caput) possui natureza permanente, razão pela qual, enquanto a organização subsistir e operar, os seus integrantes estão em situação de flagrância, ante o disposto no art. 303 do CPP. Não obstante, é curioso notar que, no que toca à conduta do Senador Delcídio do Amaral, tanto a decisão quanto o requerimento formulado pelo MPF apresentam fortes indícios em especial da prática do crime tipificado no § 1º do artigo da Lei n. 12.850/2013 (“impedir” ou “embaraçar” investigação de infração que envolva organização criminosa), cujo enquadramento como crime permanente é questionável, haja vista que ambas as condutas típicas são temporalmente restritas e delimitadas (crime instantâneo de efeitos permanentes), ao contrário da conduta de “integrar organização criminosa” referida no caput do art 2º da mesma lei. Assim, constata-se que é nebulosa a situação de flagrância com base na prática do crime tipificado no artigo , § 1º, da Lei n. 12.850/2013, que, em juízo perfunctório, é o delito em que a conduta do Senador melhor parece se amoldar.

    No entanto, além de ser questionável a configuração da situação de flagrância, é inequívoco que não se está na espécie diante de crime inafiançável, como exige o art. 53, § 2º, da CF/88. Os crimes inafiançáveis, como é de cursivo conhecimento, estão previstos no próprio texto constitucional (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV), quais sejam: racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo, crimes hediondos, e, por fim, a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático[7].

    O crime de embaraçar/impedir investigação de infração que envolva organização criminosa (Lei n. 12.850/2013, art. , § 1º), note-se, não constitui crime inafiançável. Não obstante, afastando-se da exigência constitucional, aduziu o STF que se trataria de caso de “inafiançabilidade” em virtude do disposto no artigo 324, IV, do CPP, o qual dispõe que não se concederá fiança nos casos em que estiverem preenchidos os requisitos para a decretação de prisão preventiva. Assim, surpreendentemente, entendeu-se que a menção do art. 53, § 2º, a “crime inafiançável”, não teria relação com os “crimes inafiançáveis” previstos na própria CF/88. Teria relação, por outro lado, com qualquer hipótese de “inafiançabilidade”, vale dizer, com qualquer hipótese de não cabimento da fiança determinada pela legislação infraconstitucional e aferida no caso concreto, a qual, no caso do Senador Delcídio do Amaral, decorreria do cabimento da prisão preventiva.

    A confusão, no entanto, é tão patente quanto insustentável. A redação do art. 324, IV, do CPP, note-se, apenas escancara o óbvio: a fiança constitui, de acordo com a atual redação do CPP, uma medida cautelar alternativa à prisão preventiva. Assim, decretada a preventiva, não há sentido em se conceder fiança, cuja finalidade é exatamente evitar a imposição da prisão: a fiança e a prisão preventiva não são imponíveis cumulativamente. A hipótese do art. 324, IV, do CPP não é então senão a expressão da alternatividade dessas duas medidas, e não se confunde, a toda evidência, com a hipótese de crime inafiançável. Neste caso, diante do flagrante, ainda que não estejam presentes os requisitos da prisão preventiva, a fiança não poderá ser concedida. A liberdade provisória, então, somente poderia ser concedida com a imposição de outras medidas cautelares diversas da fiança. Assim, não há que se confundir os casos em que é cabível a prisão preventiva (e por isso incabível a fiança), definidos pela legislação infraconstitucional (CPP, art. 312 c/c art. 313), com os casos de crimes inafiançáveis, decorrentes da Constituição de 1988 (art. 5º, LXII, LXIII, LXIV).

    No ponto, observe-se que, para decretar a prisão do Senador Delcídio, a Segunda Turma do STF não conferiu nova interpretação, mais ampla, ao art. 53, § 2º, da CF/88, pois dispensou por completo o preenchimento de um de seus requisitos. Ao deixar de limitar a prisão de parlamentares federais aos casos de crime inafiançável (um dos elencados no art. 5º, XLII, XLIII e XLIV), passou o STF a exigir para a decretação dessa prisão, noutro giro, apenas o flagrante de qualquer crime que admita a prisão preventiva (na qual seria incabível a fiança): em outros termos, desde que haja situação de flagrância, admite-se a prisão preventiva de parlamentares em qualquer caso em que estejam preenchidos os requisitos da prisão preventiva, em nítida petição de princípio. Demais disso, como os requisitos da prisão preventiva decorrem da legislação infraconstitucional (e exigem-se indistintamente, não apenas nos casos de parlamentar), então o único requisito exigido pela CF/88 para a prisão de parlamentar é o flagrante. Assim, de acordo com a orientação firmada pelo STF, a referência a “crime inafiançável” configura um requisito supérfluo imposto pelo art. 53, § 2º, da CF/88. Tal entendimento, portanto, não alarga ou amplia esse permissivo constitucional, mas sim lhe nega vigência, pois dispensa a exigência de “crime inafiançável” nele contida.

