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25 de Abril de 2024

Questionar, desafiar e ser independente

Publicado por Justificando
há 8 anos

#SemanadeCombateàViolênciaContraAMulher #16diasdeativismo #MexeuComUmaMexeuComTodas

“Nós entendemos a importância da nossa voz quando somos silenciados”. Essa é uma das tantas expressões usadas por Malala, a protagonista do documentário dirigido por Davis Guggenheim, cuja estreia no Brasil ocorreu no dia 19 de novembro e que, por coincidência ou não, ocorreu às vésperas do início dos dezesseis dias em que no Brasil será empreendida a campanha mundial pelo fim da violência contra as mulheres, sendo o dia 25 aquele em que se comemora o Dia Internacional de Eliminação da Violência contra as Mulheres.

Não vivemos na Swat de Malala que, invadida pelos fundamentalistas Talibãs, foi vítima da destruição de mais de 400 escolas e experimentou a proibição de que as meninas estudassem.

Vivemos em um País que escolheu ser democrático de direito, sendo um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, um de seus objetivos fundamentais promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação e um de seus princípios a prevalência dos direitos humanos.

É muito provável que viver em um País assim, livre e igualitário, seja um dos sonhos de Malala que, vítima de violência extrema, pela coragem que teve de desafiar os Talibãs, quase pagou com a própria vida e hoje é obrigada a viver longe do Paquistão, seu País, onde desenvolveu seus valores, amava as montanhas, a vida simples e lutou pelo direito das mulheres.

O mundo real, no entanto, trata de mostrar que, de outro jeito e por outras razões, o Brasil não é um País capaz de corresponder a esse imaginado sonho de Malala. Nosso País, contrariando a promessa constitucional de igual dignidade e proteção aos direitos humanos, ocupa a vergonhosa quinta posição no ranking de violência contra a mulher [1]. Ironia, para dizer o menos sobre esse quadro social trágico, é que foi justamente no Brasil que, em 1994, foi expedida a Convenção interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, ratificada atualmente por 32 países da América Latina [2].

Embora a existência das proteções jurídicas nacionais e internacionais em favor da proteção das mulheres, a expressão mais cruel das violências que as têm vitimado, o feminicídio, tem sido alvo de atenção global. De fato, vivencia-se, atualmente, um momento de mobilização internacional, como uma forma de denúncia e tentativa de dar um basta à violência contra a mulher. Como exemplo podemos citar a campanha “Ni una a menos”, que inspirou uma série de manifestações em mais de 110 cidades argentinas, além do Uruguai, Chile, México e dos Estados Unidos.

Nomear tais violências como feminicídio é fundamental para demonstrar a origem e as estruturas que estão por trás dos números alarmantes de violência que estão indelevelmente vinculados à persistente desigualdade de gênero que existe em nossa sociedade e que coloca as mulheres em uma condição hierarquicamente inferior aos homens que se materializa por meio de assassinatos, estupros e toda forma de agressões físicas e morais. Essa agenda e as leis criadas para punir os responsáveis, se são comuns a inúmeros países, não provocaram a redução do número total de violência contra as mulheres.

O vergonhoso lugar que o Brasil ocupa nesta matéria deu ensejo ao surgimento da Lei do Feminicídio, de 9 de março de 2015. A mudança trazida por esta lei foi a tipificação do feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Por ter sido inserido no rol dos crimes hediondos, trouxe como consequência o aumento de pena do agente que o cometer. Sua justificação está presente pela ideia existente no imaginário comum de que a pena possui um caráter pedagógico e, por isso, a melhor forma de diminuir a ocorrência de determinado crime é aumentando o tempo de encarceramento.

Mas talvez seja mesmo a hora de perguntar se tal reforma legislativa será, de fato, capaz de alterar o quadro de violência contra a mulher ou tem, como tantas outras, um caráter apenas simbólico e, por essa razão, será incapaz de sozinha provocar a alteração do contexto social. Com efeito, a prudência e a compreensão sobre o papel que historicamente o direito tem desempenhado nas nossas sociedades, poderão nos levar para a fuga da crença de que a violência contra a mulher desaparecerá pela simples edição de uma lei. Carol Smart [3], na tentativa bem sucedida de demonstrar que o direito não é apenas enviesado em relação ao gênero, mas que ele mesmo corresponde a uma categoria de gênero, acabou por criar uma classificação em três ondas para a categorização da Teoria Feminista do Direito, as quais correspondem aos estágios da reflexão própria desta corrente de pensamento.

A primeira etapa pode ser resumida pelo epítome “o direito é sexista”, e quer dizer que o direito, ao estabelecer uma diferenciação entre homem e mulher, a coloca em situação de desvantagem, na medida em que lhe garante menos recursos materiais (por exemplo, no momento do casamento e do divórcio), a julga por padrões diferentes e inadequados (por, exemplo, a promiscuidade sexual), denega igualdade de oportunidades, ou, ainda, não reconhece os danos recorrentes do tratamento discriminatório porque representavam vantagens aos homens (por exemplo, o fato de, em um primeiro momento, a prostituição não ser criminalizada). Segundo este ponto de vista, a parcialidade do direito é passível de correção sendo para tanto necessária a redefinição do seu enfoque, de modo que todos os sujeitos, independentemente do sexo, sejam tratados da mesma forma, pois o que maltrata a mulher seria a diferenciação entre os sexos. No entanto, a transposição da mulher para uma condição de padrão normalmente ocupada pelo homem não parece ser uma solução satisfatória, uma vez que mascara um problema muito mais profundo presente na ordem social e ignora a incapacidade de se representar todas as mulheres em termos universais.

Diante dessas restrições, as feministas passaram a trabalhar sobre um novo enfoque: a de que “o direito é masculino”. Longe de tal afirmativa resultar de mera observação de que os homens dominavam o mundo jurídico de então, ela nasce também da constatação de que a masculinidade foi incorporada aos valores e práticas, adquirindo, assim, autonomia em relação ao referencial biológico masculino. Dessa forma, valores assumidos como fundamentais para o direito como objetividade e imparcialidade, seriam valores masculinos que foram tomados como universais. Smart tece três críticas a esse enfoque: a primeira é que o ponto de vista se abstém de explorar as contradições internas do direito, atribuindo-lhe uma pretensa unidade. A segunda aponta para o equívoco de se acreditar que qualquer sistema baseado em valores universais e na aplicação de decisões, em tese, imparciais, obedeça de forma sistemática aos interesses dos homens, como se fosse possível reduzi-los a uma categoria unitária. A terceira, adverte que qualquer argumento que dê destaque a divisão binária homem/mulher ou masculino/feminino acaba obscurecendo outras formas de diferenciação especialmente aquelas existentes entre essas dicotomias [4].

Ao buscar alterar tais críticas, as feministas alcançaram a terceira etapa no desenvolvimento da relação entre direito e gênero, exatamente aquela que afirma que “o direito tem gênero”. Como assinala Smart, esta última perspectiva permite examinar a maneira como o direito se dedica à diferenciação de gênero evitando-se o perigo dos argumentos que fixam categorias de homens ou mulheres. Ela dá lugar a uma ideia mais flexível: uma postura subjetiva dotada de gênero que não permaneça atrelada ao sexo por determinantes biológicos, psicológicos e nem sociais. Ao se valer desse novo enfoque, muda-se a direção da investigação que vinha sendo desenvolvida até o momento. Com efeito, deixa-se de perguntar “como o direito supera o gênero” e passa-se a uma nova indagação: “como funciona o gênero dentro do direito” e ainda “como o direito cria o gênero”. Contudo, o mais importante, segundo a autora, é que o objetivo da neutralidade de gênero do direito é abandonado. A igualdade absoluta já não é mais a grande aspiração feminista.

Se do ponto de vista da prática da violência contra as mulheres pode-se perceber que nenhuma dessas posições consegue explicar totalmente o fenômeno, quiçá encontrar a tão esperada solução para ele, não há dúvida de que o que o direito possui um papel relevante na legitimação do poder dominante. É por meio dele que são regulamentadas as diferentes esferas da vida humana, desde a mais genérica, no âmbito das relações internacionais, até a mais especial na intimidade das relações familiares.