    Nesse passo, à guisa de conclusão, por um lado constata-se ser precipitada a interpretação de que a CF/88 veda a decretação de prisão cautelar (preventiva ou temporária) de parlamentar federal, uma vez que, ao tempo da elaboração do texto constitucional, a própria prisão em flagrante constituía uma modalidade de prisão cautelar, que poderia se prolongar no tempo, autonomamente, desde que ratificada pelo juiz. Não obstante, por outro lado, a interpretação de que a CF/88 permite a decretação de prisão preventiva de parlamentar federal desde que haja flagrante e os requisitos legais da prisão preventiva implica esvaziar a referência do art. 53, § 2º, aos crimes inafiançáveis, os quais estão listados de maneira clara e taxativa na própria Constituição.

    Assim, diante das confusões suscitadas pela histórica prisão do Senador Delcídio do Amaral, é forçoso afastar não só a interpretação de que a exigência de “prisão em flagrante” implica a vedação de prisão cautelar, mas também a interpretação de que “crime inafiançável” se equipara às hipóteses infraconstitucionais de não cabimento de fiança (entre elas a hipótese de cabimento da prisão preventiva), pois ambas conduzem a violação direta à Constituição da República. Reitere-se, pois: a Constituição admite, sim, a prisão cautelar de parlamentar federal, contanto que, além dos requisitos infraconstitucionais exigidos para tanto, esteja configurada situação de flagrância de crime inafiançável previsto no art. , LXII, LXIII ou LXIV da CF/88.

    Gisela Aguiar é Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB), graduada em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e advogada.
    REFERÊNCIAS
    [1] A mesma garantia se aplica aos deputados estaduais, por força do art. 27, § 1º, da CF/88.
    [2] CPP, art. 310. [3] Desde que haja requerimento nesse sentido, a teor do que dispõem os artigos 311 do CPP e 2º da Lei n. 7.960/89. [4] Tal modelo, note-se, é a base para a determinação constante da última parte do § 2º do art. 53 da CF/88, no sentido de que, uma vez efetuada a prisão em flagrante, devem ser os autos remetidos à Casa Legislativa “para que resolva sobre a prisão” – vale dizer, para que decida se manterá o parlamentar preso em flagrante. [5] Com isso, note-se, não se alargam as hipóteses de prisão de parlamentar previstas na CF/88, mas sim se acrescem aos requisitos constitucionais as exigências impostas pela legislação processual para a decretação de prisão cautelar. Com efeito, em 1988, a mera prisão em flagrante bastaria para manter o parlamentar cautelarmente preso, ao passo que, a partir de 2011, a legislação processual substituiu a mera ratificação do flagrante pela manifestação fundamentada da autoridade judiciária sobre o cabimento de prisão cautelar. [6] “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz” [7] A Constituição, observe-se, não conferiu nem ao legislador ordinário, muito menos às autoridades judiciárias, a prerrogativa de aumentar o rol de crimes inafiançáveis, que possui natureza taxativa (numerus clausus). Por isso, os crimes inafiançáveis estão reproduzidos, nos mesmos termos da CF/88, nos incisos I a III do art. 323 do CPP (com a redação dada pela Lei n. 12.403/2011).
    • Sobre o autorMentes inquietas pensam Direito.
    • Publicações6576
    • Seguidores932
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações1627
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/flagrante-de-crime-inafiancavel-e-inconstitucionalidade-flagrante-a-prisao-do-senador-delcidio/262103189

    Informações relacionadas

    Ygor Alexandro Sampaio, Advogado
    Artigoshá 2 anos

    É possível liberdade provisória em crimes inafiançáveis?

    Barbara Vilela, Advogado
    Notíciashá 8 anos

    Imunidades no Direito Penal

    Thaíla Sudário Cruvinel, Advogado
    Artigoshá 2 anos

    Hipóteses de aplicação ou não da prisão em flagrante delito

    Alberto Diwan, Advogado
    Artigoshá 10 anos

    O paradoxo da liberdade provisória nos crimes inafiançáveis

    Dr Francisco Teixeira, Advogado
    Artigoshá 5 anos

    O que é fiança?

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)