Devido a esse caráter universal e coercitivo, o direito tem sido um dos responsáveis pela legitimação da diferença de gênero e, nesse sentido, reflete, ainda que lentamente, as transformações sociais que foram responsáveis não apenas pela segregação da mulher como também pelo seu movimento de emancipação. Ou seja, assim como a condição subordinada da mulher em relação ao homem passa pelo direito, a conquista da igualdade de condições também deve passar por ele, pois, apesar de, por si só, não ser o meio mais apto a causar mudanças sociais, ele fornece a legitimação jurídica das transformações sociais [5].

Todavia, há de ser percebido o quão problemático pode ser tentar encontrar respostas aos elevados índices de violência contra a mulher apenas pela via do direito penal. É relevante que o conjunto da sociedade tome uma atitude contra esse tipo de violência. Esse papel não é apenas do Estado mas, antes, dos homens e mulheres, das empresas, das universidades, enfim, da sociedade civil.

Neste contexto, destaca-se o projeto desenvolvido pela ONG ‘Grupo de Mulheres Cidadania Feminina’ que possui um projeto chamado Apitaço – Mulheres enfrentando a violência, pois representa um bom exemplo de alternativas construídas pelas próprias mulheres, embora não excluam de todo o direito penal. Essa ideia consiste em divulgar, através de rádio comunitária, a violência no momento em que ela ocorre, pelo uso de apitos em frente ao local do crime. Como resultado, observou-se a diminuição dos casos de violência pela visibilidade que traz ao problema. Tanto o agressor sente-se constrangido, quanto as mulheres sentem-se estimuladas a essa forma de “denúncia”, pois sabem que vão ser apoiadas pelas demais. O projeto demonstra como o direito penal não precisa ser a primeira, e muito menos, a única alternativa para a solução de conflitos.

Enfrentar o problema do patriarcalismo ainda presente em nossa cultura, considerado a razão nevrálgica dos homicídios e violências praticados contra a mulher, é imperioso para retirá-los da “normalidade” em que foram jogados e banalizados. A “normalização” de tais condutas é o que ao longo do tempo tem justificado e autorizado os homens a repeti-las sob o triste pretexto de punir e corrigir os comportamentos femininos que “transgridem o papel esperado de mãe, de esposa e de dona de casa” [6].

“Questionar, desafiar e ser independente”! Essa foi a pungente mensagem de Malala que os homens do Brasil, em geral maridos, companheiros e outros parentes próximos, deverão saber ouvir e compreender. Oxalá a cor laranja, escolhida pela ONU para identificar essa luta, lembre aos autores dessas que são violências estruturais da sociedade brasileira, de que o sol nasce para todos, que é dele essa bela cor e, por isso, é inapropriável, intransferível e único, como o direito das mulheres do mundo de serem respeitadas! Afinal, quem escreve a nossa história somos nós mesmos.

Jânia Saldanha é Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria - RS – Brasil. Coordenadora do CCULTIS - Centro de Culturas Jurídicas Comparadas, Internacionalização do Direito e Sistemas de Justiça - UFSM -Pesquisadora Associada do IHEJ - Institut des Hautes Études sur la Justice, Paris - ex-bolsista CAPES para pesquisa e estudos em nível de estágio sênior no IHEJ. Advogada.
Francine Salgado Cadó é Acadêmica do décimo semestre do Curso de Direito da UFSM. Pesquisadora do CCULTIS onde se dedica ao estudo da temática deste ensaio e que será objeto de seu trabalho de conclusão de curso.
REFERÊNCIAS [1] Veja-se o mapa da violência: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf [2] Disponível em: http://www.oas.org/jurídico/spanish/firmas/a-61.html [3] SMART, Carol. La Mujer del discurso jurídico, In:LARRAURI, Elena. Mujeres, Derecho Penal y criminoloía. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1994. [4] BUENO, Mariana G. R. da C. Feminismo e Direito Penal, 2011. Dissertação (Mestrado em Direito Penal) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. p. 23. [5] Idem. p. 22. [6] Disponível: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf, p. 74.
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